quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Movimentos

XX
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Dançamos. Suavemente. As palavras saem do meu corpo e tocam nos teus cabelos. O teu ritmo embala o meu e o meu ama o teu. Peço ajuda às minhas emoções, para se guardarem mais um pouco e não estalarem a minha passividade. Os teus braços são fortes mas o teu toque é delicado. Não vejo o teu olhar mas sinto-me pacificamente invadida. Viajas pelas minhas linhas com a ponta dos teus dedos, aproximas os teus lábios dos meus. Sinto a tua respiração quente misturar-se com a minha e o meu beijo pede para nascer.
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Afasto-me. Vejo-te no meio da pista de dança, imponente e solitário, a pedir, sem o fazer, a minha companhia. Óculos escuros, não sei porquê. O misterioso ar de quem apenas veio para estar sozinho, mas que me quer do seu lado. Negligencio a minha companhia inicial, quero estar contigo. A tua força impele-me a te tocar. Danças agora sozinho, vejo que olham para ti. Sinto-me ameaçada. Desespero com a demora da bebida que não vem.
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XY
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Sinto o teu cheiro passar por mim. Diferente, agrada-me. Sinto a tua energia rondar-me, os teus aromas flutuarem pelo ar, misturando-se com um pouco de tudo que não é já teu. Sinto o teu toque. Quero estar sozinho, mas o teu toque traz consigo a delicadeza e paz. Respondo ao teu toque, simplesmente por não o afastar. O teu corpo aproxima-se uns centímetros e sinto o teu calor. Tocas na minha mão, e permito que os meus dedos se entrelacem nos teus. A outra mão, invejosa, não desiste enquanto não toca na tua cinta, firme e sensual. A música, sem o fazer, baixa de tom, e puxo-te suavemente para mim. Aproximas os teus lábios dos meus, e dançamos o nosso próximo ritmo, independentes de tudo o que se faz ouvir ao nosso redor. Afastas-te. Não sei se voltas, mas quero que sim. Vim para estar sozinho, mas agora que te conheço, quero-te perto de mim.
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XX
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Vejo na bebida que aguento na mão nada mais que uma autorização para voltar para a tua beira. Gosto da maneira como me tocas, gosto da maneira como me sentes e olhas para mim, ainda que o teu olhar permaneça um mistérios, escondido atrás duma máscara que não sei porquê usas. A fluidez dos teus movimentos altera-se ligeiramente quando me vês novamente, entramos novamente na nossa própria dança. Tento adiar os segundos em que te vou beijar, vivendo um pouco mais estes momentos em que te quero conquistar, em que não sei se serás meu.
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XY
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Quando te vejo voltar, o prazer que sinto revela-se estranho, quem sabe a falta de treino em ter alguém tão belo como tu nos meus braços. Com o tempo deixei de procurar contacto, e viver a minha VIDA isolado, longe de tentativas de sedução que caiam na frustração. Vejo-te como um presente do destino, face a minha prolongada ausência das estúpidas competições sexuais… Não estou nervoso, controlo os meus sentimentos, com a absoluta certeza que, a qualquer altura, nesta noite, vais-me deixar, envergonhada, e não te voltarei a ver. Aprendi a usar cada segundo de prazer e bem estar como algo divino, que tenho agora e não sei quando voltarei a ter. Dás-me um pouco da tua bebida, e sinto o ácido cítrico da tua caipirinha prazeirosamente irritar as minhas papilas gustativas. Sinto os minúsculos cubos de açúcar dissolverem-se na minha boca, e espero um beijo teu.
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XX
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O tempo passa duma forma impossível de acompanhar. Deixo-me levar pela magia em que me envolves, e apenas por vezes tomo consciência do sítio onde estou, com quem vim, a que hora ir. Pensando que quero que vás comigo, que não me quero despedir, percebo que não posso adiar por muito mais tempo o beijo que, triste, continua esperando nos cantos dos meus lábios. As tuas mãos, comandando o meu movimento, apoiam-se nas minhas ancas. Subo-as um pouco, e toco-te, com as minhas no teu queixo. Os nossos lábios apaixonam-se por uns momentos, beijamo-nos, as línguas, tímidas, percorrem cada canto uma da outra. Gosto.
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XY
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Sinto o sabor da tua bebida na tua boca. Beijo-te, percebendo que não me esquecera, nem me esquecerei, passe o tempo que passar, e sinto as nossas bocas assumir o ritmo dos nossos corpos, dançando sem medo, entregando-se. Estranho a ligação estabelecida, penso nas poucas palavras ditas, penso se sentirás o mesmo. Penso se haverá algo de diferente neste duo, ou se estarei completamente enganado e tudo não passa de uma ilusão prestes a ser descortinada. Quando os nossos lábios se descolam, elevas-te um pouco e sussurras ao meu ouvido, pedindo para irmos embora, juntos. “Vem o momento” – penso, prestes a encarar a dura realidade. Aceno timidamente, dizendo que sim, que quero ir embora contigo. Dás-me a mão, quero imaginar que com medo de me perder, e saímos da pista, deixando a música mais longe. Paro. Estamos próximos da saída. Sinto a tensão na tua mão, ao não encontrar fluidez nos meus movimentos para te acompanhar. Viras-te para mim.
- Há algo que não percebeste, talvez… e tenho de te dizer… – digo-te, não precisando já de aproximar os meus lábios dos teus ouvidos. Aproximas-te.
- Que foi? – perguntas, intrigada.
- Eu sou cego. – respondo, com a frase que geralmente não preciso de dizer. A frase que as pessoas fazem por evitar ouvir, mantendo a distância, mantendo o frio. Fazes uma pausa e dou-te tempo para assimilar a surpresa e a desilusão. Sinto-te aproximar mais um pouco.
- Eu sei. Vamos?

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Hoje

- A VIDA são 3 dias pá, ouve o que eu te digo! E eu simplesmente decidi quando a minha vai acabar! – dizia-me Rui, todas as vezes em que as cervejas começavam a não caber na mesa. Nesse dia, a última vez que o ouvi dizer isso, estávamos no Académico. Era Quarta-Feira, lembro-me como se fosse hoje… Não se passava grande coisa em Coimbra, mas uma noite de conversa com Rui era sempre uma noite bem passada.
- ‘Tá bem, ‘tá bem… deixa-te de tretas! – eu despachava, entre cigarros cravados e goles de cerveja. Desde há alguns anos que Rui dizia ter decidido que ia viver a VIDA ao máximo e que se ia suicidar no dia antes de fazer 30 anos. Eu nunca acreditara. Hoje está morto.
- ‘Tou-te a dizer, pá! E já te disse mil vezes! Não vai ser um suicídio daqueles de pessoal deprimido! Vai ser o suicídio de alguém que viveu ao máximo, e apenas quis ter algo a dizer quanto à maneira, e à altura em que ia!... – debrucei-me na mesa e, com um sorriso, olhei-o nos olhos.
- Ok, vamos supor que não estavas na tanga… Não achas que 30 é muito cedo? – perguntei, curioso.
- Não, pá! Ouve lá, o que é cedo? 30 anos são 1560 semanas de VIDA! Vou em grande, e não vou ver o meu próprio declínio. E posso dizer que a minha VIDA foi feliz, sempre! Tu, por outro lado, vais envelhecer, vais perceber que já não consegues fazer as coisas que gostavas de fazer, vais tornar-te num adulto cínico, como até já te estás a tornar – diz, gracejando – E vais morrer com a ideia que não foste tão feliz como realmente foste. Só porque os teus últimos anos não o foram! – a maneira como me dizia isto era sempre cheia duma certeza impressionante. Agora que penso nisso, sentado ao lado da sua campa, no 13º aniversário do seu suicídio, quase não acredito como na altura não me acreditei! Talvez em algum momento tenha percebido que poderia ser verdade, e tenha dado um instantâneo salto do “não acreditar” para o “não querer acreditar”…
- Mas ouve lá, ó Rui… que é que tu sabes? Já pensaste que podes ‘tar enganado? E que… sei lá a VIDA comece aos 40?
- Acreditas mesmo nisso?
- Não, mas isso não interessa! – rimo-nos. Na verdade não acreditava, e os seus argumentos, ainda que aparentemente estúpidos, sempre me assustavam, talvez por, ainda que eu não o quisesse admitir, achar que, no fundo, faziam sentido…
- Claro que interessa! Pá… Zé, eu já percebi que não vou lidar bem com o declínio…
- Mas não tem de ser um declínio! – interrompo, efusivamente.
- ‘Tá bem, chama-lhe o que quiseres! Eu chamo-lhe declínio. Eu já percebi que não vou lidar bem com o declínio, e por isso prefiro ir em beleza, do que ir indo em tristeza.
- Ok, ok… – geralmente era assim que acabavam as nossas conversas. Eu não o conseguia convencer de nada, e ele não me conseguia convencer de nada… Ou melhor, eu dava sempre a entender, tanto para ele como para mim… que ele não me conseguia convencer de nada. Foi das últimas vezes que o vi. Que saudades tenho…

Acho que não reagi com muito choque. Apesar de não querer acreditar, talvez uma parte de mim soubesse que aquilo ia acontecer. As pessoas estranharam o facto de eu não me sentir devastado… Senti-me mal, mas como quando um grande amigo vai de viagem e não sabemos quando o vamos ver. Só isso. Talvez por me ter pedido, milhares de vezes, para eu não ficar triste, e para saber que tinha sido a sua decisão, e que tinha ido bem. Mas foda-se Rui, podias estar aqui ainda…

Sentado ao lado da sua campa penso neste meu amigo. Ensinou-me o que é viver. É irónico, mas a maneira apaixonada como deixou a VIDA, levou-me a querer aproveitá-la ao máximo. Realmente não sei quando o meu corpo vai começar a falhar, quando a minha mente vai desistir de algumas actividades que tanto prazer me dão. Não decido acabar com a minha própria VIDA, para não sentir esse declínio… Mas decidi, no dia do seu funeral… não adiar. Adiar sempre é o pior que podemos fazer. Hoje é hoje, e quando quero fazer alguma coisa, faço. Hoje… é hoje.