terça-feira, 30 de outubro de 2007

Mortal 6 (aceitam-se títulos, 'tou na dúvida)

Vejo-a enterrar os dedos nos seus cabelos, que agita para sacudir alguma da água que conseguiu iludir o guarda-chuva. Estou encostado ao balcão, de costas para o mesmo e com os cotovelos apoiados na sua esquina. Dou um gole do gim, dou uma passa noutro cigarro que acendera, e observo-a. Ainda não me viu. Tem um casaco longo, cinzento. Depois de dobrar a gola do mesmo, pendura-o. Guarda o guarda-chuva, e volta-se. Ao olhar para mim, lanço-lhe um sorriso. Ela nada faz. Não sorri, que caralho! Que tenho de fazer? Aproxima-se.

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- Desculpe, não tem um cigarro? – Sorrio. Mas rapidamente constato que, mesmo das suas próprias piadas, o sorriso não é genuíno, está carregado de segundas intenções e mistério. Fico sem saber o que pensar ou fazer, vindo ao de cima uma insegurança latente que desconhecia. Afogo-a, empurro-a para dentro de mim, deixando apenas permanecer o aparente olhar confiante. Com um olhar aponto para o maço de Dunhill que a esperava em cima da mesa. Ela sorri e pega no maço. Pede-me lume. Aponto novamente com o olhar para o balcão. Volta a pedir-me lume. Compreendo o que queria fazer quando, ao lhe dar o lume, pega novamente nas minhas mãos, aquecendo-as um pouco e a mim muito mais.

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- Não se quer sentar? – pergunto.

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- Pois porque não?...

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Assim o fazemos. Estou às cegas, completamente. Não sei minimamente do que falar. Sei que isto não é, por nada, o momento de falarmos do que esteve a fazer esta tarde, da situação (sempre) polémica da política nacional, das rivalidades entre a parte holandesa e inglesa do país… no fundo, de nada! Contudo, tenho consciência disso, então opto por escolher muito bem as palavras, e se não as encontro, silencio-me.

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Estamos no canto do café. Ela, sentada em frente a mim, um pouco de lado na mesa, com as pernas cruzadas, e o cotovelo direito apoiado na mesma. A mão, esticada no ar, segura o cigarro que lhe dei, que contribui para o ambiente algo fumarento do local. Tem uma blusa branca, leve, e umas calças da mesma cor. O cabelo, apesar de agitado minutos antes, apresenta-se bem definido, descrevendo uma linha perfeita e ondulada ao redor do seu olho direito. Volto a reparar nos seus olhos, grandes, fazendo lembrar uma bela mulher árabe, a íris dum castanho tão escuro que hipnotiza.
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No outro canto, perto da porta, num pequeno palco improvisado, de madeira, começa a tocar o conjunto Revolutie, uma banda conhecida por tocar o melhor jazz da cidade. Conheço-os, boa oportunidade.

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- A menina conhece esta banda? – apercebo-me que não sei ainda o seu nome.

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- Não me são estranhos. Esta sonoridade diz-me algo. – Responde, sem olhar para mim. O pé, discretamente, acompanha o ritmo da música.

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- São os Revolutie. São conhecidos por Nieuwe Adelaars não só por tocarem o melhor jazz da cidade, mas por, nas raras ocasiões em que cantam, tecem das críticas mais acutilantes e subtis ao governo.

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- Mas não os apanham? – pergunta. Desta feita olha-me nos olhos. Gosto. Gosto de a ver olhar para mim com os olhos um pouco mais abertos, abdicando da sedução a tempo inteiro. Estava curiosa.

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- Pois aí está a beleza, é que são tão subtis, que apenas se pode imaginar o que realmente querem dizer. É impossível ter a certeza. Além do mais são muito queridos por toda a gente. Serem apanhados sem nenhuma base sólida ia fazer muita coisa abanar. Pelo que o governo prefere tentar mandá-los abaixo indirectamente.

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- Como assim?

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- Digamos que tem sido impossível para eles arranjar outra forma de ganhar dinheiro além da música. Ninguém os emprega. Já deixaram de tentar, ao perceber que era algo que não tinha apenas que ver com o eventual empregador.

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A conversa continuou. O seu sorriso não modificou sobremaneira. Gosto assim. Falamos de algumas questões relacionadas com a conversa anterior, surgindo os assuntos naturalmente. Achei interessante o paralelismo entre o tema inicial da conversa, e o tema constante na mesma. Mensagens subliminares, aparentemente inocentes, com eventuais significados e desejos por trás.

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São 9 da noite.

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- Jantamos?

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Saltos Altos de Tacão Amarelo

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Acordei à espera de o ver. Adormeci sem o fazer. O rádio toca as músicas de trás para a frente e o sol está a chover. Penso que devo estar com uma moca do caralho, mas não me importo. Gosto de ouvir o som quase satânico das músicas em desalinho. Abro a porta do chuveiro e cumpro o meu ritual de todos os dias, cortando o cabelo e pintando os lábios. Parou de chover, acho que já não levo lancheira.

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Saio à rua, completamente nua, e sinto-me uma entre tantas outras, já que toda a gente está a falar ao telemóvel. Não me importa. Penso em vê-lo mas sei que ele ainda não ceou. Quando entro no barco, peço ao taxista para me levar para um sítio qualquer. A noite está calma, quero pensar, mas pensar longe daqui. Quando chego, abro a porta do elevador e sento-me à lareira. Estou onde quero estar, mas penso novamente que, depois de alcançar este sagrado poiso, já não o quero, e o vinho está a estragar. Puta de mania, de querer o que não tenho, de querer estar onde não estou, de estar a parecer o Variações, e do vinho estar a estragar. Mas nunca se sabe. Abro a janela e saio pelo varão de emergência, directamente até ao rés-do-chão. A única coisa constante no meu pensamento é vê-lo. Vou ao cemitério para o ver, as pessoas estranham um bocado alguém nu no cemitério. Não me importa. A campa dele é longe, mas ainda tenho sumo. Quando chego a campa está no mesmo sítio mas não tem nada escrito na lápide. Estranho. Eu estranho, e aquilo é estranho. Não que o meu dia esteja a ser estranho. Escavo um pouco a tua campa, dói-me as unhas, e descubro a passagem secreta. Tenho medo de bichos mas tento entrar. Quando saio no armário do quarto dos teus pais, vejo o teu pai no mesmo quarto a ver raparigas na tv a fazer ginástica. Acho que eu o vejo mas ele não me vê. Acho que está excitado.

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Saio do quarto e a floresta adensa-se. Tenho de afastar as canas de bambu e usar um protector solar. Vejo a tua mãe ao fundo a lavar roupa na água lamacenta do pântano. Grita. “Quanto mais lavo mais suja está!!!” Acho que ela é que quanto mais tempo passa mais louca está. Nunca soube ultrapassar bem a tua morte como eu, nem o facto de querermos casar em Abril. Abril, águas mil. Diz.

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Ainda penso se devo falar com ela, mas parou de chover. Abro a porta do pântano e saio para a rua. Dou um passo e estou num autocarro. Toda a gente está a pensar alto e eu própria não consigo pensar. Quero-me sentar mas as pessoas tiram palavras da cabeça e ocupam os bancos. É incrível, e impossível! “Posso-me sentar?” “Não porque você tem cara de comunista!” – eu nem ligo a política!! Saio na primeira paragem e há leões na rua. O céu está amarelo e vejo um espelho ao fundo. Caminho lentamente, doem-me os pés com as picadas dos escorpiões. Sinto-me sonolenta, deve ser do café. Ainda penso que gostava de te ver. Aproximo-me do espelho e vejo-te do outro lado. A tua cara é a minha. Tento dar um beijo no espelho, mas tenho cieiro e doem-me os joelhos. A tua cara é a minha, e eu não te vejo em lado nenhum! Tento dar um beijo no espelho, mas tenho cieiro!!

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A tua cara é a minha, a tua cara transforma-se completamente na minha, e vejo-me ao espelho. Tenho alguém ao lado que não sei quem é. As minhas pupilas estão pequenas. Quero uma moca maior, e quero ver se te vejo.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Mortal - 5

Domingo. Um Domingo diferente, finalmente! Não vou passar as secas do costume. Acordo com o pensamento orientado sabemos todos para onde. Levanto-me, tomo banho, visto o robe e, com uma caneca de café, contemplo a paisagem de Nieuwe Adelaars, ou New Eagles, para quem fala Inglês. Hetwestenland, ou Westland, foi uma colónia da América Central ocupada pelos ingleses e holandeses. Conseguida a independência no início do século, hoje é um país bilingue, sendo que metade fala inglês, outra metade neerlandês.

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Passo a tarde no ginásio e no café com Arie, um amigo de longa data. Essa mesma tarde passou custosa e penosamente. Apesar das conversas até serem divertidas e os lugares confortáveis, parece que conseguia contar cada minuto passar, via o ponteiro mexer-se com uma lentidão incrível, e nada havia que eu pudesse fazer. Por outro lado, e isso é o mais estúpido, ao mesmo tempo, a cada hora que passava, desejava estar na hora anterior. Claro que, no fundo, era porque estava nervoso, receoso, mas disfarçava estes sentimentos perante mim mesmo, dizendo-me que apenas queria voltar uma hora atrás para fruir mais do melhor de todos os momentos, o da antecipação, esse momento em que tudo corre bem, em que tudo tem tudo para correr bem.

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7 da tarde. Despeço-me de Arie, a quem contara o que se passava, e vou… dirijo-me ao Vrijheid, Freedom, para os ingleses. Vou a pé, e a chuva não perdoa, pelo que tenho de subir a gola da gabardine e enterrar um pouco mais o chapéu na cabeça. As estradas estão cheias de carros que buzinam, nervosos, perante a imobilidade. Pessoas caminham rapidamente, vindas de não sei onde, indo imagino, para casa, onde… não chove. Avisto ao fundo o bar onde me encontrarei com ela. Abrigo-me num parapeito, procuro um cigarro no bolso da minha gabardine, e fumo descontraidamente (pois sim…), fazendo algum tempo. Não quero chegar e ela não estar lá. Prefiro que seja ela a primeira a chegar. Nada tem a ver com o estilo que tanta gente apregoa ter, o facto de se chegar um pouco atrasado. Simplesmente não quero ter de me sentar e massacrar-me, minuto após minuto, com dúvidas acerca da sua vinda.

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Entro. O café, com as paredes completamente revestidas a madeira, instrumentos musicais pendurados nas paredes e tecto, apresentava-se com muito fumo, mas apesar disso, agradável. Várias pessoas conversavam, sentadas nas poltronas que rodeavam mesinhas baixas cheias de pontas de charuto. Penduro o chapéu e a gabardine no bengaleiro e peço ao barman um gim tónico.

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Volto-me, encostado ao bar, e vejo a porta abrir-se. Aparece. [continua]

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Um Título Qualquer 4 - [doravante denominado "Mortal"]

Estava entregue. Fumou o seu cigarro, enquanto eu fumava o meu. Não falamos. Ao invés de o fazer, ela aproxima-se um pouco. Eu aproximo-me um pouco. Tento colocar-me numa posição que não diga o que realmente se está a passar naquele momento para quem passe e nos aviste. Complicado.

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- Sabe – diz-me, depois de largar o cigarro que, com uma pequena parte da sua ponta pintada de vermelho, cai no chão – Suponho que isto não fique por aqui.

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- Não sei a que se refere. – Respondo, levantando o olhar e observando as nuvens a viajar impelidas pelo Vento constante. Não a olho.

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- Pois se por acaso… Olhe para mim. – Baixo o olhar – Pois se por acaso descobrir ao que me refiro… amanhã é Domingo. Eu vou tomar café no Vrijheid, por volta das 7 da tarde. Gosto de fumar um cigarro quando tomo café, mas não costumo comprar tabaco, não vale a pena fazê-lo por apenas um cigarro.

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- Percebo.

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- Pois detestaria ter de pedir a outra pessoa qualquer. Adeus.

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E afasta-se. 7 da tarde, amanhã, Vrijheid. Cigarro. Que maneira de me pedir para se encontrar com ela... Ao vê-la afastar-se fico a pensar se não será isto uma metáfora com contornos mais reais do que aparenta. Isto é… é óbvio que naquela frase o que estava a ser dito era “venha ter comigo”, mas disfarçada duma maneira que parece que o objectivo de ir ter com ela é servir a sua necessidade, fornecer-lhe algo. Pois será que não passarei disso mesmo? Alguém que lhe vai fornecer algo, alguém com quem ela tenha de brincar, que use, e depois deixe cair, esmagando no chão com a ponta dos seus sapatos de salto alto? Tento sacudir a minha mente destas divagações (aparentemente) sem sentido, e dirijo-me ao salão.

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- Onde andaste, querido?

- Fui lá fora, apanhar ar. – Respondo, enquanto procuro com o olhar a mesma pessoa que me obrigara a mentir nesse preciso instante. Avisto-a ao fundo, no centro de uma conversa com pessoas que sei serem importantes. Reparo como se deliciam com o que diz, e reparo na maneira graciosa como sorri ao ouvir o que lhe é dito.

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- … e eu ali a ouvi-lo e ele… - Não consigo prestar atenção ao que minha mulher me diz. Tento olhar disfarçadamente, mas talvez sem sucesso, pois a… donzela repara que estou a olhar e, a determinado momento olha fixamente para mim, piscando-me o olho. Afasto o olhar. – Ainda por cima sobre a poluição em Nieuwe Adelaars!

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- Pois… realmente não tem muito jeito…

- Não tem?

- Quer dizer, o que ele disse não tem…

- Pois eu sei… – E consigo salvar-me assim.

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Fomos embora pouco depois. O meu Mercedes preto galgava as ruas. A minha mulher ia falando dos pormenores da festa, das conversas que teve. Eu só conseguia pensar em duas coisas. Nos minutos que sei ter tido hoje, e nos minutos que não sei como serão amanhã. Ia-me perguntando a opinião, eu ia anuindo. Quando me pergunta se estava bem, sou forçado a responder que estava tudo óptimo, apenas e sentia um pouco cansado e farto destas festas de fachada.

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Chegamos a casa, agradecemos e pagamos à Abigal, que tomava conta do pequeno Adriaan, e vamos dormir.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Quase Consigo

As pessoas passam por mim na rua e mandam piropos. As pessoas passam por mim na rua e olham para trás depois de eu passar. As pessoas passam por mim na rua e comentam umas com as outras. As pessoas passam por mim.

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E eu? Eu passo pelas pessoas na rua e continuo na minha VIDA. Eu passo pelas pessoas na rua e não mando bocas, piropos, não comento nada com ninguém, não fico a olhar. Eu passo pelas pessoas. Apenas.

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Poderia ser tudo normal, até lisonjeador. Mas se o que sinto já me massacra todos os dias, porque é que as pessoas têm de mo lembrar todos os segundos, todos os momentos? Porque não me deixam ser apenas eu própria? Os únicos momentos em que me sinto realmente uma mulher são quando estou em casa, sozinha, longe de todos os olhares condenadores, julgadores. Não sei porquê, tive o azar de nascer no corpo de um homem, apesar de sempre me ter sentido uma mulher. Nunca gostei de jogar à bola, de usar calças, de brincadeiras parvas. Como me recordo da primeira vez que a minha mãe me apanhou a vestir as roupas dela. Estava no seu quarto, completamente vestida com as suas roupas, debruçada sob o espelho, tentando aprender a usar um batom. Acho que ela já sabia… tanto que não ficou escandalizada. Tentou fingir que sim, e alertou-me da gravidade daquilo que estava a fazer, para nunca mais o repetir, e advertiu-me do perigo que seria se meu pai me apanhasse assim. Claro que eu disse para não se preocupar, que era uma brincadeira e eu nunca mais voltaria a acontecer.

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Tinha dez anos quando o meu pai me apanhou assim pela primeira vez. Nem disse nada… o seu olhar dizia tudo, e se na sua expressão facial havia algo que pudesse ser difícil de entender, a sova que me deu com o cinto não deixou margem para dúvidas. Comecei a perceber aí que nunca mudaria, pois nem por um momento me arrependi ou reflecti novamente sobre o que tinha feito. Da segunda vez tinha 16 anos. Tive nódoas negras durante 3 semanas, e o meu pai só me voltou a dirigir a palavra passado meio ano, ignorando as súplicas de minha mãe.

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Contudo, assim como da primeira vez percebi que nunca mudaria… desta vez percebi que nunca seria entendida. Por isso, aos 18 anos fui estudar para fora, trabalhando ao mesmo tempo num bar gay para me sustentar, e nunca mais voltei a casa. Sabia bem a vergonha que o meu pai sentia de mim, e dos comentários que corriam por toda a terriola. Aqui onde estou, os comentários prevalecem, mas aqui onde estou não preciso de me preocupar com ninguém. Quase consigo ser eu… quase.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Jardim

Porque é que a temperatura é sempre a mesma? E porque é que as nuvens estão sempre perto, e à volta do sol, mas nunca em cima dele? Devia ficar giro… devia ficar sombra, como quando estou debaixo duma árvore, mas em todo o lado! E porque é que a relva não cresce? Porque é que a cascata tem sempre o mesmo volume de água a cair? E de onde é que vem essa água, o que é que há do outro lado??


E porque é que posso comer de tudo o que há, tudo, menos daquela árvore no meio? Não faz sentido! O Adão, de cada vez que lhe falo nisso passa-se. Acho que é das poucas vezes que o vejo sem aquele sorriso idiota nos lábios. Não me interpretem mal, eu gosto muito dele, trata-me muito bem, mas também não é que eu saiba como é não ser tratada bem. Mas ele… não sei, às vezes aborrece-me… Passa a VIDA a dar nomes aos animais, depois engana-se, começa tudo de novo, e anda ali dum lado para o outro, com a sua folhita de plátano, todo contente. E dar nomes aos animais… deve ser grande empresa. Quando eu quis chamar Katiára ao que ele acabou por chamar de Ornitorrinco, gozou comigo, e chamou ao assunto logo a hierarquia das costelas! Pois eu já me dei ao trabalho de as contar, e temos as mesmas! Quer dizer… ele dantes tinha número impar ou quê? E… Ornitottinco? Como se fosse um nome de inspiração divina. Bem, inspiração divina acaba por ser tudo aqui…


E essa folha de plátano… não percebo. Acho que desde que nasci que me lembro de ter essa folha à frente do meu se… da minha cinta. Os meus braços, descobertos, os meus joelhos, descobertos… porque tenho de tapar algo cuja única função é fazer chichi? Nem dá muito jeito, ter de levantar a folha sempre que sinto a necessidade…


Não sei… nem percebo como é que de repente me deu esta vontade de questionar tudo. Tudo ia bem, até que conheci alguém que me abriu os olhos! A cobra. Ao menos alguém que me tira da monotonia. Gosto dela, é sopinha de massa, e acho giro isso. Ultimamente tem-me falado da Macieira. Nem disse nada ao Adão, passava-se logo. Mas estou a pensar em experimentar.


- Qual é o problema? É uma árvore como as outrasss? Ssse podess comer pêsssegoss, laranjasss,… aquela não há-de ser muito diferente, poisss não?


Pois realmente não há-de ser assim diferente.


Combinei com a cobra perto da laranjeira. Só há uma, e chega. É curioso, tiramos uma, e nasce uma outra logo a seguir. Digo ao Adão que vou dar um passeio e lá vou ter. A cobrinha vai-me dando força, para não desistir. Aproximo-me, tiro uma, e dou uma dentada.


Fico contente. Variedade. A água deixa de cair da cascata, e as nuvens tapam o sol.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Um Título Qualquer - Salto No Tempo

Ela descansa ao meu lado. A única iluminação que chega ao meu olhar é fornecida pela lua, que brilha alta e cheia. As velas foram perecendo, uma após a outra, cansadas, quem sabe, de nos ver. De onde estou vejo, à minha esquerda, ela, a minha perdição, o vício que não consigo largar, à minha direita a janela, com as portadas entreabertas, permitindo as cortinas brancas dançarem ao sabor do Vento que não se apresenta nada tímido. Está frio, e puxo um pouco o lençol. Ela está nua, a sua cabeça apoiada no meu ombro, com seu cabelo cobrindo o meu peito, a sua perna esquerda, ligeiramente dobrada em cima da minha cinta. O telefone acende. Comecei por tirar o som, passei a tirar a vibração, quando o desligo?... Já perdi a conta do número de vezes que vi a sua luz projectada no tecto, sempre caindo essas chamadas e mensagens no vazio. Acho que, no fundo, não o desligo porque isso seria, penso eu, um assumir completo de um desligar progressivo que tenho vindo a fazer com tantas coisas na minha VIDA… Que estupidez, esta associação... Mais estúpido ainda, a maneira como o sentimento de culpa que me assola nestes momentos parece desaparecer deixando um pequeno rasto apenas, de cada vez que ela se mexe um pouco, quem sabe impelida por um ou outro sonho… ou a maneira como desaparece, desta feita sem deixar qualquer rasto, de cada vez que olha para mim com aquele olhar cheio de pecado e tentação. Reparo como separo “pecado” de “tentação”… se dantes ficava-me pela segunda, agora entrego-me de braços abertos à primeira, como que fazendo tudo o que tenho para fazer de mal na VIDA, apenas duma vez. Claro, não me refiro apenas a uma ou outra foda, isso seria… um ou outro pecado… Refiro-me às decisões que fui tomando ao longo dos tempos, desde aquela fatídica festa, aos caminhos que tomei, à maneira como me deixei absorver por esse vício, atirando para segundo plano tudo o resto, como se não houvesse amanhã… Aí está… Se não houvesse amanhã, eu não ia para casa, e isso é tudo o que mudou em mim, apenas numa frase…

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Os olhos dela abrem-se. Acorda dum sono que pouco durou, e acorda-me a mim próprio das minhas divagações.

- Em que pensas, querido?

- Não te sei dizer… Acho que estava a pensar em como as coisas chegaram até ao ponto em que estão agora…

- Como assim? – Pergunta-me com a sua voz que, estivesse eu distraído, atiraria novamente os meus pensamentos janela fora. Incrível como podemos passar, em menos de um segundo, de uma posição extremamente racional, para uma extremamente “racionalizadora”. Consigo manter a coerência, a custo.

- Sei lá… tudo o que fizemos. Como tanto já nos magoamos um ao outro, e sobretudo… as tantas pessoas que já sofreram por nossa causa…

- Querido… – diz, com voz baixa e quase tranquilizante – Não te alarmes… desde que te vi que sabia que isto só poderia correr mal. – Remata, fechando os olhos e atirando-se para o sono novamente.

Good Priest Bad Priest


A
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7 da manhã, bom dia! Levanto-me, abro as persianas, deixo entrar o sol em minha casa. Ajoelho-me, rezo, agradeço a Deus mais um dia que me concedeu, vou tomar banho. Antes de ir para a banheira ligo a rádio local, vou ouvindo a música que até é sempre igual, mas tudo bem, é uma espécie de tradição. Por outro lado, sorrio ao pensar que não lhes fazia mal mudar um pouco.
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B
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7 da manhã, cum caralho… Já não tenho VIDA pra estas merdas… Nem sei quando é que tive… Ainda por cima, a noitada de ontem deixou-me meio combalido. Foda-se quando me lembro… O whiskey dá-me destas merdas… Ponho-me a jogar poker com aqueles caralhos e quem se fode é o pessoal que dá o dinheiro para a cesta nas missas. Também… são mais 20, menos 20 euros para a igreja. Também não precisam… a esta hora está o papa a coçar os tomates com milhões de contos ao lado…
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A
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Saio do banho. Daqui a umas horas é a missa de Domingo, a melhor missa da semana, a que tem mais gente a adorar Deus. Depois de me vestir e me barbear, vou tomar o pequeno-almoço à pastelaria aqui ao lado. Não é com surpresa que vejo a Dona Maria, Antónia, e todas as senhoras devotas que não conseguem esperar pelo fim da missa para falar comigo. Compreendo. Têm VIDAS difíceis, e eu sou alguém que as consegue entender. Não minto, às vezes distraio-me um pouco com o que dizem, e chego a achar aborrecido vez por vez, e é nestes momentos que mais questiono o que faço… Sinto-me triste e acho que deveria ter mais força, e penso se sou digno de representar o que represento. Eventualmente penso que, apesar de tudo, sou apenas humano, e também erro.
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B

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Não me apetece tomar banho, mas tem de ser. Ajuda-me sempre a curar um bocado a ressaca. Antes de ir para o banho sento-me na cama, ligo a aparelhagem, toca Doors, e fumo um cigarro. Quando acaba, levanto-me, e vou para o quarto de banho. Apetece-me, e então dou largas à imaginação com os recursos que tenho disponíveis. Lembro-me que hoje é Domingo. Foda-se, com este calor e a igreja cheia de gente a adorar deus, que terrível. É sempre um suplício. Mas nem tudo é mau, ainda não veio ninguém bater-me à porta. Saio, vou tomar pequeno-almoço à padaria. Por mim ia ao café comer qualquer coisa, tomar café e fumar um cigarro, mas o povo é fodido, num instante apercebiam-me que também tenho os meus vícios… O pior de tudo é que… estão?... Sim, claro, lá estão elas à minha espera! Não podem esperar pelo fim da missa para falar comigo, vêm sempre chatear-me quando estou na minha paz. Vejo-me fodido para me lembrar dos nomes delas, e chamo-as, de mim para mim, como as pastorinhas! Só falta o Francisco, porque Lúcias e Jacintas não faltam nesta terra!...
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A
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Depois de tomar o pequeno-almoço e conversar com as senhoras, vou para a igreja preparar a missa. Está um belo dia hoje, apesar de calor, e acho que vai ser um belo evento. As pessoas que me ajudam vão chegando, e está tudo pronto para começar.
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B

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Só lamentações pá! Que tratem da VIDA delas, que eu já me vejo fodido para tratar da minha! Como me lembro e arrependo dos caminhos que me trouxeram até aqui… Na altura não tinha muitas hipóteses de trabalho em que se ganhasse bem. Era religioso, mas estava à espera de uma qualquer revelação que me orientasse. Achei que, indo para padre, algo podia mudar. Acho que me fartei de esperar quando dei por ela e já era padre há 10 anos… Agora podia mudar, mas apesar de tudo, é tudo muito confortável. Não ganho muito, mas pouco do que gasto é meu… Quando chego à igreja já está lá tudo pronto para me ajudar. Sorrio em jeito de “bom dia”, mas no fundo penso se não terão mais nada para fazer…
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A
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A missa correu muito bem! Os coros estiveram particularmente inspirados, chegando a arrepiar-me, tal era a qualidade das músicas, e a alegria que me transmitiam. É nestes momentos que me sinto feliz por ser um humilde servente de Deus! No final vou almoçar a uma festa popular aqui perto. Corre também tudo muito bem, e bebo 2 copos de vinho. Paro por aí, não quero exagerar. À tarde há confissões.
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B

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A missa foi uma seca fodida… Chego a ter pena das pessoas que são obrigadas a lá ir todas as semanas, e terem de ouvir alguém tão pouco entusiasmado como eu… É que, não me fodam… Há pessoas aqui dentro mais hipócritas que eu… Quando acaba a missa convidam-me para ir almoçar às festas populares aqui ao lado. O almoço é um bocado chato, mas vou disfarçando o aborrecimento com umas copadas discretas do vinho da região. Quando acaba já dou por mim a apreciar as miúdas que andam em saia dum lado para o outro. É quando sei que já não estou sóbrio… Hei… e à tarde há confissões…
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A
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Das pessoas que se vêm confessar, a maioria não tem grandes coisas a dizer, mas aparece uma senhora que anda a trair o marido. Sei que é um comportamento reprovável, mas sinto pena e chego a emocionar-me, por esta senhora não conseguir combater esta tentação que a persegue… No final digo-lhe que juntos vamos conseguir ultrapassar tudo isto…

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B
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Após algumas horas de ouvir a mesma merda de sempre, aparece uma gaja que anda a encornar o marido. Eu gosto é destas, especialmente quando entram em pormenores. Ainda por cima esta é bem boa. Do lado de cá da parede de madeira, ao ouvi-la, com a voz chorosa, contar como tudo aconteceu, não consigo evitar tocar-me um bocado. Qual é o problema? Sabe bem, e no fundo não estou a fazer mal a ninguém…
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A
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Assim passa o meu dia. Quando acabam as confissões, vou aqui e ali, falar com este e aquele, pessoas que conheço e não vejo há algum tempo. Quando chego a casa, rezo um pouco, vejo televisão, e vou dormir.
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B
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Finalmente em casa. Vou directo da igreja alugar uns filmes, e, ao chegar ao meu pouso, aterro no sofá a beber um bom vinho do porto e a ver esses mesmos filmes, à espera do João Pestana. Amanhã mais um dia, mas um dos bons, não há missa de Domingo!

Everything Is In It's Right Place

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Narrador, 15 minutos para a viagem
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Uma sala escura. Uma pessoa no centro, em pé, virado para uma parede onde um relógio digital mostra uma contagem decrescente que acaba de passar pelos 15 minutos. 19 pessoas de idades entre os 18 e os 26 anos, de frente para a parede fazem uma meia lua perfeita tendo como centro a pessoa de pé. Em frente a cada pessoa uma vela, fontes únicas de luz, e um copo cheio.
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Pessoa A
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Está tudo perfeito, tudo no lugar certo. Comigo estão 19 jovens que acreditam mais em mim do que alguma vez alguém acreditou. Eu sabia que mais tarde ou mais cedo alguém haveria de me dar a importância merecida. Demorou, mas eu sabia que havia algo de grandioso guardado para mim. Se ao menos os meus pais, que sempre diziam que eu nunca ia ser ninguém, me vissem agora. Se os meus colegas de escola, que sempre me humilharam, me vissem a liderar estas pessoas, que me vêem como um deus!... E na verdade trago, não a palavra dele, mas de alguém superior a ele, que me deu a liberdade de escolher e levar os escolhidos, sem ser castigado.
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Pessoa B
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Está tudo perfeito, tudo no lugar certo! Não me acredito, não caibo em mim de felicidade! Faltam quinze minutos mas para mim parecem 15 anos! Como eu esperei por este momento! De onde estou vejo os meus colegas de viagem, todos, ou quase todos, com um sorriso enorme no rosto. Será que estão tão felizes como eu? Em pé, voltado para a parede está o grandioso líder, Pessoa A, que com a sua sabedoria soube guiar-nos e mostrar-nos o caminho.
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Pessoa C
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Está tudo perfeito, tudo no lugar certo! Cobarde como sou, sei que nunca conseguiria fazê-lo sozinha. Foi quando veio o palhaço Pessoa A falar comigo que percebi que era a minha oportunidade de fugir de tudo duma vez por todas. Com mais 20 pessoas a fazer o mesmo que eu, sei que consigo ter forças para abandonar esta dor que me sufoca. Olho em volta e vejo um monte de palermas com um sorriso pateta nos lábios. Do tipo de sorriso que não dou desde que... Está tudo perfeito, porque faltam apenas 15 minutos.
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Narrador, 10 minutos para a viagem
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Pessoa A

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Penso em tudo o que alcancei e solto uma lágrima que desliza e cai no chão. Sinto que se inquietam, e volto-me, sorrindo, para que não se assustem.
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Pessoa B

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Quando vejo Pessoa A com uma lágrima nos olhos, encho-me eu próprio delas. Como é grande! Alguns colegas assustam-se, sinto, pensam que está com medo. Mas eu sei que não, chora de felicidade pela transição. Como é grande.
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Pessoa C

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O tempo escorrega vagarosamente. O pessoa A solta uma lágrima, está todo cagado... A dor que sinto permanece, come-me por dentro, passeia-se dentro da minha pele e corrói-me segundo após segundo. Sinto esta dor no fundo da garganta constantemente, não gosto de ninguém no mundo, e deles todos sou quem me odeio mais.
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Narrador, 1 minuto
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Pessoa A
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Pego no copo. Sinto que fazem o mesmo. Sinto uma adrenalina imensa dentro de mim. Não sei se é medo, mas peço desculpa a deus A, por ter este medo. É apenas a minha condição humana, que teme o desconhecido... Penso arduamente no próximo nível, não consigo evitar pensar em toda a gente que já me humilhou, e bebo.
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Pessoa B
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Um minuto... Dentro de um minuto estarei ainda mais feliz, pois verei concretizados todos os meus projectos, todos os meus sonhos. Estarei nesse sítio onde não há dor, onde não há mães que se suicidam nem pais bêbedos, tudo de bom, tudo de bom para mim. Bebo.
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Pessoa C
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Estou a um minuto da morte e não sinto nada. Sinto o vazio que sinto todos os dias, todas as noites, em que mal durmo e acordo a transpirar. Como todos os dias em que falam comigo e olho para trás vendo para quem realmente falam... "Hora zero", como diriam eles. Adeus mundo.
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O Que Vejo
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Pessoa B
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Nada. Para sempre.
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Pessoa C
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Cuspo tudo o que tenho na boca. Sou uma cobarde. Vejo quase 20 pessoas à minha volta a tossirem convulsivamente e caírem para o lado. À minha frente vejo Pessoa A a cambalear e tentar correr para um canto com os dedos na boca. Vomita.
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Pessoa A
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O que vejo... Volto-me para trás, vejo apenas os olhos duma rapariga humilharem-me pela minha cobardia, pelo meu medo. A humilharem-me, mais uma vez.