sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Quase Consigo

As pessoas passam por mim na rua e mandam piropos. As pessoas passam por mim na rua e olham para trás depois de eu passar. As pessoas passam por mim na rua e comentam umas com as outras. As pessoas passam por mim.

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E eu? Eu passo pelas pessoas na rua e continuo na minha VIDA. Eu passo pelas pessoas na rua e não mando bocas, piropos, não comento nada com ninguém, não fico a olhar. Eu passo pelas pessoas. Apenas.

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Poderia ser tudo normal, até lisonjeador. Mas se o que sinto já me massacra todos os dias, porque é que as pessoas têm de mo lembrar todos os segundos, todos os momentos? Porque não me deixam ser apenas eu própria? Os únicos momentos em que me sinto realmente uma mulher são quando estou em casa, sozinha, longe de todos os olhares condenadores, julgadores. Não sei porquê, tive o azar de nascer no corpo de um homem, apesar de sempre me ter sentido uma mulher. Nunca gostei de jogar à bola, de usar calças, de brincadeiras parvas. Como me recordo da primeira vez que a minha mãe me apanhou a vestir as roupas dela. Estava no seu quarto, completamente vestida com as suas roupas, debruçada sob o espelho, tentando aprender a usar um batom. Acho que ela já sabia… tanto que não ficou escandalizada. Tentou fingir que sim, e alertou-me da gravidade daquilo que estava a fazer, para nunca mais o repetir, e advertiu-me do perigo que seria se meu pai me apanhasse assim. Claro que eu disse para não se preocupar, que era uma brincadeira e eu nunca mais voltaria a acontecer.

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Tinha dez anos quando o meu pai me apanhou assim pela primeira vez. Nem disse nada… o seu olhar dizia tudo, e se na sua expressão facial havia algo que pudesse ser difícil de entender, a sova que me deu com o cinto não deixou margem para dúvidas. Comecei a perceber aí que nunca mudaria, pois nem por um momento me arrependi ou reflecti novamente sobre o que tinha feito. Da segunda vez tinha 16 anos. Tive nódoas negras durante 3 semanas, e o meu pai só me voltou a dirigir a palavra passado meio ano, ignorando as súplicas de minha mãe.

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Contudo, assim como da primeira vez percebi que nunca mudaria… desta vez percebi que nunca seria entendida. Por isso, aos 18 anos fui estudar para fora, trabalhando ao mesmo tempo num bar gay para me sustentar, e nunca mais voltei a casa. Sabia bem a vergonha que o meu pai sentia de mim, e dos comentários que corriam por toda a terriola. Aqui onde estou, os comentários prevalecem, mas aqui onde estou não preciso de me preocupar com ninguém. Quase consigo ser eu… quase.

6 comentários:

Mac Adame disse...

Filme bem escrito, este. Quase que me deixava enganar. Até já estava com a lágrima no canto do olho e a dizer "coitado/a".

Cati disse...

Boa descrição do drama vivido por quem vive aprisionado num corpo que não é seu... Muito sensível a descrição!

Um beijinho!

Coisas&Letras disse...

Aqui me provas-te que a imaginação é uma fonte inesgotável da condição humana... gostei bastante... em Coimbra nem sempre é fácil ouvir, ler ou estar com alguém assim... acho que contra mim falo... mas com a protecção deste ecrã posso dizer o quea cho mesmo que isso de alguma forma me atraiçoe... :)

voltarei para ter o prazer de ler outras estórias em vão...

Anónimo disse...

Quase ....não...diria antes que sim, consigo imaginar e ver esta "estória em vão".

Grande abraço

Maria Papoila disse...

Muito bem escrito.
Acontece tantas vezes, viver num corpo que não devia ser o nosso...

Sei que existes disse...

Tenho pena da mentes ignorantes, irracionais, que não compreendem ou aceitam as diferentes formas de pensar, sentir ou estar nesta vida...
Gostei muito deste teu post que nos faz reflectir um pouco.
Beijinhos grandes