quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Passei a primeira semana numa estranha paz. Ia levando e buscando de vez em quando Arjan à escola, e jantamos juntos um par de vezes. Ele perguntava a razão pela qual não vivia com a mãe, e porque nos tínhamos separado, e eu ouvia-me dizer o que tantas vezes antes ouvira os personagens de filmes dizer… “O papá e a mamã já não se davam tão bem, e foi o melhor. Mas está tudo bem…” – nem por isso estava. Não tinha conseguido, ainda, não sei porquê, ir a sua casa. Apesar de convencido das suas puras intenções, queria apurar melhor o papel de X em toda esta situação. Queria aparecer em casa de H e simplesmente perguntar, mas não achava apropriado.

Todavia, os pensamentos iam martelando, e convidei-a para jantar no Sábado. Estranhou, e fiquei com receio que pensasse que queria reatar o que tínhamos perdido. Quereria, no fundo, num nível mais inconsciente, e não me apercebera? Não, acho que não. Mas por outro lado… Será que me dava prazer a relação proibida com Godelieve de parte a parte?... Sim, dava. Mas apesar de neste momento a relação ser apenas proibida no que a Godelieve dizia respeito, não sentia como se tivesse perdido alguma da excitação. Vez por vez arrependia-me da decisão que havia tomado de estar tanto tempo sem a ver, mas simplesmente encolhia os ombros, pensando que não havia nada a fazer… E tinha-lhe mostrado, imaginava, que também eu tenho o meu papel de poder nesta estranha relação.

- Posso saber qual é o motivo deste jantar? – pergunta-me. Estamos no mesmo restaurante onde jantei com Godelieve. Tanto os pensamentos martelaram, que queria saber, não só o que se passava entre H e X, mas também saber até que ponto poderia sentir ainda algo por H. Vejo a mesma senhora que cantava da primeira vez em que ali estive, da mesma forma, no palco, soltando suaves notas que ondulavam até aos ouvidos dos presentes. O vestido era parecido ao preto que envergara da primeira vez, mas desta feita era branco. Reparo que também o padrão das mesas e das cadeiras alternara. Se da primeira vez as primeiras estavam revestidas por uma toalha branca e as segundas eram pretas, agora tinham alternado. Canta “Besame” duma forma tão perfeita que me deixa a pensar se não será nativa dum país de língua espanhola. Fá-lo bem, e chego a preferir a sua versão à de Diana Krall, que mais vezes ouvira nos últimos tempos. – Estás-me a ouvir? – pergunta.

- Desculpa, estava entretido a apreciar o sítio…

- Sim, é bonito… e a senhora canta muito bem… – se ela tentava perceber as razões pelas quais sugeri o jantar, eu tentava perceber o que a levara a aceitar tão prontamente. Não a estava a perceber. Não estava chateada, não estava triste. E estava bela, muito bela. Não trazia um vestido, mas ainda assim o requinte era algo que trouxera consigo. Uma saia branca, que se perdia um pouco na cadeira da mesma cor, uma camisa apertada, preta, e um lenço discreto a completar a noite branca e preta… – E…

- Sim, o motivo… Se queres que te diga, nada de especial. Só queria saber como estavas, e, apesar de tudo, não quero que nos afastemos e deixemos algum ódio a crescer entre nós… – Não sei se terei ido longe de mais. É que a frase parecia simples, mas sugeria-me que lhe pudesse sugerir algo de diferente…

- Não te preocupes… temos de nos adaptar… – esta forma como acabou a frase deixou-me, mais uma vez, a pensar… Dou um gole do vinho que desaparece do largo copo de balão, e penso no que quis dizer com aquilo. Estarei a ver significados onde não existem?... Acho que não, pois acabou a frase com o volume da mesma a baixar, não me olhando nos olhos, e falando mais para si do que para mim.

- O que é que queres dizer com isso?...

Passaram duas horas, e sinto o vinho percorrer, suavemente, as minhas veias. Vejo pela sua face ruborizada, que sente o mesmo. Tenho presente algum espanto com a maneira tão leve como correu todo o jantar, e igualmente, com o facto de estar a durar tanto tempo.

- Ok, mas não me enganas… Diz lá… o que é que querias dizer com aquilo? – volto a perguntar, acendendo um cigarro.

- Aquilo o quê? – Acho que está a ser genuína, e realmente não se lembra.

- Quando disseste que tens de te adaptar… – ela faz um olhar de quem se tenta recordar, e vejo, subitamente, esse mesmo olhar, ganhar algum brilho. Um brilho diferente, que para surpresa minha, me assusta. A surpresa prende-se com o facto de não perceber por que me sentiria mal caso tivesse alguém na calha.

- Oh meu querido… – este “querido” faz-me sentir algum desejo – Estás a querer saber mais do que aquilo a que tens direito… – mas que merda é esta? Agora decidiu comportar-se como Godelieve? De onde vem este mistério todo? E porque é que me faz sentir assim? No momento em que a ouço dizer isso, apenas a quero levar para casa. Penso em Godelieve, e não sinto uma réstia que seja desse estúpido amor que por si sinto, desaparecer. Não, não estou a perder nada de lado nenhum, nem a transferir nada de lago algum… mas então porquê? Acho que, em parte, é porque sinto como incrível o facto, caso esteja a ter algo com alguém, como me ultrapassou tão rápido… mas quem sou eu? A minha opinião acerca de mim nem é assim tão intocável que me permita achar como… difícil de esquecer… Ou será?

- Mas… Estás com alguém?

- Estou… – responde, ao agitar a sua chávena ligeiramente – Estou contigo, a toma café, depois de ter jantado. – Ainda que deteste esta sua resposta, percebo que apenas vou fazer figura de palhaço se continuar a insistir.

- Pois… eu sei…

Pago a conta de ambos, e estamos fora do restaurante.

- E a tua amiga?... – pergunta, tentando fazer um tom de voz que sugere despreocupação. Ou melhor. Eu quero acreditar, pelas razões em que já pensei, e que me custam aceitar… que tenta fazer um tom despreocupado…

- Qual amiga? – respondo, perguntando. Não combinamos nada, mas caminhamos, lado a lado, ao longo da rua deserta.

- A tua amiga…

- Oh minha querida… estás a querer saber mais daquilo a que tens direito… – o que sinto transforma-se dum segundo para o outro. Num primeiro momento sinto-me triunfante, pela maneira como consegui, com as suas próprias palavras, entrar no seu jogo e sair a ganhar. Todavia, no instante seguinte, penso que a nossa situação é diferente, e se há alguém, entre nós os dois, que possa ter algum direito em saber alguma coisa sobre eventuais terceiros… é H. Porém, não faz caso, nem se sente ofendida, o que em si é mais uma maneira de reagir que lhe desconhecia.

Gosto.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Pensar

Nem sei se estou triste ou contente. Nem sei se hei-de pensar ou não pensar. Pensar tem a magia de nos atirar para qualquer um destes dois campos. É das poucas coisas que é fácil de fazer, mas ao mesmo tempo custa. Muitas vezes, algo que é fácil, não custa. Mas pensar, basta querer. E o que descobrimos, pode custar. Podemos guiar o nosso pensamento para onde quisermos, mas e a partir daí? Talvez apenas o ponto de partida da reflexão dependa de nós. Falo por mim. Os meus olhos fazem-me voar, fazem-me entrar em cada realidade, fazem-me pensar. Olho à minha volta, calado, e tudo o que quero é pensar. Pensar sozinho. Penso nas pedras da calçada, nos senhores que trabalham neste café, nas nuvens no céu, penso em mim. Penso, mas não me farto de pensar. Acho que pensar traz mais consciência à nossa VIDA, especialmente quando saímos do nosso próprio corpo e pensamos uns metros acima, observando-nos completamente imersos numa realidade e numa sociedade que queremos conhecer. Vemo-nos como mais um, apenas mais um, e pensamos se é isso que queremos ser, se é isso que queremos fazer… Incrível como a insatisfação é tão humana. Talvez seja ela… ou melhor, de certeza que é ela que nos faz querer mais, que nos faz abrir os braços e agarrar o que queremos. Detesto a resignação. Detesto quando fechamos esses mesmos braços, e entramos numa senda interminável de dias que se passam uns atrás dos outros, agarrados a uma rotina que nos dá a falsa ideia de uma felicidade alcançada. Lá estou eu a falar no plural. Peço desculpa. Posso falar apenas por mim.

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Claro que depois podemos pensar no Caeiro. Questionar o que havia ao seu redor não era o seu forte, e ainda assim vivia feliz na sua VIDA descritiva. Mas… claro que pensava. Apenas não questionava. E isto… deita por terra a minha teoria. É que para mim pensar está indissociável de questionar. E é isso que me faz feliz. Tomar consciência através do pensamento, questionar, e mediante a resposta à minha própria questão, mudar, para ser mais feliz, para fruir mais da VIDA.

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Mas isso, claro, sou eu… sei apenas o que vai dentro de mim.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

A Amizade é Perene

Sentado naquele café, na esquina do aeroporto de Bratislava, ele pensava. Bebericava o seu expresso de qualidade duvidosa, levantava a cabeça, via as pessoas lá fora a fumar, táxis a passar, uma qualquer música no ar. De onde somos, realmente? Será que quanto mais andamos, mais perto estamos da resposta, ou mais perto estamos da impossibilidade de responder com precisão, a esta questão?... Talvez quanto mais andemos, mais pequenas casas tenhamos por todo o lado, nas ruas que corremos, nos bares em que nos divertimos e, especialmente, e nem que seja apenas um bocadinho, no coração das pessoas que conhecemos. Será possível fazer uma viagem completamente isolado? Nunca lhe acontecera. Há sempre alguém, ele achava, disposto a conhecer-nos e a ser conhecido. Uma parte dessa certeza residia nos dias passados, em que travara amizade com portugueses, espanhóis, franceses, italianos, lituanos, ucranianos, entre outros. Imbuído num espírito que tanto já fora o seu, o espírito de Erasmus, permitiu-se reviver um pouco da experiência que considera tão fulcral na sua VIDA. E que, mais uma vez, passa por conhecer, e ser conhecido. O seu próximo passo seria Barcelona. Encontraria amigos que não via fazia 3 anos. Como seria? Não tinha dúvidas que, quebrados os primeiros minutos, seria como se nunca se tivessem separado.

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A amizade é perene.

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Bratislava, 23 Novembro 2007, 11h27

Godelieve - ")

O caminho não é convidativo, e penso que pode começar a chover a qualquer momento, e a ideia não me agrada. Estou a caminhar há cerca de uma hora, quem sabe 6 ou 7 quilómetros, e vejo um bravo traço, indicador de rede, aparecer no meu telemóvel. Ligo imediatamente, sem mexer um músculo, tentando assim evitar a perda de rede, e é com satisfação que ouço uma voz, de alguém que está, nitidamente, a ter um mau dia, do outro lado.

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Sento-me no chão, encostado a uma árvore, enquanto espero a minha boleia. O meu temor confirma-se, e começa a chover. Inicialmente sinto umas gotas pequenas massajarem-me o rosto, mas segundos depois as suas amigas aparecer, e fazem-se sentir, frias, colando-se à minha pele. Estou feliz. Sei que não precisarei de caminhar horas a fio à chuva, por isso o temor que senti torna-se em algo de bom, que me faz, mais uma vez, sentir. Sentir, simplesmente. Fecho os olhos, e sinto o céu, desabando, pouco a pouco, oferecendo-me sensações várias. Por vezes junta-se o Vento, que aparece inesperado. Faz os meus pelos arrepiarem-se, e um tremor atravessa-me a direito. Estou bem.

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Chego a casa e encontro-a, como sempre, vazia. Todavia, este vazio não é mais aquele vazio que entrava dentro de mim e me deixava desamparado. Penso que, curiosamente, desta vez vou estar ainda mais tempo sem ver Godelieve que da anterior, mas, curiosamente, isso não me perturba. Questiono se será o facto de a sentir, cada vez mais, como minha, como parte de mim, e isso me transferir a segurança que preciso, ou se será o facto de desta vez as cartas estarem na minha mão… não chego a nenhuma conclusão.

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Passo o resto do dia numa estranha e nova paz, que me invade e me diz que afinal tudo valera a pena. Evito alguns pensamentos, a custo, como o facto de não ver o meu filho há algum tempo, e tenho algum sucesso, manipulando a minha própria vontade, e pensando apenas no que quero. Dura pouco. Ao pensar que não estou a pensar, estou logo, no mesmo momento, obviamente… a pensar. Pego no telefone, ligo para casa dela. Demora a atender, e estou pronto a desligar, quando ouço, do outro lado, a voz infantil da pessoa de quem tanto gosto… me perguntar: “Quem fala?”

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- É o pai! – ele dá um salto na voz, e sinto-o contente. Sinto-o a milhares de quilómetros de distância, talvez o sentimento de culpa que tento afogar a fazer das suas, mas sinto-o, por outro lado, chegar até mim. Há um momento de silêncio, e ouço uma voz masculina, por trás, perguntar quem é. Estou confuso. Tenho a certeza que é Y, o meu amigo de longa data. – Quem está aí, filho? – pergunto, na busca de uma confirmação.

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- Quem fala? – ouço-o.

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- Y? Que estás aí a fazer?

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- Ah, olá!... – sinto-o surpreendido.

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- Olha… eu sei de tudo o que se está a passar… e sei que estás bem… e que estás a atravessar o que estás a atravessar – a entoação sugere que se refere a Godelieve – Mas também sei que H – a minha… mulher… – não está na mesma situação que tu, e só liguei p’ra ver como estava, e acabei por aparecer para ver se estava tudo bem…

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- Estou a ver… Podes passar ao Arjan?... – converso um pouco com ele, combinamos que o vou buscar à escola no dia seguinte… mas não me sai da cabeça o facto de Y estar ali. Tento não dar importância, e pensar que está apenas com puras e boas intenções, mas é mais forte que eu, e a questão demasiado pesada para ignorar. O meu melhor amigo, a fazer-se à minha mulher? Não está… Mas… se estiver. Não percebo o quanto me sinto incomodado com isto… Talvez o facto de ter aprendido recentemente quem sou, esteja a relembrar-me, naturalmente, que foi… recentemente, e por isso há sentimentos que não conheço tão bem, ou sentimentos antigos que ainda sobrevivem, como este sentimento de posse que julgava esquecido, e que me faz estar incomodado e… ameaçado… Penso na conversa que tivemos no outro dia, e penso se lhe terá feito tanto sentido que tenha decido embarcar nesta aventura de se fazer o que realmente se quer.

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“Ele tinha razão… O meu casamento é uma farsa, e porquê ignorar perante mim mesmo que sempre me senti atraído pela sua mulher? E agora vejo-o com outra que me diz ser do outro mundo, que o faz sentir todos esses sentimentos que tanta inveja me quiseram… e separaram-se… não é mais a mulher do meu amigo… porque não ser verdadeiro comigo mesmo e assumir esta vontade, ser quem sou, como diz, e ir ter com ela??” – tento construir na minha cabeça o seu pensamento, e isso ajuda-me a amenizar um pouco o desconforto que me inundava. Tento entrar dentro dos seus pensamentos, e adaptá-los à minha própria filosofia, que lhe expliquei…

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Mas… sinto-me um pouco envergonhado, com o tão longe que fui, inventando reflexões, numa tentativa artificial de me tranquilizar. Sirvo-me de um whiskey, que será o único do dia, senti-me no sofá, e rio-me perante os meus próprios pensamentos e o quão complicado posso ser.

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Ele não está a tentar nada.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Godelievw - "(

Acordo a meio da noite. Penso se deveria acordá-la novamente e pedir para estar ao meu lado de manhã. Penso apenas, quem sabe, em pensar, não o penso fazer. Sinto-me bem, e com a confiança que estará ali. Curiosamente, sinto-me ainda com a confiança de que, caso não esteja, não me custará tanto a espera. Sinto-a mais como minha. Sinto frio, puxo o edredão que não sei como está na sala, e pouso uma mão na sua cinta nua. Penso no facto de estarmos na sala. Não queria estar noutro sítio que não ali. O seu quarto era uma hipótese que nunca contemplaria. Assim, aquela sala acaba por ser o nosso reduto, o nosso mundo, completo e decorado, onde não temos nada a não ser nós próprios, a presença do outro, que faz sentir qualquer um de nós mais pleno.

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Quando abro os olhos, constato que ainda dorme. Penso se terei acordado mais cedo para precaver a sua debanda, mas sorrio com esta minha reflexão sem sentido. Levanto-me, e preparo o pequeno-almoço. Sumo de laranja e umas torradas com manteiga. Talvez com o barulho da campainha da torradeira, que me avisa, Godelieve desperta. Não passam das dez horas. Sinto caminho livre para ligar a aparelhagem. Mantenho o Jazz, mas mostro-nos algo mais moderno. Diana Krall, Live in Paris, parece-me bem. Não quero muito pensar nas horas seguintes, mas é inevitável.

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Estamos sentados à mesa. Ela de robe, eu apenas de boxers.

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- Tens consciência que não saímos daquela porta desde que chegaste, e nem ligamos a televisão?... – pergunta, ao acabar de mastigar. Tem umas migalhas no canto direito dos lábios, já parcos em batom.

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- É verdade, não tinha pensado nisso… porque será?

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- Quem sabe o amor seja o entretenimento mais… entretido… – sugere, com um sorriso delicioso nos seus lábios. Adoro quando fala em amor. Mostra-me, como chegara, quem sabe, a duvidar, que toda a merda por que tenho passado, não foi em vão. Tenho ali algo, alguém. Todavia, de seguida, materializa o pensamento que eu tinha tido acerca das horas seguintes – Temos de começar a pensar ir embora…

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- Sim, é verdade… – quero perguntar como faz para desaparecer assim um fim-de-semana inteiro, sem dar satisfações a ninguém, mas não me apetece destroçar esta magia, e este não saber que tanto me apraz. Em relação à pessoa a quem mais deveria dar satisfações (reparo como evito a palavra mais apropriada), imagino, já que sei que está longe, numa das viagens de muitos nomes. Mas em relação a tudo o resto, a tudo e todos que a rodeiam, não faço a mínima ideia. Mesmo o rapaz que me trouxe até cá, quem é ele, e como pode ela confiar tanto assim em alguém, acerca de algo tão complicado?... Mais uma vez, não sei, nem quero saber…

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Ficamos uns momentos em silêncio. A maneira como concordamos o próximo encontro sempre fora feita com algum misteriosismo, tenha sido através de bilhetes no café, recados num colchão… pensando bem, não nos encontramos assim tantas vezes. Acho que, neste momento, ambos pensamos na melhor maneira de abordar a questão. Algo directo seria estranho. Algo como “encontramo-nos dia X à hora Y no local Z” seria algo a que não estamos habituados. Ironicamente, se o Theodoor que entrou por aquela porta era alguém decidido a ter tudo resoluto, explicado e sob domínio, o Theodoor que agora dava um gole no seu sumo de laranja, quase nu, diante da sua musa, era alguém que sabia, imaginava, o que seria expectável, ou não. E acima de tudo, sabia que aquilo que não era expectável era tão mais interessante que aquilo que era…

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Mas penso. Desta vez caber-me-ia a mim. Levanto-me, visto-me. Ela permanece na mesa. Está sentada na cadeira, um pouco de lado, perna cruzada e o cotovelo direito apoiado na mesma. Uma das suas posições-padrão, que tanto me agradava. Pelo recorte do robe vislumbrava a sua perna, bela e longa, que me deixava com vontade de me despir novamente. Terei mesmo de ir? Pensa em algo. Aproximo-me, dou-lhe um beijo.

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- Vais ouvir de mim. Daqui a 3 semanas. Encontramo-nos daqui a um mês. – tarde de mais. Estava dito. As palavras dispersaram e era já tarde para as agarrar e as deixar dentro de mim novamente. Mas não desesperemos. Consegui surpreendê-la.

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- Mas Theodoor…

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- Não te preocupes… – calo-a, com um breve beijo. Saio da sala, atravesso o hall, abro a porta, e estou no exterior. Está frio, e aperto mais um botão da minha gabardina. Descubro que não faço a mínima ideia de como vou para casa. Não me passa pela cabeça voltar a entrar. A minha saída fora demasiado triunfal para voltar a entrar a pedir informações…

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Tento ligar para um táxi, aproveitando os últimos traços de bateria, mas não me surpreendo ao descobrir não ter rede. Rio-me sozinho, acendo um cigarro, e ponho-me a caminho.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

No Fairy-Tale

Sugeri-lhe um café. Apesar de não ter vindo a ser frequente estar com ele, sentia-o completamente deprimido. Cada vez que o via, via-o com menos luz. Cada vez que o via, em mais partes o via, fragmentado. Estou no Tropical, dou um gole da minha mini, entretenho-me com a música que toca, enquanto o espero. Ele aparece passados quinze minutos. O seu sorriso nota-se esforçado.

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- Então rapaz, tudo bem? – pergunto.

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- Sim, sim, tudo bem, e contigo?

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- Comigo está tudo bem. Mas gostava de avançar logo esta parte do “tudo bem contigo” e ir logo directo ao que realmente quero saber, ok? – a sua cara é de surpresa.

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- Sim?...

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- Que se passa contigo?

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- Pá… acho que o que se passa comigo ninguém vai conseguir perceber… nem mesmo tu…

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- Tenta! - Ele faz uma pausa. Passa o Sr. Madeira e pede um café. Olha ao redor e espera um pouco, talvez numa tentativa que me esqueça da minha questão.

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- Sabes, acho que estou apaixonado… – Fico surpreso. Nunca pensei que fosse isso. A surpresa dá lugar à alegria, ainda que a incompreensão tenha permanecido. Pois se está apaixonado, porque anda tão abatido?

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- Mas isso é óptimo, pá! Mas está a andar para a frente? Quem é? Ela também gosta de ti?

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- Digamos que ela me deve a VIDA… - diz, em tom baixo, enquanto brinca com a colher do café, fazendo-a rodar vezes sem conta na chávena. Vejo-o misterioso, e não faço ideia do que vai dizer de seguida. – Sabes… depois do que a Andreia me fez, achei que nunca mais me apaixonaria por ninguém. Tínhamos tudo, estávamos prontos para casar, como tu sabes, e dizer-me, um mês antes do casamento… que havia muito que não tinha feito e queria fazer… tu sabes, pá… destruiu-me. – sim, eu sabia, na verdade. Já tinha passado mais de um ano, e o Paulo que eu conhecera morrera em muitos aspectos. O Paulo vivaz, confiante, deu lugar a uma sombra do homem que conhecera. E o que mais me preocupava era ter passado tanto tempo e ele nunca se ter recomposto… – Voltei-me mais para a escrita, e o mais estúpido, é que comecei a escrever como nunca o tinha feito antes. Digo-te, Filipe, eu estou a escrever muito bem, bem demais, sabes?...

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- Desculpa Paulo, mas estás apaixonado, estás a escrever muito bem, que é o que mais gostas de fazer… Então…

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- Eu estou apaixonado, só penso nela, só quero estar com ela, só a quero ver, e o pior… só a quero escrever… – acho que percebo.

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- Só queres escrever sobre ela?

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- Não, só a quero escrever a ela… ela é a personagem principal do meu romance!

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- Deixa-te de merdas! – digo, com um sorriso. Todavia, ele levanta a cabeça, olha-me bem fundo nos olhos e afirma, com uma convicção inabalável!

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- Filipe, eu estou a falar a sério! Eu estou a falar a sério. Isto é ridículo, eu sei, como o sei, pá! Mas é verdade.

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X

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Tenho pena do Filipe, naquele momento. Vejo a incompreensão inundar a sua expressão. Quantas vezes eu próprio já me massacrei, dando voltas e voltas à cabeça, sabendo não fazer sentido esta obsessão, até que me entreguei completamente. Só quero estar no computador, a escrever. Existo nesse romance, já a amei várias vezes, e por outras tantas ela já amou outro alguém. Acho que faço isso para me castigar a mim próprio pelos meus estúpidos sentimentos. Faço-a envolver-se com outras pessoas, sofro, e mais tarde faço com que tenham mortes horríveis e sofredoras, às mãos do meu personagem. Trago-a comigo sempre na mente, quando conheço alguém falo dela como se realmente existisse, apresento-a como minha namorada, dou as suas reais descrições e aí, nesses momentos em que consigo cativar a atenção de várias pessoas, fruto das minha boas descrições, aí sinto-me bem, sinto-me feliz, sinto que não estou só. Vou para casa com um sorriso nos lábios, enceno algumas conversas ao telefonem chego a casa e vou directamente ter com ela. Prolongo o livro, não quero que acabe, invento estórias paralelas, dou-lhe VIDA, dou-lhe mais VIDA, e sinto então, e apenas então, um pouco mais VIDA dentro de mim próprio.

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O Filipe olha para mim. Quer compreender, quer aconselhar, mas tem dificuldade.

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- Não sei o que hei-de fazer!... – digo, em desespero.

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- Paulo… eu acho que sei o que podes fazer. – o som tom é vincado. Parece realmente saber o que posso e devo fazer – E tu, se pensares, sabes que é o mais indicado. – dá uma pausa – Ouve, eu percebo a depressão em que entraste desde que a Andreia te deixou. Não te vou mentir, o que agora me contas é-me estranho, claro que sim, mas tu és meu amigo e eu estou ao teu lado seja como for. Eu acho que, no teu livro, a deves matar! E acho que até podia ser a tua própria personagem! - a surpresa toma conta de mim. Para quem estivesse a olhar de fora, sentiria como estranho o facto de, no início, eu falar com a certeza que falava e ele estar com uma cara de incompreensão, e agora ser exactamente o oposto. Não consigo descrever o ódio visceral que, naquele momento, tomou conta de mim.

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- Tu estás-te a passar? Não ouviste nada do que te disse? – atiro, arrogantemente.

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- Paulo, tem calma, eu só estou a dizer o que acho que seja melhor para ti! – está assustado.

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X

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Mais surpresa do que a que senti quando me disse estar apaixonado por uma personagem, foi a que senti ao ver o seu ódio quando lhe disse que deveria matar o seu personagem. Não quero pensar que está louco, é meu amigo, mas sei perfeitamente que não está bem, nada bem. Assusta-me o seu olhar. Falo um pouco com ele, tento tranquilizá-lo. Ele pede uma cerveja, levanta novamente a cabeça, e volta, parece-me, a incorporar o seu personagem, do seu próprio livro.

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- Ouve bem, Filipe… tu sabes que desde que a Andreia se pôs no caralho, os meus amigos, fruto de eu nunca aparecer em lado nenhum, foram desaparecendo. Gajas, não fodo nenhuma há mais de um ano. Não consigo abordar ninguém. As únicas vezes que consigo é quando sei que ninguém me conhece, e posso ser o outro eu, e falar à vontade da outra ela. Porque, verdade seja dita, as únicas pessoas que tenho neste momento… uma é ela, a outra está aqui, diante de mim, a dizer-me para a matar. Desculpa, mas não posso aceitar isso… – e dito isto, levanta-se. Fico a vê-lo sair do café, a minha preocupação é imensa, e fico com um medo enorme de estar a perder um amigo, e mais que isso, ver um amigo perder-se a si próprio.

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XXX

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Filipe, neste momento, está pleno de arrependimento. Um sentimento de culpa enorme assola-lhe o coração. Está sentado no seu sofá beije, o telefone no colo, a boca ligeiramente aberta e os olhos pregados no infinito. Quem lhe acabara de ligar foi a mãe de Paulo, passados 3 dias de ter estado com o amigo. Conta-lhe que encontraram o corpo do amigo, inanimado, no seu próprio apartamento. Estava deitado no sofá, com o seu livro imprimido descansando no seu peito, e um copo de uma substância ainda não analisada ao lado.

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Mais tarde, Filipe viria a saber que Paulo acabara o seu livro.

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“- Acho que o nosso destino pode ser apenas um – diz Pedro. - Quem sabe morrendo nos encontraremos em definitivo, e possamos estar um para o outro, um com o outro, para sempre.

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- Como assim meu amor? – pergunta a bela Andresa, deitada, descansando, depois de terem feito amor. Pedro levanta-se, serve dois copos de champanhe, uma para cada, e calmamente anuncia à sua amada:

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- O mundo é muito mais complicado do que tu possas pensar, minha querida. Se te dissesse a verdade, ririas de mim, e sairias porta fora. – Aproxima-se de Andresa, estende-lhe o copo – Apenas te posso pedir que confies em mim, e que bebas comigo.”

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- Que sabemos acerca um do outro? – pergunta-me. Lá fora anoitece. Antes de me perguntar isto pensava no quão mágico estava a ser passar toda uma tarde com Godelieve. Ter mais uma noite pela frente. Mais um dormir, acordar, e ver ao lado a pessoa por quem daríamos a VIDA no segundo seguinte. Se no dia anterior sentira o Theodoor renascer, agora vi-o dentro de mi, completamente recuperado, dono de si, não necessitando mais de disfarçar autoconfiança ou charme, mas vivendo estes atributos como se criados por si.

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- Minha querida… eu sei tudo acerca de ti que preciso de saber…

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- Ai sim? – pergunta, com um olhar disfarçadamente insatisfeito – Queres com isso dizer que não me queres conhecer mais? – sorrio.

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- Boa tentativa… Não… Conheço-te o suficiente para amar cada partícula do teu corpo, para querer beber cada palavra que digas ou olhar que me dás… – as palavras saem disparadas da minha boca em direcção ao seu ser. Talvez não quisesse ter sido tão poético, ou até sugerir que a amava, mas não me arrependia de o ter dito. O seu sorriso abre-se e é dos mais puros que a vi oferecer-me. Porém, não tarde a transformar-se numa expressão algo pensativa.

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- Mas… nem sabes o meu nome…

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- Não preciso saber… Que é que o teu nome me diria de ti?... Se pensares… as pessoas quando se apresentam, a primeira coisa que dizem de si é a que realmente menos diz… o nome… Apresentam-se quando no fundo estão apenas a dar instruções acerca de como ser chamadas… – ao ouvir-me falar percebo do sentido que faço, na medida em que nunca tinha posto em palavras estes pensamentos dispersos que por vezes me atravessam. – Qualquer pessoa pode ser um “Dennis”, ou uma “Anna”… Mas nem toda a gente pode ser tão bela e interessante como tu… ou como eu… pelo menos na parte do interessante. – sorrimos.

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- Estou a perceber. Assim como percebi essa modéstia disfarçada. Fazes-te modesto ao dizer que não te consideras belo, para dar mais validade a dizeres que és interessante…

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- Não preciso. Mas sim, deve ter sido por isso. Mas não preciso, sei que o sou. Especialmente, ou unicamente, desde que te conheci.

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- Como assim? – estou deitado de barriga para cima. Ela, de barriga para baixo, com o lençol pelos peitos, como num qualquer filme, apoia-se no meu peito. Sinto a sua respiração na minha pele.

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- Mostraste-me, tenha sido por querer ou não, o meu verdadeiro eu. O Theodoor. Que ama a Godelieve.

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- Amas a Godelieve… ou a imagem que fizeste da Godelieve?...

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- É exactamente o mesmo… - a minha resposta parece-me confundi-la – É exactamente o mesmo, porque as pessoas nunca serão, para nós, mais do que a imagem que temos acerca delas… eu nunca vou estar dentro de ti… - … - ou melhor, eu nunca vou estar dentro do teu ser, por isso nunca vou saber exactamente o que és… posso apenas ficar-me pela imagem que tenho de ti…

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- Então toda a gente tem tantas personalidades quantas pessoas conhece… ou quantas pessoas a conhecem…

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- Nunca tinha pensado assim… mas sim, acho que sim…

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- But looks can be deceiving… - responde.

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- Claro que sim… mas não contigo…

Godelieve 20 e Seis

- Por favor, não desapareças na manhã… – peço-lhe. Não me ouve, entregara-se ao sono. Não sei porque não lhe pedi isto enquanto me podia ouvir. Será que quero que desapareça mais uma vez, para me poder sentir miserável mais uns quantos dias? Será que retiro algum tipo de prazer, num nível mais inconsciente, desta sua constante ausência? Nenhum. Seria estúpido afirmar ter a certeza que nem num nível inconsciente retiro prazer, pois o inconsciente é o que é, mas não me importo, e afirmo-o, de mim para mim. O sofrimento que sinto quando separado, especialmente nestes últimos tempos, em que não tenho ninguém, vem apenas da sua ausência. O que sinto agora está a planetas de distância. O… Theodoor de agora sente-se uma nova pessoa em relação à personalidade que já o habitou, e quando com a sua Godelieve, cujo nome de nascença não sei nem quero saber, sente-se como a pessoa mais poderosa do mundo. “Não desejes nada, e assim terás tudo o que precisas para ser feliz” – dizem os budistas… Eu desejo tudo. Apenas desejo Godelieve, e isso, para mim, é, ou tem vindo a ser… tudo. E ainda assim, apesar de ir contra esses ensinamentos supostamente sábios, sei que neste momento, apesar de tudo desejar, tenho, realmente, tudo…

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Preparei um Martini, que tirei do armário de madeira castanha escura, e bebo, à janela. Godelieve dorme, nua, no tapete diante da lareira. É como se quisesse fazer da minha VIDA uma estória inventada, preparando-me os cenários inventados em que tantas vezes sonhamos estar. Não quero dormir. Olho ao redor e não vejo nenhuma televisão. Não a ligaria tampouco… A aparelhagem encontra-se a descansar das horas de música que nos proporcionou, mas peço-lhe um pouco mais. Dou uma olhada pelos cd’s, e todos me parecem ter a cara de Godelieve. Deixo a tocar Miles Davis. Acho que a razão de não querer dormir se prende com o medo de acordar sozinho.

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Tenho de o fazer.

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- Godelieve… – não executa nenhum dos típicos trejeitos de quem é acordada sem estar à espera. Limita-se a abrir os olhos, que pisca um par de vezes.

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- Que foi? – a sua voz, por outro lado, apresenta aquela típica rouquidão de quem passa dum mundo para o outro num abrir de olhos.

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- Preciso de te pedir uma coisa.

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- Que foi, querido, está tudo bem? – a maneira como me chama “querido”, não só desta vez mas de todas as vezes em que o faz, faz-me querer abraçá-la violentamente.

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- Promete-me que vais estar aqui quando eu acordar… - ela fixa-me por uns segundos. O seu olhar permanece inalterado. Conspira com seus lábios, que se abrem, quem sabe num sorriso misturada com uma frase…

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- Sim, querido, vou estar aqui contigo. Não te preocupes. – acredito plenamente no que me diz, e sinto a paz entrar no meu corpo. Deito-me ao seu lado, esqueço a dureza do chão, e adormeço, pela primeira vez em paz desde os últimos dias…

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Acordo. Abro os olhos e procuro-a com o olhar. O meu coração não quer fazer o esforço, mas sinto-o aumentar um pouco o seu ritmo ao escutar o meu olhar dizer que não a encontra. “Não é possível…”, penso. Questiono a sua promessa, e convenço-me que concerteza estará por aqui. Estranhamente, quando varro a casa com o olhar pela segunda vez, vejo-a, em frente à janela, de costas para mim, onde a encontrei na noite anterior. Veste um robe verde escuro, de seda, e bebe algo que me parece um sumo de laranja. Sinto-me repentinamente descansado, e volto a deitar-me, com os olhos abertos fixando o tecto. Penso no que pensei na noite anterior. Olhei à volta e não a vi. Terá sido o desespero, convencido de que o pior teria acontecido?... Ou aquela… eventual necessidade de não a ver, para que assim me pudesse sentir um traste?... Ridículo o pensamento. Estupidez a minha de questionar algo tão simples como o simples medo de não a ter… que me leva a prepara-me para o pior…

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Godelieve Vinte e 5

Ao fundo do hall, uma porta sedutoramente convidativa fala comigo. A ideia do que verei ao entrar anima-me. Tento apreciar este preciso instante. Mais uma vez. Tento apreciar o instante que antecede qualquer momento fantástico. Com Godelieve, ao contrário de com tantas outras pessoas ou eventos, a expectativa não era melhor que o acontecimento assim. Todavia, era delicioso aquele sentimento de se saber estar à beira de algo fantástico. Mas consome. Passa do agradável ao desagradável rapidamente, pelo que a gestão torna-se difícil e compele-me a dar uns ligeiros passos. Estou diante da porta. Pela frecha viaja alguma luz nervosa. Dou um subtil toque na madeira branca e vejo, não o salão onde a encontrei a primeira vez (a mente prega partidas, e aquela divisão era, no fundo, tudo o que conhecia desta casa), mas uma sala, impecavelmente decorada, nem por isso muito grande.

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Entro. Chega-me uma temperatura um pouco mais elevada, explicada por uma lareira, ao fundo, na minha esquerda. Duas poltronas esperam-nos, imagino, para mais tarde, diante da mesma. À minha frente uma longa mesa, com dois pratos preparados, lado a lado. Apesar da luz se apresentar, como disse, frágil, não necessitava das duas velas que tentam ajudar a uns centímetros dos pratos. Godelieve está em frente a uma janela, à direita. Está de costas. Vejo o seu longo vestido vermelho, acompanhado das luvas até ao cotovelo que combinam de uma forma sublime. Percebo que está vestida exactamente com a mesma roupa daquela outra noite. O cabelo, como sempre, impecavelmente arranjado, como se conhecesse apenas duas posições… ou apoiando seus delicados ombros, ou espalhado no colchão, emoldurando a sua exótica face. O som que chega aos meus sentidos é o mesmo que ouvia no carro. Confirmo o que tinha pensado. Godelieve não deixa nada ao acaso.

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Não se vira. O meu coração acelera, à medida a que caminho na sua direcção. É o toque. Toco-lhe num ombro. A sua mão esquerda sobre, pega no meu braço, e faz-me abraçá-la. Ainda não vi o seu olhar. Mas o toque. No momento em que lhe toco, todos os sentimentos devastadores que ainda tentavam resistir são esquecidos duma maneira que me deixa a saber… a pensar, que nunca mais virão. Sai tudo de mim. Como se uma droga se tratasse, tudo o que sentia quando longe de si é esquecido e desvalorizado nos momentos em que lhe toco, em que a sinto. Abraço-a com força, fecho os olhos. Tento concentrar-me. Tento encontrar-me. Sinto-me feliz.

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- Vamos continuar e encontrar-nos assim? – não me vê, mas imagino que adivinhe o meu sorriso. Ela volta-se, e o seu olhar agarra-me.

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- Não fales… – ordena, gentilmente, colando o seu indicador aos meus lábios. O beijo. O beijo é sempre melhor do que alguma vez damos, entrando numa escalada aparentemente sem fim. Tudo passa. O que sinto naquele momento é que, apesar de saber que tudo passa, momentos como estes ficaram sempre. Mas… não falo, não penso. Pensar na sua presença por vezes confunde-me. Como um esforço inglório de equilibrar a reflexão com os sentidos, que exaltados voam.

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Ela sorri, com um sorriso estranhamente mais puro que o normal, e diz-me que a comida está a arrefecer.

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- Cozinhaste? – pergunto. Não sei porquê, não a imagino a fazê-lo. Penso neste meu pensamento, ao caminhar em direcção à mesa, e reparo na percepção tão distorcida que terei dela. Sinto-a, parece-me, não como um ser humano, mas como uma espécie de deusa, boa demais para realizar as tarefas mais mundanas e normais.

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- Depende… se gostares, sim… – responde, divertida.

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Por momentos esquecera-me de onde estava. Acabamos de comer, algo delicioso cujo nome não sei nem perguntei. Estamos sentados nas poltronas, conversando pouco. O silêncio nunca é desconfortável, pois é substituído por olhares e sorrisos que me fazem sentir noutro lugar. Por momentos esquecera-me de onde estava.

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- Como é que te lembraste de nos encontrarmos aqui? – a minha expressão completa a minha pergunta. Ela levanta-se, e senta-se no meu colo.

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- Querido, não te preocupes. Sabes que nunca te poria em perigo. – sei? – E queria estar contigo no sítio onde nos conhecemos. Não reparaste em mais nada?...

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- Reparei. Estás fantástica. Godelieve…

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- Theodoor… – sussurra, antes de me beijar, acariciando com os seus finos dedos a minha face.

Godelieve 24

A viagem revela-se demorada, e quando dou por mim, estamos a sair da cidade. Vejo os prédios desaparecerem, sendo substituídos por casas, que aparecem esporadicamente, cada vez menos. Estas são substituídas por densos arvoredos, isentos de luz. Olho para a frente e vejo o calado condutor, seguindo o seu aparente único objectivo de me conduzir. Não fala, nem quero que fale.

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Não sei quanto tempo mais tenho de viajar, mas sinto que o que vinha a sentir estes dias vai ficando um pouco agarrado à estrada. A ambivalência de sentimentos que me fazem estremecer deixa-me confuso. O cansaço vai desaparecendo lentamente, e sinto uma tímida imagem do que já sentira nos momentos que precediam os nossos encontros, nascer dentro de mim. Quero agarrá-la com todas as forças, abraça-la e fazê-la crescer. Mas revela-se difícil, e quando mais me esforço por o fazer, mais escorregadio sinto esse sentimento.

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Começo a perceber onde estou, e não quero estar onde estou. Sinto-me confundido, pois não creio possível que ela me tenha feito vir até ali, não é possível. O condutor faz o carro abrandar subitamente a sua velocidade, que me diz que afinal o que parece… é. O carro pára, e a luz dos faróis projecta-se nuns longos e sumptuosos portões de barras verdes. Ao redor dos mesmos estendem-se metros de um alto muro, a perder de vista. Não posso estar ali. Ele nada diz, tampouco o vejo a accionar qualquer botão, mas os portões abrem-se, desejando-me as boas vindas. A estrada deixa de ser de terra, e viajamos sob um tapete de paralelos perfeitamente alinhados que nos deixam a ideia de deslizar sob o mais fino alcatrão. A curta estrada abre caminho entre um vasto jardim, povoado por várias árvores altas e assustadoras ao luar, e acaba numa rotunda à volta do mais sublime chafariz. O carro pára, e vejo à minha direita, através da janela entreaberta, a mansão onde algumas vezes já estive. Volto a entrar dentro de mim, e entrego-me às evidências. Não estou confundido, não estou a sonhar. Estou mesmo ali. Saio do carro, e admiro a casa de aspecto antigo, apesar de impecavelmente restaurada. Ouço um barulho atrás de mim, volto-me, e vejo o carro desaparecer, mergulhando na escuridão segundos depois. Nada a fazer agora. Claro que não voltaria atrás agora, mas sentia-me bem com a segurança de que o podia fazer a qualquer momento…

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Acendo um cigarro, e fumo metade cá fora, pensando no que me esperará lá dentro. Sem pensar, lanço-o para o chafariz atrás de mim, e decido-me a entrar. Subo as escadas. Não bato à porta, limito-me a abrir. Vejo o imenso hall que noutras vezes já me recebera.

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- Olá! Estava a ver que não vinha!

- É verdade, tive umas reuniões de última hora, mas felizmente tudo correu bem e consegui articular. De qualquer maneira, não perdia esta festa por nada! – digo, hipocritamente, vendo-o diante de mim, sorrindo abertamente e acreditando nas estupidez que sai da minha boca.

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- Sim, porque é um grande feito! Festejar a reeleição em eleições completamente manipuladas… – diz-me, baixinho e ao ouvido, a minha mulher. Concordava, mas estava a tentar não pensar nisso, para não me oferecer uma razão para ir embora nesse mesmo momento.

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Deveria ter ido embora? Acho que se fosse hoje, nem teria aparecido, pois o facto de ter ido ia contra toda a minha filosofia recentemente adquirida. Honestidade comigo próprio. Mas… deveria ter ido embora, sabendo o que sei hoje? Não. Pois se tivesse ido embora não estava hoje onde estou, a escassos momentos de a encontrar.

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Ele volta a abordar-me, e trás à baila assuntos que preferia não discutir. Apesar da minha importante posição, orgulho-me de permanecer tão neutro quanto possível. Não faço parte da lista que está no poder, mas não faço também parte de qualquer ideologia da oposição, pelo que consigo serpentear amigavelmente entre os dois lados, esquivando-me tanto quanto possível. Contudo, as abordagens e convites são cada vez mais frequentes…

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- Digo-lhe, aqui ente nós que ninguém nos ouve… isto está de uma maneira que não se aguenta! A oposição não se cala, não pára de inventar falsa informação – esforço-me por não me rir. Essa falsa informação não só não é falsa, como se prende, na sua grande maioria, precisamente com a pessoa com quem falo neste preciso instante. O movimento da minha cabeça sugere, imagino, que até estou a compreender o que quer dizer – e nós, por mais que tentemos, estamos a ver como complicada a tarefa de trazer a verdade junto da opinião pública! Por isso é que uma pessoa com tão boa reputação como o meu caro seria uma excelente mais valia para o nosso partido, pois poderia trazer um pouco de bom senso para esta gente toda…

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- Sim, percebo, mas… – não consigo acabar a frase, pois sou interrompido.

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- Ouça, não tem que dizer nem que sim nem que não agora, só gostava que conhecesse o nosso director de controlo de informação – hã? - e ouça o que ele tem para dizer… vai ver que vai ficar a ver as coisas duma outra perspectiva! – afirma, tocando-me gentilmente no braço, sugerindo que o acompanhasse. Finjo que não percebo a mensagem indirecta, e afasto-me lentamente, circulando pela sala, com o olhar a poisar de canto em canto, e a ser constantemente puxado, como se dum íman se tratasse, para o mesmo sítio, puxando-me e deixando a minha concentração em fosse o que fosse ser abalada. Ele volta à carga, e diz que encontrou o director.

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- Venha comigo, se faz favor. Fazia-me mesmo muito gosto se o conhecesse…

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Pelo caminho passa um empregado com uma bandeja cheia de copos duma qualquer bebida. Agarro uma, dou um gole, e tenho a agradável surpresa de descobrir ser Licor Beirão. Chegamos ao encontro do director. Era o que me faltava… Director de Controlo de Informação… como quem diz a pessoa que decide o que passa e não passa nos meios de informação do estado. Em outros países isto tem outro nome…

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O director começa a falar sobre a necessidade dum controlo rigoroso para evitar a disseminação de notícias “completamente ridículas” que já existe noutros meios “menos oficiais”, falando duma qualquer conspiração ardilosa para derrubar o governo. O que diz faz-me tão pouco sentido que não tenho dificuldade alguma em me distrair, entretendo-me a olhar à volta, talvez num esforço inconsciente de encontrar mais uma vez esse vórtex que sugava toda a minha atenção. É quando estou a tentar olhar para o meu interlocutor, fingindo algum interesse…

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Parece que foi ontem. O sítio é o mesmo, mas sinto-o hoje como completamente deslocado de si mesmo, talvez como eu próprio, que nessa noite comecei a sair de mim, para me ir buscar e trazer de volta o verdadeiro eu. Parece que foi ontem.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Westland Story Twenty-Three

Não demorou muito a sair de casa. Disse-lhe que eu sairia. Não aceitou. O pequeno não percebia o porquê de tudo o que se passava. Dizia-lhe que ia correr tudo bem. Mas não ia, sabia-o bem. Ela não me colocou quaisquer restrições em relação a vê-lo. Mas não conseguia ainda entrar em sua casa e enfrentá-la. Enfrentá-la seria o mesmo que enfrentar o meu passado… e o passado, já não existe.

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Eu reparava que as pessoas reparavam no traste em que andava. Tentava convencer-me de que tudo correria bem, mas a cada segundo que passava queria estar com Godelieve. Massacrava-me a ideia de poder estar com ela tão facilmente, mas de tudo o que isso podia implicar. Não percebia como me agarrava tão incondicionalmente a estes trunfos estúpidos e sem qualquer sentido. Mas acho que a verdade é que, se dantes não queria parecer desesperado, ainda que apenas estivesse ansioso, desta feita não queria parecer desesperado, pois o desespero era tudo o que eu era nestes dias.

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Bebia todos os dias, respirava nos intervalos dos cigarros. Pensava, planeava cada segundo da próxima vez que me encontrasse com ela. Não deixaria mais no seu campo a decisão de quando nos encontraríamos. Queria pedir-lhe para deixar o seu marido, esquecendo o que isso poderia implicar para ambos… queria tê-la todos os dias. Por sentir uma panóplia inexplicável de sentimentos pela sua presença, e, talvez, para saber que tudo o que tinha perdido não tinha sido em vão…

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Sabia que, uma vez com ela, tudo voltaria ao caminho certo. A confusão que sentia dentro de mim dissipar-se-ia, e viria com os seus beijos a clareza de espírito que tantas vezes me habitava desde que a conheci, e até ver a minha VIDA mudar…

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Voltar para casa e não ter ninguém à espera, ainda que tantas vezes chateada, revelava-se mais difícil do que alguma vez imaginara. A solidão ecoava nas paredes e entrava dentro de mim como um relâmpago imperfeito… sem luz, apenas o trovão. Passava as noites nos bares, numa demanda de ver quem queria ver, mas vendo apenas fumo, dentro e fora de mim. Via os dias passarem lentamente, mas a anunciarem-me frequentemente do que viria no dia 21. Fazia, dentro de mim, uma contagem decrescente, esquecendo o pânico de não saber ao certo onde nos encontraríamos.

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A minha única solução era ir ao café, e esperar vê-la.

O dia chegara, e o dia seguinte avisava-me que não trabalharia. Queria olhar para Godelieve apenas uns segundos antes de a agarrar e trazer para minha casa. Queria olhar para Godelieve e perder-me outra vez dentro de si. Queria olhar para Godelieve.

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Não fiz a barba, estava com o tamanho ideal, e que Godelieve já me confessara gostar. Vesti-me da melhor maneira possível, coisa que não fazia, fazia muito tempo. Não sabia a que horas nos encontraríamos, e por isso fiz por estar no café às 19h. Café atrás de café, brandy atrás de brandy. A espera, que sempre esperara evitar, revelava-se pesada e difícil. Nos encontros anteriores, sempre encontrara a solução de chegar na hora exacta, para diminuir esse período, que tantas vezes é agradável, quando acompanhado da expectativa, mas que com Godelieve, fruto da incerteza que me oferecia constantemente, se transformava em ânsia e dúvida. O brandy adormecia alguns sentimentos, mas fazia outros despertar violentamente. Fazia por beber cada copo lentamente, queria estar bem quando chegasse. Mas não chegava. 21h30. O esforço de manter a coerência e a sobriedade revelava-se inglório. Ouço a porta, pela milésima vez, ranger, e levanto o olhar, já sem esperança. Errado, de novo, vejo um jovem mal vestido entrar. Volto a baixar a vista, que é presenteada por uma imagem diante de si. Percorro a figura que vejo diante de mim, e descubro ser o mesmo maltrapilho que entrara segundos antes.

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- Que é que queres? – pergunto, mal humorado. Ele nada diz. A sua mão entra no seu bolso, e volta a sair, acompanhada dum papel amarelo. Dou um longo suspiro, sinto-me mais um pouco derrotado. “Não quero mais jogos… não agora”. O rapaz nada diz. Pego no papel, desdobro-o, e vejo apenas uma instrução. “Vai com ele.” Quero que seja tão simples como parece, e que não tenha mais nada, seguidamente, a não ser ela própria. Pago, e saio com ele. O carro é preto e, para surpresa minha, está impecavelmente limpo, e é o último modelo da Mercedes. Abre-me a porta de trás, entro e ouço Nina Simone. Acendo um cigarro, abro o vidro, e deixo-me guiar, sentindo, mais uma vez, o Vento passar por mim e dizendo-me que em segundos estaremos juntos.

Westland Story XXII

Vejo a confiança com que me falava desvanecer lentamente. Vejo que batalha para se mostrar forte, mas os seus olhos, subitamente molhados, dizem o contrário. Acho que, no fundo, e apesar de ter a certeza do que se estava a passar, ela queria que fosse mentira. E eu? Quereria eu que fosse mentira? Vejo o meu futuro diante de mim, a inevitabilidade de ver o meu filho tirado de mim. Quereria que fosse mentira? Sabia que podia tentar, e provavelmente conseguir, fazer as coisas de maneira a ficar com ele. O sistema é tão mais falível a nosso favor quanto mais alto nos encontramos na hierarquia… pelo menos em Hetwestenland… Mas fá-lo-ia? Não podia fazer. Tinha acabado de admitir a verdade que tantas vezes já me tinha pedido para existir. Tendo dado esse passo em direcção à honestidade connosco próprios que ultimamente tanto apregoava, odiar-me-ia muito mais se voltasse atrás neste momento. Quereria eu que tudo fosse mentira, que nada se tivesse passado. Sim, queria.

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Ela senta-se.

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- Ouve… - já não disfarça – Não sei porque andas a fazer isso… não sei que problemas no nosso casamento te levaram a isso. Mas eu não quero ir embora, sabe-lo bem… - desliza no sofá e apoia uma mão na minha perna. O meu olhar permanece colado à parede. Não a consigo encarar – Eu não quero ir embora… por mim, pelo nosso filho, e por ti, porque – a voz fraqueja – porque ainda te amo… e só quero que me ames de volta, e que voltemos a ser o casal feliz que sempre fomos… – doem-me aquelas palavras. Não sei qual a mentira maior… a minha mentira dos últimos tempos, ou a sua de sempre. Contudo, sei que não devo, não posso nem consigo encetar agora uma conversa acerca da irrealidade que era a nossa felicidade – Não dizes nada? – permaneço calado. Sinto raiva. Não percebo exactamente do quê, ou de quem – Acho que podemos conseguir ultrapassar isto… se me prometeres que acabas tudo, eu posso ficar, e podemos dar a volta por cima disto… - diz-me, baixinho e imagino, sensatamente. A sugestão de que tinha tanto medo aparece nos seus lábios nesta frase… Era-me difícil pensar que preferia que nada tivesse acontecido… mas não se compara a dificuldade de realmente me ouvir a mim próprio admiti-lo.

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- Não consigo… desculpa… – os meus pensamentos são apanhados de surpresa com o que sai da minha boca. A minha expressão permanece impassível, mas vive dentro de mim uma surpresa e uma dúvida que não tinha conhecido nunca. Senti-a tudo aquilo, tudo o que tinha com Godelieve como um vício, um vício terrível que não conseguia, e nem queria largar. O pior de tudo, e o que me deixava com uma dor num qualquer sítio desconhecido do meu corpo era o facto de não saber se valia a pena. Estava a arriscar, a deitar a perder tudo o que pensava ter, a troco de uma incógnita constante.

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Ela levanta-se. Dá meia volta, uns passos, e entra no quarto. Volta passado uns segundos com um cobertor e uma almofada, que deixa no sofá. Mexo o olhar, pela primeira vez em largos minutos, e vejo-a desaparecer, fechando a porta atrás de si. Sentia-me sozinho na cidade inteira. Imaginava Godelieve por aí, com outro homem, com o seu marido, na cama, a ver televisão, a fazer fosse o que fosse… imaginava-a com outro alguém, via-me ali, completamente sozinho de tudo e de todos, e nascia um mim uma raiva que, imaginava, me poria a pontos de matar a pessoa com quem estivesse em vez de mim.

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A garrafa de whiskey dizia-me que sim à distância de um braço. Não ligo a aparelhagem, não quero ouvir nada a não ser o Vento soprar entre os prédios de New Eagles e os carros ao fundo. Estou no parapeito do meu terraço. Vejo a cidade adormecer lentamente. A visão vai ficando turva, o pensamento muito mais. Quero sair de casa e ir buscar Godelieve e desaparecer para sempre. Vez por vez vou tomando consciência dos pensamentos descabidos que tenho, mas afasto a razão, e quero abraçar qualquer estúpida iniciativa.

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Saio de casa. Levo a garrafa na mão, sem me preocupar o que o porteiro, ou os vizinhos pensarão. A verdade é que quero sair dali o mais rápido possível, e quero sair de mim, coisa que apenas o álcool me ajudará a fazer naquele momento.

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Pouco recordo da noite que passou. Lembro-me dum par de putas no meu colo que afastei, insultando-as… lembro-me do chulo delas a dar-me empurrões enquanto eu lhe pedia que me esmurrasse. Lembro-me de pagar quase 10 vezes mais ao taxista que me trouxe a casa. Lembro-me de acordar, de manhã, vestido, no sofá, e ir trabalhar, com a barba por fazer e a mesma roupa de há dois dias…

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Westland Story Twenty-One

Quando abro os olhos, vejo a sala inundada pela luz natural. Não dormi em casa. Dou uma olhada ao telemóvel e vejo 6 chamadas não atendidas e umas quantas chamadas. Creio ser inevitável vê-la voltar à mesma condição de há umas semanas atrás, ao seu modo de “incrivelmente zangada”, e sinto o quanto não me apetece ir para casa. Pensando bem, acho que a vou ver mais zangada do que alguma vez vi. Tem razão, mas que posso fazer?...

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Rodo o pescoço, e percebo que me encontro sozinho. No lugar do seu corpo vejo um colchão vazio, onde posso ver, escrito com, parece-me, batom vermelho “Dia 21”. Não faço ideias das horas a que espera que nos encontremos, ou do local, mas não quero pensar tanto neste momento. Olho para o relógio, 6h30, dia 10. Onze dias antes que a possa voltar a ver? Entra dentro de mim uma sensação desconfortável, como se começasse a esperar por esse dia a partir desse mesmo segundo. Visto-me. Sinto um sabor não tão agradável na boca, e bebo uma taça de champanhe quente.

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O dia de trabalho passa facilmente. Encontro-me numa posição em que posso escolher o trabalho que posso fazer. Ao longo do dia, ia pensando se deveria tentar contactar Godelieve, para quem sabe marcar um encontro numa data mais próxima. Não me seria difícil fazê-lo, mas percebo rapidamente que o mais indicado seria esperar. Não consigo perceber bem onde ela quer ir com a nossa relação, e parte de mim receia que o que lhe interesse seja o desafio, a surpresa, e o controlo. Apenas o controlo me incomoda um pouco. Não porque esteja desesperado por o ter, mais por ser inversamente proporcional aos seus outros dois interesses. Devo desafiar esse controlo, para assim a surpreender. Todavia, se a contacto tentando arranjar um novo e mais próximo encontro, pode ver em mim alguém desesperado, e já completamente apanhado. O que a pode levar a desistir.

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Estes pensamentos vagueiam pelo meu estar ainda quando vou para casa. Caminho, fumo um cigarro, e vejo-os passear por mim, sem me transmitirem grande certeza acerca seja do que for. São meras hipóteses, meras cartas, ou trunfos, que devo guardar, sem sequer saber se estou, ou não, a fazer bluff.

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À medida que me aproximo do meu prédio, preparo-me para ver uma cara perfuradora. Entro em casa. Ela não está chateada. Sorri e diz que percebe se tive de trabalhar até tarde. O meu espanto é enorme, mas sinto-me felizardo. Mas este estado ainda melhor, quando me diz que me preparou um banho de imersão.

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Entro no elevador. O cenário seria demasiado irreal e até aborrecido. Perderia todo o respeito que ainda tenho por ela se assim me recebesse. Fica, contudo, na minha mente, aquele banho de imersão, a ouvir John Coltrane. Entro em casa. Não está, ainda assim, tão zangada como imaginaria. Parece-me mais leve.

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- Olá, tudo bem? – não sei bem o que responder. Não estou tão habituado a este comportamento imprevisível.

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- Hum… – não chego a articular alguma palavra que se perceba. Tampouco tenho tempo. Volta a pegar no discurso.

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- Olha, como fazes parte disto, acho que devias saber que nos vamos divorciar, e que vou ficar com o nosso filho!

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- O quê? – não me vejo, mas sinto a fúria ascender ao meu olhar. Não me interessa se sou eu que estou a fazer toda a merda, não me interessa se é ela quem tem o direito de ficar com o nosso filho. A única coisa que me interessa é que não o vou deixar, e que vou puxar de todos os cordelinhos possíveis para que isso não aconteça…

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- Não tens muita opção, por isso não te ponhas a dizer que vais lutar por ele e não sei quê… – diz, calmamente. Não sei se está mesmo calma, ou a controlar-se – É que tenho provas que me andas a trair! – dispara. Apenas algumas palavras, mas que me atingem em cheio e me deixam a pensar em como é que tem provas…

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- Hã?... Provas, que provas?... Eu…

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- Não preciso muito. Tu vais acabar de o admitir. Diz-me. Andas a trair-me, não andas?... – confunde-me a sua atitude. Não sei se por estar cansado, se por me sentir derrotado com as suas palavras, se por tudo junto, deixo-me cair para trás, afundando-me no sofá. As palavras deslizam vagarosamente…

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- Não te estou a trair… mas ando a dormir com outra mulher…