segunda-feira, 21 de julho de 2008

Viver

Vejo o espanto nos olhos da pessoas ao meu redor como o meu motor, aquilo que me dá energia para continuar… é-me difícil, por vezes… tantas vezes… acompanhar as expectativas que deixam em mim, e isso materializa-se numa vontade cruel de dar dois passos e comprar um grama. Incrível como aquilo que funciona como motor também, ao mesmo tempo, tanto nos pode desacelerar…

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Sento-me no sofá, vejo as pequenas nuvens provenientes do chá, que arrefece, e penso nisso. Sei que não o vou fazer, mas, não sei porquê, quero imaginar que sim. Vejo-me a sair, olhar à volta para ter a certeza que não sou seguido, chegar à estação central, e apenas pedir meio grama a Magnus. Não preciso de dizer mais nada. Não preciso de lhe dizer que tipo de droga quero, não preciso de lhe dizer para não me enganar, não preciso de mais nada senão a mera frase e um par de notas… Vejo-me a sentir a adrenalina expectante, pelo que se avizinha a um par de minutos, nascer dentro de mim, proporcionando-me um prazer quase tão gratificante como o efeito da droga propriamente dito. Entro na estação, deixo 5 coroas na máquina, e vejo as portas do quarto de banho a abrirem-se. Vejo-me a pensar no quão quero usufruir o momento, e volto para o exterior, onde fumo um cigarro, para que tudo esteja como deve estar, e para poder ficar no quarto de banho o tempo que me apetecer. Vejo-me a voltar a entrar, a ignorar a cara que o porteiro faz, fechar a porta, arregaçar as mangas. Tiro o cinto, aperto-o no braço, até ao ponto em que dói e fica roxo. Pouso os óculos no chão, num sítio que não me faça, daí a uns minutos com o equilíbrio a menos de 100%, os pisar. Tiro a agulha do invólucro, faço a sopa, e vejo-me a entrar naquele pico que me deixa num outro lugar, num outro lugar onde… tudo não é melhor, mas tudo não é o que é aqui. Aquele lugar que dura apenas um determinado período de tempo. Vejo-me a encostar-me para trás e a entrar em prazer indescritível. Vejo o tempo passar, e vejo-me sair do quarto de banho. A cara do porteiro… não a consigo ignorar... vejo-me a pensar no quão filho da puta que ele é, e apetece-me matá-lo. Saio, vejo o sorriso de Magnus e apetece-me atirá-lo para a frente do metro, por ter agitado diante do meu nariz o produto! Mas então?... Vejo-me a pensar nos últimos dois anos… na última vez que consumi, uma semana antes de ir para a desintoxicação, um mês e qualquer coisa antes de ir para a Comunidade Terapêutica. Vejo a cara dos meus colegas de recuperação, dos que tiveram sucesso e dos que não tiveram, e vejo o seu olhar de desilusão, que compete com o meu inexpressivo, em completo desalinho com a miséria e vontade de desaparecer que vai dentro de mim. Estupidamente, vejo-me a querer consumir, comprar mais, apenas para que não sinta esta vergonha que se abate sobre mim. Vejo-me a ligar aos meus pais, perguntar como vão as coisas, e dizer que gosto deles… apenas numa tentativa completamente frustrada de me mostrar que sou um bom filho, que me preocupo, e que nada muda apenas com um consumo. Vejo-me a, antes de ir para casa, comprar uma garrafa de vodka, que sei que vai acabar nessa mesma noite. Vejo-me a pensar que não tem mal algum, pois é o que toda a gente faz de vez em quando, beber um copo… vejo os dias passar e não sei se me vejo no dia seguinte a ir outra vez ter com Magnus, se a beber uma garrafa de vodka todos os dias, se a ter uma overdose, se a me suicidar mais tarde, se a entrar em outro tratamento onde terei, mais uma vez, de conviver com os erros que cometi e nunca deveria ter cometido… quando tudo estava na minha mão, quando não podia já culpar a minha má infância, os meus momentos difíceis… consegui falhar de novo… vejo o peso desse falhanço ser demasiado pesado para ter de o enfrentar todos os dias, e vejo-me a desaparecer, um dia, do tratamento, acabando a dormir, completamente pedrado, num passeio de Oslo. Vejo-me a acordar e não conseguir lidar com a cara das pessoas que passam que, não conseguindo mentir, me mostram o lixo em que estou… vejo tudo isto e muito mais, num ciclo vicioso de falsas razões, pretextos e antecedentes que acabam por ser consequentes, consequentes que antecedentes acabam por ser, tudo num circulo interminável que me leva à morte, destruição… ver a minha VIDA passar ao meu lado sem que eu faça algo…

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Dou um gole no chá preto, e sinto a vontade de viver isso tudo. Penso na razão por que o sinto, e não consigo, como nunca consegui, encontrá-la. Apesar de tudo, penso na maneira como aprendi a viver com esta grande questão e escolho… viver…

sábado, 19 de julho de 2008

Godelieve 50

- Não sei se bebemos um whiskey ou partimos já… – diz-me, após os nossos lábios negociarem tréguas. O calor que sentia dentro de mim impelia-me para desaparecer no mesmo momento, fosse para onde fosse, mas a certeza que nessa noite era apenas minha, e o conforto do lugar onde me encontrava pedia-me para ficar um pouco mais.

- Se podemos ter tudo, porquê escolher? Vamos ficar, beber um whiskey com calma… adiar o… prazer. – sugiro, com um sorriso que levanta outro no seu olhar.

Porém, vê-la diante de mim, vestida, era demasiado pesado. Esperar segundos que pareciam horas revelava-se difícil, na ânsia de ter na minha mão as horas que pareceriam segundos. Não tinha dúvida nenhuma que, pelo menos nesses momentos em que a tinha a uma palavra de distância, não sentia nada a não ser paixão e um amor doloroso. Saborosamente doloroso. Os conflitos dentro de mim apontavam todos no mesmo sentido. Rebentar e agarrá-la, grudar-me ao seu corpo e explodir.

- E se não nos tivéssemos conhecido? – pergunta-me. Não sei. Ou sim, sei. Sei o que seria de mim se não a tivesse conhecido. Seria a pesada leveza de espírito que apagava o meu ser.

- Não sei nada de quem eras… até pouco de quem és. Mas eu sei quem – não – fui e vejo essa pessoa a planetas de distância… – dou uma passa no milésimo cigarro. Por culpa da Mestiba, Porto, champanhe, o mundo passa diante dos meus olhos a velocidade cruzeiro.

- Fala-me disso…

- Não quero…

- Porquê?

- Porque tenho de prestar tanta atenção a partes da minha VIDA que já não existem? Sinto isso como passar horas e horas a analisar um sonho sem sentido! Só gosto de pensar no meu passado para perceber como o presente é tão melhor…

- Mas eras… miserável?

- Não, e o problema é precisamente esse… – sinto que não me compreende. Para dizer a verdade as palavras saíram mais rápido do que planeara, pelo que eu próprio me senti confuso, com dificuldade em me organizar – Nunca me sentia miserável. Apenas ligeiramente alegre, ou ligeiramente em baixo… como se fosse proibido ultrapassar estas marcas, como se fosse proibido alcançar algum extremo alguma vez… não sei que te diga, é uma dormência constante, um não-ser…

- E comigo?

- Contigo… o que sentes tu quando comigo? Porque guardas tanto as tuas reacções?...

- Que queres dizer com isso?

- Sinto como se estivesses constantemente noutro plano… Com tudo sob controlo… e o facto de saber que é impossível alguém ter tudo sempre sob controlo deixa-me confuso… a não ser que realmente aches que sim, que tens tudo debaixo do teu radar…

- Dizes, então, que é impossível ter tudo sob controlo? – pergunta. Sinto como se esta questão tenha como única função criar o caminho para a verdadeira ideia.

- Sim, acho que sim. – revelo.

- Eu também acho. Mas ao mesmo tempo essa certeza que manifestas é estranha. Como podes ter tanta certeza acerca do poder de alguém, da perfeição e eficácia como alguém pode fazer alguma coisa? – talvez Godelieve seja a prova que estou errado, pois apanhou-me perfeitamente. Atrevo-me a dizer que… tinha a conversa sob controlo.

- Tens razão, não posso. – penso – Ou será que posso?... – está confusa – Sim, claro que posso… - estou confuso – Posso ter a certeza do que me apetecer. Qual é a pior coisa que pode acontecer?

- Estares errado…

- Precisamente. Mas aí está a grande questão… – ouço algumas pessoas começarem a abandonar o local. Não me parece o tipo de sítio que tenha horas para fechar, por isso não me preocupo – Se eu continuasse a viver da maneira em que vivia, estar errado seria terrível. Mas já percebi que estar certo acerca de algo, na maior parte das vezes, é relativo e não vale o esforço…

- Assim como a tua própria afirmação, agora mesmo, é relativa… Para um pessimista, estar errado é óptimo! – remata, divertida, mas com convicção. Adoro-a.

- Aí está! Mas diz-me uma coisa… Foi de propósito que mudaste de assunto, ou simplesmente aconteceu? – pergunto, tendo uma vez tomado consciência do que se estava a passar.

- Que achas?

- Acho que não estou em nenhum psicólogo, e que não tens de me devolver as questões a toda a hora… – o meu olhar é sério. Sinto que começo a encurralá-la um pouco, e isso agrada-me.

- Porquê? – ri abertamente – Estou a brincar. Mas não sei que te responder, é só isso… mudei de assunto de propósito ou aconteceu?... – diz, de si para si, baixinho.

- Porque não dizer a verdade?...

- A verdade é aborrecida… procurá-la até é divertido, por vezes. Mas a verdade em si nada tem de especial. Geralmente traz consigo essas certezas de que falamos… e qual a piada de ter a certeza acerca de algo? – continuamos a falar por mais uma hora. Senti Godelieve estranhamente perto, e percebi, mais uma vez, a importância que tem na minha VIDA e neste novo eu. Se a introdução deste personagem na história da minha VIDA me vez ver onde vivia, as suas ideias em si, até então, deslizavam entre as linhas do que me dizia. Ouvi-la falar era como me ouvir a mim mesmo nos últimos tempos, e o um constatar mais palpável da genuína influência do seu pensar no meu estar.

Levantamo-nos a rir, não vi Godelieve pagar nem me preocupei com isso. O mundo embalava-nos numa bebedeira agradável, perto duma menos agradável náusea, que dizia olá ao virar da esquina. Não lhe prestei atenção e deixei o bem-estar permanecer. Abraçado a Godelieve percorri o vazio corredor enquanto via, de vez em quando, empregados passarem carregados de pratos e garrafas. Não cumprimentamos nem dissemos nada a ninguém ao sair. Todavia, tendo fechado a porta atrás de nós e subido os poucos degraus que nos separavam da estrada, deparamo-nos com a mesma limusina que me trouxera até ali.

O condutor lança um bastante tímido sorriso, abre a porta. Reparo em como repara nas longas pernas de Godelieve, à medida em que esta entra na parte de trás do veículo. Ele entra no carro, e eu permaneço do lado de fora. Apago o cigarro que acendera segundos antes, aprecio o vazio que me rodeia e penso, antes de entrar, em como, talvez uma hora antes, Godelieve acabou por não me dizer nada acerca de guardar, ou não, as suas reacções… iludiu-me deixando-se apanhar na mudança de assunto, mas isto acabou por se tornar o próprio assunto… Incrível… Abano a cabeça, sorrio, e entro no carro.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

50 Godelieves, 100 Estórias

O antro dos infiéis? Como assim? Onde? Os meus pensamentos oscilavam a cada décimo de segundo. Se inicialmente me atrevi a soltar um sorriso com a brincadeira de Godelieve, ver o seu próprio sorriso desaparecer, para me mostrar a seriedade do que me dizia fez-me pensar que, quem sabe, o que me dizia era verdade… Antro dos infiéis?

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- Como assim? Antro dos infiéis? – pergunto, sem me preocupar em esconder a minha confusão. Neste momento ouço alguém, do outro lado da cortina, tossir, como que pedindo permissão para entrar. Godelieve acede e um empregado aproxima-se, perguntando se já temos alguma decisão. Suponho que seja acerca da refeição, apesar de não ver nas mãos de Godelieve nenhum menu.

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- Sim… Para já, como aperitivo, queremos dois Portos. Depois como entrada queremos queijo queimado com açucar e como prato principal frango cortês – ouço Godelieve e percebo que tenho fome. A visualização, na minha mente, dos pratos típicos que pede deixa-me a salivar ligeiramente.

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- E para beber?

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- Don Perignon, muito frio.

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- Concerteza. – e afasta-se. Godelieve olha para mim e, com o seu expressivo olhar pergunta-se se concordo. Num instante percebo que me esqueci, por uns segundos, que ainda não faço ideia de onde me encontro, apesar da sugestão ser evidente.

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- Óptimo, parece-me óptimo. Mas… estavas a dizer-me onde estamos…

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- Bem, é o seguinte… – adquire uma postura mais séria e inclina-se ligeiramente sob a mesa – claro que o nome não é o antro dos infiéis, apesar de ser isso mesmo… Todas as pessoas que vês, ou imaginas, aqui são provavelmente casadas ou têm algum tipo de relacionamento a que precisam de fugir. Este lugar existe há anos e anos… Nunca teve nome, e nunca teve uma única fuga de informação. As pessoas que vês aqui a trabalhar rodam anualmente e são muito bem pagas para manter o segredo…

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- Mas… isso não faz sentido. E as outras pessoas que aqui estão? – pergunto, confuso com a estranha realidade que tenho diante de mim.

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- As pessoas que aqui estão não têm cara. O segredo de cada um é suficiente… além do mais, está tudo muito bem controlado, de uma forma que ninguém percebe, mas que ninguém quer perceber.

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- Como assim?

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- Por exemplo, ninguém sabe quem é o dono deste lugar. Nem mesmo os empregados. No entanto é um sistema que vai desde dezenas de quartos de hotel na cidade até este mesmo restaurante, passando, como deves ter percebido, pelos meios como se chega até aqui. É perfeito, muito bom. Claro que é caríssimo, mas quem pode pagar tem condições que não tem em mais nenhum lugar. – a informação que desfila diante da minha pessoa é estranha, e Godelieve faz por a partilhar de uma forma, por um lado sedutora, mas por outro lado como se fosse algo banal. Passam pela minha cabeça imagens de filmes que vi, de coisas que imaginei, e tento conciliar tudo, sem ter grande sucesso. Entrego-me, finalmente, e limito-me a oferecer um sorriso. Só em Westland…

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- Mas porquê esta necessidade de trair? Porque não saltar e desaparecer?... – pergunto. Estamos a meio da refeição. Do meu lado direito jaz uma garrafa vazia de champanhe, ao seu lado a sua sucessora, beijando a mortalidade. Os olhos negros de Godelieve espetam-se nos meus, e as suas sobrancelhas surpreendem-se.

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- Desaparecer para onde, Theodoor?

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- Desaparecer para vinte e quatro horas por dia. Será assim tão doido e arriscado? – pausa – Sim, é, mas vivemos em tempos em que isso não é assim tão impossível, em que essa decisão não tem de trazer consigo um desenvolvimento assim tão pesado… - espero que acabe de mastigar. Dá um gole do champanhe e os segundos que espera para falar entram dentro de mim.

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- Achas que é isso que queres?

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- É isso que queres?

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- Sabes… por vezes não te percebo, meu querido. Por vezes todo tu vives nos segundos em que estás comigo, mas doutras vezes sinto que vives noutro lugar qualquer, na certeza de me querer sempre do teu lado… – aponta, revelando-me da minha eventual ineficácia em permanecer impassível e misterioso. Ainda assim, não cedo. Tiro um cigarro, sem me importar que nenhum de nós acabou de comer.

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- E seria isso assim tão terrível?

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- O que seria terrível era aventurarmo-nos à procura do conhecido e perdermos tudo…

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- À procura do conhecido?

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- Sim… sempre que estamos juntos, e sempre, ou especialmente, quando não estamos juntos, vivemos sempre no desconhecido… E isso é fantástico… – ouço as suas palavras como se fossem os meus pensamentos – Se nos aventurássemos à procura de estabilidade e certezas íamos ceder, íamo-nos tornar em apenas mais um casal, onde tudo é o que se espera… é isso que queres? – a beleza e sentido dos seus argumentos deixa-me numa posição desconfortável. Não quero, não sei porquê, ceder, admitir que eventualmente esteja errado, pois apesar de sentir que estou, não quero estar.

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- Mas não achas que isso é… cobarde? – pergunto, apagando o cigarro, que ainda tinha algo para me dar. O champanhe sabe-me incrivelmente bem, e bebo uma taça duma só vez. Sinto que quer sorrir mas contraria tal movimento. É cansativo, ainda que prazeiroso, tentar adivinhar o que vai dentro de si.

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- Talvez sim, talvez não, não sei. Mas acho que ao perguntares isso, estás a fazer exactamente o mesmo… a querer o conhecido… a querer catalogar coisas com palavras, a querer ter controlo. Que interessa se é cobarde ou não? Porque tem de ser importante saber o que é

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- Se podemos apenas apreciar o que temos… – interrompo-a, baixinho, mais para mim que para si, acabando a sua frase.

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- Precisamente…

- Quando estou contigo sinto sempre que é a primeira vez… – digo, abrindo-me mais do que desejaria – As palavras têm de ser escolhidas – olho de soslaio para as duas garrafas vazias e percebo que talvez me tenham apanhado desprevenido, não quero dizer estas coisas – e questiono-me se o que sinto quando não estou contigo vale a pena pelos segundos em que estou…

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- E a que conclusão chegas?

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- Diz-me tu. Porque tenho de ser apenas eu a falar da confusão? – sugiro, interessado e de volta à postura sedutora. Desta feita percebo nitidamente o seu sorriso que me devolve um ar encantado. Godelieve levanta-se, dá um toque nos seus lábios, talvez corrigindo algum deslize do batom que até então passara despercebido. No seu trono invisível, olha-me de cima para baixo, mas não sinto tal situação como metafórica. Ainda assim, levanto-me. Dá um passo para mim.

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- Eu conto os segundos para estar contigo, meu amor. – a sua voz é ameaçadoramente macia – E sinto cada ocasião contigo passar como efémero e irreal. Custa-me e por vezes quase sufoco, mas quando te tenho para mim e te posso beijar, vivo nesses poucos momentos tudo o que não vivi em semanas… guardo tudo o que sou para ti…

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Foi o beijo mais real que demos. Não sei ao certo o que define um beijo como real, mas sei apenas que o foi. Os nossos lábios abraçaram-se e as nossas línguas embalaram-se como centenas de vezes antes, mas a fragilidade da sua frase, que apenas a trouxera, por uns breves segundos, ao mundo dos humanos, dizia-me que estava a beijar alguém que efectivamente existia. O conforto de a ter no mesmo nível em que eu sempre me encontrei, em saber que o meu desespero era partilhado, foi apenas por três instantes ameaçados pelo quanto não a queria junto de mim com o resto dos mortais. Foi apenas por três instantes ameaçados, tranquilizando-me de seguida, com a certeza de que certas pessoas simplesmente não sabem como não ser musas…

Godelieve 4-9

Os meus olhos apontam para um qualquer ponto no universo, em sintonia com a minha mente, que voa dispersa, sem rédeas nem controlo. Os segundos atropelam-se, desaparecem, e o tempo funde-se num momento, de maneira a que um terço de garrafa de Mestiba depois, sinto o carro parar. Não sei se devo esperar que me abram a porta, ou se o devo fazer de imediato. Espero quatro piscar de olhos, e saio, para encontrar o meu condutor diante de mim que se preparava, imagino, para me abrir a porta.

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Dou um último gole de Mestiba, pouso o copo no tecto do carro, ajeito o meu colarinho. Vislumbro a minha imagem no tímido reflexo que a janela me lança, e percebo como o smoking me assenta bem. Sem dar por isso, o condutor desaparecera para dentro da limusina, e a mesma abandonou-me de seguida. Sou forçado a arrancar um sorriso quando ouço, segundos depois, o copo que largara rebentar no chão, a alguns metros de distância. Tiro um Dunhill. Estou no meio de uma estrada estranhamente limpa. De cada lado da mesma, dois prédios aparentemente abandonados, A iluminação que me chega deve-se à colaboração entre a lua e um velho poste de electricidade à minha direita.

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Diante de mim, uma casa velha, muito velha, guardada por uns velhos portões enferrujados e abertos. Não percebo nenhuma luz dentro da habitação, não percebo nenhuma actividade ao meu redor. Dou uma olhada no telemóvel, que me pede paciência… Lentamente caminho em direcção à casa… número 39, até que paro, ao ouvir uns passos ecoar algures perto de mim. Estranho o medo que sinto, apesar de achar que se apropria, uma vez que não sei onde estou, e o cenário não é propriamente agradável… O som aproxima-se, e consigo perceber que vem da escuridão entre a casa número 39 e o prédio à minha direita. Estou parado quase no mesmo sítio onde acendera o cigarro momentos antes, vejo a escuridão dissolver-se e uma silhueta masculina desenhar-se. A cada segundo a sua imagem se torna mais nítida, até que vejo perfeitamente os seus traços indianos, o seu fato impecável e a sua boa imagem diante de mim.

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- Boa noite. – diz-me, com um cordial sorriso.

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- Boa noite. – devolvo, menos cordial, imagino. Algo é bastante estranho. Permanece diante de mim, olhando-me nos olhos como se meu amigo fosse, por prolongados e extensos segundos. Quando percebe que não percebo o que quer, atreve-se a perguntar.

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- É a primeira vez que nos visita?

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- Isso é certo… – respondo, com um sorriso divertido, enquanto esmago a beata com o meu calcanhar.

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- Tudo bem. Tem o código, então? – pergunta, com um olhar afirmativo.

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- Que código?

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- Não tem nenhum código consigo? – volta a perguntar, com um tom de secretismo.

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- Se me dissesse que código era, eu podia dizer-lhe se o tinha ou não… – respondo, arrogantemente. Começa a irritar-me, o indiano… Não sei se por perceber esta irritação, o homem faz uma pequena vénia, pede desculpa, dá meia volta e começa a afastar-se. Não percebo. Que código?

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Vejo as horas no telemóvel. 21h08. O meu olhar não abandona o dispositivo. Ouço os passos a afastarem-se, a misturarem-se na escuridão, e finalmente percebo.

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- Espere! – ordeno. O homem para mas, não sei porquê, permanece de costas. Tiro a minha carteira e da mesma vejo o bilhete lilás. 371293. Aproximo-me do indiano e solto o número. Ele volta-se, olha-me nos olhos por um segundo, e no instante seguinte o seu olhar adquire um rosto pensador.

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- Queira acompanhar-me, por favor. – pede, mantendo a sua cordialidade enjoativa. Di-lo sem se voltar e começa a caminhar em direcção à escuridão. Quando os meus olhos se habituam ao negro em que imergiram, vejo mais um portão pertencente à propriedade da casa número 39, na parte lateral, este já em melhor estado. Para minha surpresa, o indiano abre o mesmo portão e entra. Não faço a mínima ideia do que se está a passar, e chego a duvidar que Godelieve tenha algo a ver com tudo o que vejo. Hesito. Ele pára e parece-me um pouco irritado. Sem falar, suplica com o olhar que continue a acompanhá-lo, ao que acedo. Percorremos um caminho de azulejos partidos, dividindo um jardim notoriamente desconsiderado, de onde nada me surpreenderia ver um qualquer felino aparecer, até que estamos perante uma escadaria que nos transporta para uns quantos níveis abaixo.

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Ao descermos o lance de escadas, vejo diante de mim uma porta de madeira. O estado é tão lastimável que não compreendo como Godelieve escolheu este sítio para o nosso encontro…

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Porém… Por mais que treine a minha mente para estar preparada para o inimaginável, tenho estes esporádicos deslizes que apenas me fazem rejubilar com a surpresa materializada. O indiano tira uma enorme chave do bolso, que usa para abrir a porta e me apresentar o brilhante cenário.

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Foi algo estranho, dado o contraste entre tudo o que poderia (não) imaginar e o que realmente vi. Diante de mim vi um surpreendentemente amplo salão a meia luz, carregado de fumo e leve música, e um sem número de estranhos compartimentos, divididos por biombos de pano púrpura. Estando ainda uns degraus acima do nível do salão, tinha uma visão abrangente da estranha sala. No meio um estreito corredor, de cada lado duas filas de compartimentos com cerca de 3 por 3 metros, e cuja porta parecia ser uma mera cortina de tecido. Ao contrário do pano que revestia cada compartimento, as cores das cortinas variavam imensamente, mas escorregando com o olhar até ao fundo, e vendo uma cortina lilás, algo que disse que me levariam até ali.

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Sem saber para onde desaparecera o indiano, tenho outro diante de mim que, da mesma, forma, não sei de onde apareceu. Tem um sorriso simpático e pergunta-me o código. Volto a retirar o pequeno papel do bolso, e lanço, mais uma vez, o número de seis dígitos que até ali me trouxera. O olhar da pessoa que tinha à minha frente adquire uma efémera expressão de pensamento, até que solta um “concerteza” e me pede para o seguir. Não me tinha enganado, e dirigíamo-nos para o compartimento de cortina lilás, cujo número era… 13. Pelo caminho tentei, discretamente, ultrapassar os finos tecidos com o olhar, mas o que via eram apenas vultos, aparentemente sentados. Confesso que me passara pela cabeça cenas escaldantes de sexo, numa espécie de orgia à distância… Cada compartimento parecia ter um casal, até que, ao chegar ao compartimento número 13, descubro o primeiro onde apenas uma pessoa existia…

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O indiano limitou-se a guiar-me até à porta do mesmo, desaparecendo sorrateiramente de seguida. Sem saber o que me preparava para ver, respirei fundo, e mergulhei os meus dedos no desconhecido. Vi Godelieve que, com um vestido preto, um marcado mas ainda assim subtil risco da mesma cor nos olhos e com seu cabelo impecavelmente amarrado, me esperava. Estava a uns metros de mim, chamando-me com o seu sorriso. Estava sentada a uma mesa vestida com uma toalha branca e adornada por uma vela ardente, da mesma cor do seu vestido, e isso deixava-me a pensar se estaria num clube, num estranho bar, num restaurante, ou ainda num outro qualquer local cuja categoria me escapava… O som que me chegava era sedutor e situava-se algures entre a estranha fronteira entre o Jazz e Blues, como não podia deixar de ser.

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- Boa noite! – cumprimenta-me Godelieve, quando me aproximo da mesa. Reparo que me sinto constrangido com a maneira como a cumprimentar, algo em que não tinha pensado. Tendo passado aquela cortina, por um lado sentia-me a milhares de quilómetros de todas as outras pessoas que habitavam o mesmo salão, mas por outro lado o suave murmúrio das suas vozes actuavam como o constante relembrar da ameaça que era um olhar atrevido… Todavia, após me sentar, Godelieve levanta-se, dá um passo na minha direcção, senta-se no meu colo. Cruza as pernas, e a sua saia abre-se de maneira que me permite vislumbrar as suas magníficas linhas quase até à cinta. Sinto-me repentinamente quente por dentro, e quero tocar-lhe. Eventualmente entretida com os meus conflitos, a minha diva pega, com a sua mão esquerda, na minha mão direita, e assenta-a sobre a sua coxa, carimbando o momento com um longo beijo nos meus lábios.

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- Já te explico onde estás, meu querido… – solta, finalmente, trazendo alguma luz sob todo o mistério que toldava a minha mente. Sorrio inocentemente, manifestando o quão perdido me encontrava. Godelieve volta a sentar-se, e aponta com o olhar para o meu maço de tabaco, de onde tiro um cigarro para cada um de nós.

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- Sempre é uma boa alternativa ao Vrijheid, diz lá… – sugere, após a sua primeira e longa passa no cigarro.

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- Parece-me ser. Se ao menos soubesse onde estou… – confesso.

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- Não sabias deste sítio, pois não Theodoor? – a pergunta é retórica – Diz-me tu onde estás… Não reparas em nada no ambiente, no que te rodeia?... – pergunta, desta feita visando uma resposta. Com dificuldade, o meu olhar abandona a sua figura crava-se nas frágeis paredes que nos rodeiam, atravessando as mesmas e atrevendo-se a imaginar.

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- Vejamos… imagino que apenas casais aqui estão… imagino que esses casais estão estranhamente compenetrados um no outro… vejo… – estranho – vejo que os empregados… são todos indianos?!

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- Exactamente. E que te diz isso? – pergunta.

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- Que estamos na Índia?... – respondo, sarcástico e divertido.

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- Tudo bem. Já foste perspicaz o suficiente… – parece-me ver alguma desilusão. Mas que quer, como posso fazer ideia de onde estou?

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- Tu estás no… chamemos-lhe assim… tu estás no antro dos infiéis de Westland… – solta, entre mais uma passa do cigarro, com um sorriso que anseia descortinar o meu…

terça-feira, 15 de julho de 2008

Ter alguém comigo seria bom. Olho ao redor, e vejo os outros com algo que não tenho para mim. Pessoas riem, conversam, e eu rio, eu converso. Mas este pensamento, e este estranho sentimento de solidão permanece dentro de mim, a relembrar-me da sua existência, da minha existência… solitária. Saio para fumar um cigarro. Olhar à volta e ver apenas caras a sorrir fazia-me sentir como a parte errada num momento Kodak.

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Acendo o cigarro e viajo para trás.

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- Tudo, e tu? – minto, a alguém que passa com três canecas de café na mão e me pergunta como estou.

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Dou uma passa e viajo para trás. É-me difícil assimilar este sentimento de solidão. Sinto-me destreinado, como um menino que se esqueceu como se lê determinada frase. Não me sinto bem, e não tenho ninguém a visitar-me. Apenas a soma destas duas frases me permite perceber que aquilo que sinto é solidão. Quando tento explicar,… ou quando tentava, quando ainda no sub-mundo, explicar a alguém o que era isto de não saber o que se sente, ninguém me percebia. E eu não percebia o porquê de não perceber o meu interior. Muita heroína a destruir as percepções de emoções, muita ressaca a destruir a vontade de as ter. Agora sei, ou começo a saber, que antes da heroína, veio a dor, e antes da dor, não veio nada. Apenas eu apareci para a abraçar e a deixar dentro de mim. Cego, pensei que algo que escondia a minha dor me traria alguma paz. Cego, percebi que me deixou a 4 centímetros do abismo.

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O cigarro acaba e tenho de voltar para dentro. Olho o céu. Está bonito. Não está frio, e por isso liberto-me da minha camisola. Este sou eu, e nada mais. Rodo nos calcanhares e vejo a porta que me trará de volta a uma espécie de mundo real que, espero, um dia me receberá como um igual…

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Which Witch?

Lembro-me como se fosse hoje. Era Fevereiro, o termómetro apontava 7 graus negativos, e estava um nevoeiro como nunca tinha visto. Contudo, para um Fevereiro Norueguês, este estava a presentear-me brandas noites. Trabalhava numa Comunidade Terapêutica, ajudando pessoas a libertar-se da prisão que é o mundo da droga. Vivia com eles, na mesma instituição, e tinha o hábito de dar uma corrida por dia.

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Mas nesse dia atrasei-me. Atrasei-me e não pude correr à hora do costume. Veio o jantar, e duas horas esperei, para a comida assentar. Entretia-me à procura de emprego, viajava de site em site, até ver a hora de ir correr chegar. Porém, quando chegou essa hora, o sol tinha-se já posto. Vivendo tão no meio de nada como vivia, via o meu percurso habitual de corrida completamente imerso numa nuvem, sendo a única fonte de luz uma lua cheia, que brilhava lá no alto, ajudando um pouquinho. Decidi ir.

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A cada passo, mais me emergia na escuridão. O nevoeiro era tão denso que conseguia apenas ver uns poucos metros à frente, e as ilusões ópticas abundavam. Corria pelo meio dos campos, olhava à volta, pouco via, olhava para a frente, e via uma muito subtil sombra da floresta que atravessaria. Ouvia Sigur Rós, que fazia com que todo aquele ambiente entrasse em conluio com os meus atrevidos pensamentos, e sentia estar a correr dentro dum sonho. Não de tão bom que era, mas por parecer, realmente, um sonho que vivia, mas com consciência. Não me belisquei, pois a certeza que era a realidade, existia. Continuava a correr, e mergulhei na floresta digna dum conto dos irmãos Grimm.

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Passo ante passo, o coração a bater, dou uma curva à direita, tentando ter cuidado para não escorregar nas esporádicas poças de gelo que (já não) me surpreendiam. Curva à esquerda, e mais uma ilusão óptica. Lembro-me da tese que tinha feito sobre alucinações, e tenho a certeza estar a confundir um qualquer estímulo real por outra coisa qualquer. Mas não passa. Nasce no meu peito alguma adrenalina, e o ritmo de corrida abranda. Sim, parecia-me um caldeirão... em fogo. Ouço o crepitar da madeira. Não consigo ver nada mais além de dois metros para cada lado, e algo que me parecia um caldeirão… e ouvia o barulho. Seria possível estar a alucinar, em vez de estar a ter uma ilusão? Parei de correr, e permaneci uns segundos. Como sabia que não estava a sonhar, tudo me parecia muito estranho. A adrenalina continuava a arder, mas calma. Fecho os olhos durante 4 segundos, e volto a abrir. A adrenalina dispara. Não só continuo a ver o que via, a ouvir o que ouvia, mas vejo uma sombra diante do caldeirão. Sinto-a rodar, e caminhar em direcção a mim. Queria voltar-me e fugir, mas algo em mim não mo permitia, ficando ali, e cima duma dessas poças de gelo, como que hipnotizado. O vulto aproxima-se e percebo ser uma mulher. Sai de entre as árvores, e está a um metro de mim. É muito velha, mas incrivelmente bonita. Está vestida de preto e tem um chapéu em bico.

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- És uma bruxa? – ouço-me perguntar, em português.

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- Sou – responde. Di-lo em norueguês, e percebo pela simplicidade do que diz – Tens fome? – pergunta. Sinto-me confuso, pois percebo perfeitamente o que pergunta, tenho quase a certeza que o faz em norueguês, e lembro-me que não sei como se diz fome nesta língua… na minha mente tento repetir, mas apenas português aparece. E como percebeu a minha pergunta?

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- Tenho… até tenho…

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- Então anda comigo. – ordena, suavemente. Da mesma maneira, pega-me na mão, e volta a pedir-me que vá consigo. É tudo demasiado estranho e fora do normal para eu fugir. Estranhamente, sinto-me bem. Dou um pequeno pulo para saltar o pequeno fosso que separa o caminho do mato, e vou com ela. Não sei se a sua mão está quente ou fria, mas o que quer que esteja, está muito. Ela caminha, com dificuldade, em direcção ao caldeirão. Curva-se, afunda as mãos no fogo, não se queixa, e tira algo que me parece uma sopa estranha. Não sei onde a põe, mas continua a caminhar. Cada vez mais dentro da floresta, aparece outro caminho, que atravessamos. O nevoeiro vai-se dissipando, mas de certa forma que me permite continuar a vê-la, e apenas a ela. A sua casa é velha, muito velha, como as casas das bruxas devem ser. O portão range, naturalmente, ao abrir, e a porta da casa igualmente.

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Sentamo-nos na cozinha, velha, muito velha, onde uma lareira acesa nos aguarda. Assim como não sei onde armazenara a sopa que tirara, não sei de onde a tirou agora, e como veio parar a uma tigela, que me espera, a fumegar, cima da mesa com uma toalha velha aos quadrados. Senta-se à minha frente.

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- Que tens para mim? – pergunta, em norueguês. Não me assusto.

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- Não sei… – respondo, em português – E tu, que tens para mim?

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- Não sei… acho que te posso mostrar como vais morrer… – sugere, descansada, antes de enfiar a colher com a sopa na boca.

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- És a bruxa do Big Fish? – sinto a minha pergunta estúpida, mas tenho que a fazer.

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- Não, filho… Isso é só um filme. Quem sabe inspiraram-se em mim… – graceja – Mas queres saber ou não? – experimento a sopa que, apesar de não saber de que é, me sabe incrivelmente bem.

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- A sopa é de quê?

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- Não é de criancinhas, não te preocupes… é de muita coisa… mas estás a fugir à pergunta, filho. Queres saber?

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- Posso responder antes de ir embora?

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- Quem te disse que vais embora? – mais um gracejo. Tem sentido de humor, para uma bruxa. Comemos a sopa em silêncio, e pergunto-lhe como se tornou uma bruxa.

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- Eu não me tornei uma bruxa… nunca foi a minha profissão de sonho…

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- Mas… é uma profissão? – interrompo.

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- Estou a brincar, filho. Tenta acompanhar… Como dizia, eu não me tornei uma bruxa. As pessoas é que me foram tornando uma bruxa…

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- Como assim?

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- Nem sei, filho… Pelo facto de ser diferente de toda a gente desde o momento em que nasci, pelo facto de me dar muito bem sozinha, as pessoas foram-me afastando, e criando estórias acerca de mim. Talvez por acharem que me dava bem sozinha, e que era independente, que não precisava de ninguém…

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- E precisavas?

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- Na altura precisava, sabes… Quem é que não precisa de ninguém? Na altura precisava. Não era por ser independente que não precisava de ninguém. Mas depois das pessoas te colocarem um rótulo, é muito difícil escapar. Muito mesmo. As pessoas quando te dão um rótulo, agarram-se às crenças que têm… e se fazes algo que vai no contrário do que pensam, como eu fazia, quando tentava falar com alguém, ou ter amigos, elas assustam-se… Chega a uma altura em que deixas de tentar… Claro que nasci com um ou outro talento, mas só depois de me rotularem como bruxa, tive de aceitar, não o que sentia ser, mas o que as pessoas me faziam sentir ser… Se calhar foi aí que me tornei uma bruxa…

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- Mas estás a falar comigo! Sou diferente? Porque é que tentaste comigo? – pergunto, intrigado. Cruzo a perna e dou um gole do café, que tanto se bebe por terras escandinavas, e que apareceu misteriosamente na mesa da cozinha.

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- Filho… – diz, mexendo o açúcar do seu café, que segundos antes eu não sabia onde estava – Eu estou a falar contigo… para te comer!! – diz, tentando imitar o lobo mau. Vislumbro uma fileira de dentes perfeitamente alinhados…

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- Está bem que não estás habituada a ter companhia, mas tens de treinar as tuas piadas… – interrompo, estranhamente descontraído, achando-me o máximo por estar a fazer uma piada dizendo que as suas piadas são más.

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- É, talvez tenhas razão… – responde – Bem, como dizia… Eu estou a falar contigo, meu querido, porque estás a sonhar!

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- Não estou! – respondo, quase chateado. Apercebo-me que a razão pela qual estava chateado, era que não queria que aquilo fosse um sonho.

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- Estás sim, lamento. Experimenta beliscar-te… – assim o experimentei, e solto um leve grito de dor.

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- Agora apanhei-te! – ri, a bandeiras despregadas – Estás a sonhar, como te disse, mas é claro que sentes dor nos sonhos! – sim, desta vez apanhou-me.

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- Mas existes mesmo?

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- Sim, existo. Mas não aqui no sítio para onde te guiei. Queria que me visses neste ambiente porque é o mais fascinante para as bruxas viverem… na verdade vivo num condomínio fechado em Bergen… – vê os meus olhos arregalarem-se, mas a voltarem à posição normal, quando percebo, sem me explicar, que está a brincar. Percebe que percebo – Vivo num local parecido com este, mas que não é em Mysen. E decidi falar contigo no teu sonho, porque se me repudiasses, não me sentiria mal com isso, pois… tinha sido só um pesadelo teu. Mas revelaste-te um jovem muito simpático! – coro – Sabes… quando estás habituado a ser repudiado, crias o teu próprio mundo, onde aí tudo é teu e tudo está sob controlo. Porém, quanto mais tempo passa, mais te habituas a ele, e mais medo crias em relação a falar com outras pessoas. E ganhas estranhos hobbies, como eu fiz com a bruxaria. Coisas que te mantenham ocupada e que não te façam pensar na solidão cruel que vai dentro de ti. E habituas-te.

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- Mas… as pessoas diziam que eras uma bruxa… tu dizes que não eras… no entanto, estás no meu sonho… isso não é bruxaria?

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- Sim, sim, ok, admito… mas é como te digo. Fica difícil demais lutares contra aquilo que dizem que és, e vais perdendo forças, não importa o quão forte sejas, e entregas-te, como disse, não ao que sentes, mas ao que te fazem sentir…

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- Mas já pensaste que podes apenas ter tido azar com as pessoas que conheceste?

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- Já pensei muitas vezes nisso, mas também já não-pensei nisso outras tantas… quando toda a gente que conheces diz o mesmo… claro que a informação pode simplesmente ter passado de pessoa para pessoa… mas a dada altura cheguei à conclusão que se o ser humano é alguém tão estúpido ao ponto de confiar mais em informações estúpida e indirectas acerca de outras pessoas… sem sequer lhes dar uma hipótese… então os seres humanos talvez não valham muito a pena conhecer…

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- Mas quiseste conhecer-me… – digo, fazendo o Porto que magicamente apareceu na minha mão.

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- Quis conhecer-te, porque tu nunca ouviste de mim. Porque soube de ti, e que estavas aqui há pouco tempo, e pensei em experimentar falar com alguém que não conhecesse nada de mim. Pois se fosses daqui, serias exactamente igual, meu querido… – fico em silêncio, a pensar. Seria eu, realmente, “igual”. E estaria esta opinião acerca dos seres humanos tão acertada assim? Pensava no quão facilmente corrompível é, de facto, a mente humana. Tantas vezes que nos entregamos a preconceitos, a estereótipos, não querendo saber por nós, mas encostando-nos ao conforto que é ver a informação, por mais estúpida que é, chegar até nós, e aceitar qualquer juízo, quem sabe condenando as pessoas a ser catalogadas com imagens que não são as suas… e todos fazemos isto… e todos criticamos quem faz isto. Que estupidez. De certa forma, criticamo-nos a nós próprios, mas sem coragem de os fazer directamente, preferindo criticar tudo o resto, ignorando o facto de que também nós… nos incluímos nesse resto… Levanto-me.

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- Eu quero conhecer-te na VIDA real! – ordeno. Ela levanta-se. Está à minha frente. À nossa volta uma imensidão de gelo. Estamos no meio dum enorme lago congelado. Sinto a sua pele rejuvenescer lentamente, e vejo diante de mim alguém que sei, que tenho a certeza saber quem é, mas a quem a minha mente adormecida não me deixa aceder.

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- Filho, tu não me podes conhecer na VIDA real, porque eu não existo.

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- Como assim? Mas disseste…

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- Pois menti… eu não existo, porque eu sou apenas o materializar que o teu cérebro conseguiu fazer das tuas próprias questões… não reconheceste de lado nenhum o humor foleiro? – ouço-a dizer, não me acreditando na informação que chega até mim.

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- Mas… o facto de seres uma bruxa… isso tem algum significado escondido, então? – estou confuso – Eu sinto-me bem com o que penso, ou sinto, não preciso de o esconder num canto escuro no meio da floresta… ou tenho?

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- Isso, filho, é o que tu tens de descobrir!