sábado, 19 de julho de 2008

Godelieve 50

- Não sei se bebemos um whiskey ou partimos já… – diz-me, após os nossos lábios negociarem tréguas. O calor que sentia dentro de mim impelia-me para desaparecer no mesmo momento, fosse para onde fosse, mas a certeza que nessa noite era apenas minha, e o conforto do lugar onde me encontrava pedia-me para ficar um pouco mais.

- Se podemos ter tudo, porquê escolher? Vamos ficar, beber um whiskey com calma… adiar o… prazer. – sugiro, com um sorriso que levanta outro no seu olhar.

Porém, vê-la diante de mim, vestida, era demasiado pesado. Esperar segundos que pareciam horas revelava-se difícil, na ânsia de ter na minha mão as horas que pareceriam segundos. Não tinha dúvida nenhuma que, pelo menos nesses momentos em que a tinha a uma palavra de distância, não sentia nada a não ser paixão e um amor doloroso. Saborosamente doloroso. Os conflitos dentro de mim apontavam todos no mesmo sentido. Rebentar e agarrá-la, grudar-me ao seu corpo e explodir.

- E se não nos tivéssemos conhecido? – pergunta-me. Não sei. Ou sim, sei. Sei o que seria de mim se não a tivesse conhecido. Seria a pesada leveza de espírito que apagava o meu ser.

- Não sei nada de quem eras… até pouco de quem és. Mas eu sei quem – não – fui e vejo essa pessoa a planetas de distância… – dou uma passa no milésimo cigarro. Por culpa da Mestiba, Porto, champanhe, o mundo passa diante dos meus olhos a velocidade cruzeiro.

- Fala-me disso…

- Não quero…

- Porquê?

- Porque tenho de prestar tanta atenção a partes da minha VIDA que já não existem? Sinto isso como passar horas e horas a analisar um sonho sem sentido! Só gosto de pensar no meu passado para perceber como o presente é tão melhor…

- Mas eras… miserável?

- Não, e o problema é precisamente esse… – sinto que não me compreende. Para dizer a verdade as palavras saíram mais rápido do que planeara, pelo que eu próprio me senti confuso, com dificuldade em me organizar – Nunca me sentia miserável. Apenas ligeiramente alegre, ou ligeiramente em baixo… como se fosse proibido ultrapassar estas marcas, como se fosse proibido alcançar algum extremo alguma vez… não sei que te diga, é uma dormência constante, um não-ser…

- E comigo?

- Contigo… o que sentes tu quando comigo? Porque guardas tanto as tuas reacções?...

- Que queres dizer com isso?

- Sinto como se estivesses constantemente noutro plano… Com tudo sob controlo… e o facto de saber que é impossível alguém ter tudo sempre sob controlo deixa-me confuso… a não ser que realmente aches que sim, que tens tudo debaixo do teu radar…

- Dizes, então, que é impossível ter tudo sob controlo? – pergunta. Sinto como se esta questão tenha como única função criar o caminho para a verdadeira ideia.

- Sim, acho que sim. – revelo.

- Eu também acho. Mas ao mesmo tempo essa certeza que manifestas é estranha. Como podes ter tanta certeza acerca do poder de alguém, da perfeição e eficácia como alguém pode fazer alguma coisa? – talvez Godelieve seja a prova que estou errado, pois apanhou-me perfeitamente. Atrevo-me a dizer que… tinha a conversa sob controlo.

- Tens razão, não posso. – penso – Ou será que posso?... – está confusa – Sim, claro que posso… - estou confuso – Posso ter a certeza do que me apetecer. Qual é a pior coisa que pode acontecer?

- Estares errado…

- Precisamente. Mas aí está a grande questão… – ouço algumas pessoas começarem a abandonar o local. Não me parece o tipo de sítio que tenha horas para fechar, por isso não me preocupo – Se eu continuasse a viver da maneira em que vivia, estar errado seria terrível. Mas já percebi que estar certo acerca de algo, na maior parte das vezes, é relativo e não vale o esforço…

- Assim como a tua própria afirmação, agora mesmo, é relativa… Para um pessimista, estar errado é óptimo! – remata, divertida, mas com convicção. Adoro-a.

- Aí está! Mas diz-me uma coisa… Foi de propósito que mudaste de assunto, ou simplesmente aconteceu? – pergunto, tendo uma vez tomado consciência do que se estava a passar.

- Que achas?

- Acho que não estou em nenhum psicólogo, e que não tens de me devolver as questões a toda a hora… – o meu olhar é sério. Sinto que começo a encurralá-la um pouco, e isso agrada-me.

- Porquê? – ri abertamente – Estou a brincar. Mas não sei que te responder, é só isso… mudei de assunto de propósito ou aconteceu?... – diz, de si para si, baixinho.

- Porque não dizer a verdade?...

- A verdade é aborrecida… procurá-la até é divertido, por vezes. Mas a verdade em si nada tem de especial. Geralmente traz consigo essas certezas de que falamos… e qual a piada de ter a certeza acerca de algo? – continuamos a falar por mais uma hora. Senti Godelieve estranhamente perto, e percebi, mais uma vez, a importância que tem na minha VIDA e neste novo eu. Se a introdução deste personagem na história da minha VIDA me vez ver onde vivia, as suas ideias em si, até então, deslizavam entre as linhas do que me dizia. Ouvi-la falar era como me ouvir a mim mesmo nos últimos tempos, e o um constatar mais palpável da genuína influência do seu pensar no meu estar.

Levantamo-nos a rir, não vi Godelieve pagar nem me preocupei com isso. O mundo embalava-nos numa bebedeira agradável, perto duma menos agradável náusea, que dizia olá ao virar da esquina. Não lhe prestei atenção e deixei o bem-estar permanecer. Abraçado a Godelieve percorri o vazio corredor enquanto via, de vez em quando, empregados passarem carregados de pratos e garrafas. Não cumprimentamos nem dissemos nada a ninguém ao sair. Todavia, tendo fechado a porta atrás de nós e subido os poucos degraus que nos separavam da estrada, deparamo-nos com a mesma limusina que me trouxera até ali.

O condutor lança um bastante tímido sorriso, abre a porta. Reparo em como repara nas longas pernas de Godelieve, à medida em que esta entra na parte de trás do veículo. Ele entra no carro, e eu permaneço do lado de fora. Apago o cigarro que acendera segundos antes, aprecio o vazio que me rodeia e penso, antes de entrar, em como, talvez uma hora antes, Godelieve acabou por não me dizer nada acerca de guardar, ou não, as suas reacções… iludiu-me deixando-se apanhar na mudança de assunto, mas isto acabou por se tornar o próprio assunto… Incrível… Abano a cabeça, sorrio, e entro no carro.

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