segunda-feira, 12 de setembro de 2005

A Mulher do Metro - Parte VI

Passei os dias seguintes com uma boa disposição fora do comum. Finalmente encontrara alguém que valia a pena! Nem por um segundo pensei que pudesse ter sido outra pessoa a roubar-me a carteira. Qualquer larápio que andava por aqueles lados não tinha metade da qualidade que eu tinha, e eu topava-os a léguas, estivessem vestidos como maltrapilhos ou como executivos. Tinha sido ela, com sua suavidade, subtileza, que num momento de surpresa minha (afinal de contas ela ignorara-me por completo) ma surripiara do meu bolso. Não me preocupei. Dinheiro na carteira tinha algum, mas nada que me fizesse falta, documentos, era só abrir a segunda gaveta de minha mesinha de cabeçeira, e desdobrar-me em múltiplas identidades. Nestes últimos dias, enquanto não reavia a minha carteira chamava-me Dmitri. Que comum, meu Deus!
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Não a tinha visto nestes dias, mas sabia que não era uma casualidade. Ela fazia-o de propósito. Evitava-me para me confundir, sem saber que me confundirira apenas se aparecesse no dia seguinte, como se nada se tivesse passado. Ela podia achar que estava dentro da minha cabeça, jogando com minha mente, mas por mais imprevisível que fosse (e era), eu nunca fui burro. Assim passei umas 3 ou 4 semanas no metro, não todos os dias. Lá palmava umas 4 ou 5 carteiras por dia, e dava para manter a minha VIDA de classe alta. Mais ano menos ano e teria dinheiro suficiente para abrir um negócio noutro país qualquer. Nunca na Rússia. Continuava com a minha lei de não roubar pobres. Na verdade, desde que decidira agir assim, sentia-me bem melhor comigo mesmo.
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Não os julgava pela roupa que vestiam. Apesar de ser um indicador geralmente certo, há sempre algo mais que isso. Para mim, não tanto o olhar, mas a maneira como olham. Um pobre não tem um olhar pobre, olha de forma pobre. Parece estúpido não parece? Não é o olho, ou a expressão que muda de um pobre para um rico. O olhar diz-nos se alguém está triste, alegre, desiludido, se é uma pessoa simples. Por vezes diz se é boa ou má. Mas a maneira como olha à sua volta, de cima para baixo, ou de baixo para cima, com altivez ou não, diz-nos muito mais. Venha quem vier, é a minha teoria, e de pessoas percebo eu. Em que outro sítio que não um metro de Moscovo, o maior do mundo, se vê maior concentração de pessoas, e de todos os tipos? Aliás, tantos tipos que o que mais falta são os de classe média...
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Mais um dia. Ontem não me apeteceu ir "trabalhar". Liguei a uns "amigos" (porque que há tantas aspas na minha VIDA?) anteontem e fui dar uma volta. São Petersburgo, para variar. Passamos lá a noite e cheguei ontem. Foi porreiro. Ando a ficar um bocado farto desta VIDA. Aquela gaja parece que veio mudar um bocado a minha estabilidade... Sinto-me bem na mesma, mas parece que me aborreço mais facilmente... Tenho de ver isto.
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14h, estou no metro. Como estou com pouca paciência tento despachar-me, ainda que me arrisque um bocado e numa hora palmo 4 carteiras. Uma vem vazia, outra mais ou menos e as outras duas bem recheadas. A última que roubei foi ao lado de um polícia. Sei que sou maluco, não se brinca com a polícia moscovita, mas gosto de algum risco por vezes, ainda que esse risco implique ser sovado até mais não por polícias porcos e corruptos.
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Farto-me cedo e venho para casa. 16h, estou no cafeteria em frente ao meu prédio, que exige uma nova pintura. Vejo alguém do outro lado da rua parecido com ela, não ligo, sei que não deve ser. Pago, deixo gorjeta, saio. Atravesso a estrada, baixo a cabeça, pego na chave que me abrirá a porta do prédio. Levanto a cabeça, vejo-a. À minha espera...

domingo, 11 de setembro de 2005

A Mulher do Metro - Parte V

Os dias seguintes passaram normalmente. Havia estudado Laura. Apesar de não saber o que fazia, sabia a que horas saía de casa, a que horas apanhava o metro, onde saía. Portanto, sabia como podermo-nos-íamos cruzar. Não fui "trabalhar" nesses dias, preferi ficar por casa, passear pela cidade, sair à noite, arranjar algumas miudas de vez em quando para não dormir sozinho, enfim, aquele ócio, aquele não fazer nada de útil que sempre adorei.
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Não queria cruzar-me com ela logo nos dias seguintes, aí ela ia topar a minha estratégia. Ia deixar passar uns tempos, um mês até, quem sabe, e aí apareceria mais uma vez no metro. Não diria nada, olharia apenas por um segundo com um ar de "conheço esta miuda de algum lado" e viraria a cara. Depois, se meus cálculos estivessem certos, ela viria falar comigo. Senão, era algo que eu necessitava de melhorar.
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Assim, um mês passou. Não estava minimamente nervoso, tinha a situação sob controlo. Acordei, tomei o meu banho matinal enquanto ouvia Audioslave, Out of Exile. Queria algo com potência. Porque sabia que ia encontrar alguém, sem dúvida, cheia dela. Pus o meu perfume, Deep Blue, que contracenaria com seu Deep Red, numa dança de aromas que quem sabe guiaria seu olhar até mim. sorrio, ela podia olhar para mim por muitas razões, mas não seria pelo perfume.
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Olho o espelho. Contemplo a minha face que foge aos padrões tipicamente russos. Dou graças a Deus por isso. Este conservou-me os olhos e cabelo claro, mas atirou-me mais para parecenças suecas, finlandesas, algo assim. E por isso não costuma ser muito difícil voltar acompanhado para casa. Sorrio mais uma vez ao pensar no quanto sou convencido, mas é apenas a verdade. Sempre preferi não ser hipócrita. Porquê termos consciência apenas dos nossos defeitos, se as virtudes são tão mais apelativas? Equilíbrio é a palavra. Sei que sou, provavelmente, não muito boa pessoa, egoísta, egocentrista e muitos outros adjectivos feios. Mas também sei que sou bonito, charmoso, inteligente, estratega, e muitos outros objectivos não tão feios.
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Dirigo-me então para o metro. Já a vi. Bela. Casaco comprido preto até aos pés, cabelo apanhado no cimo da cabeça, aquela cara que bem podia estar numa revista qualquer. Entro na sua carruagem, examino a distribuição dos lugares vagos, e sento-me numa ponta, sabendo que, apesar de ter entrado mais além, acabaria por se sentar perto de mim.
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Assim o faz. Cruzo o olhar com ela passado uns minutos, vejo sua expressão, delicio-me com ela. Diz algo como: "Olha ele ali... O quê? Não reparou em mim?..." - exactamente. Contudo, o tempo passa, e nada mais. Não se levanta para vir ter comigo, não diz nada. Aproxima-se a "nossa" paragem. Levanto-me, dirigo-me para a porta, ela também. A porta abre-se, Laura passa muito perto de mim, chega mesmo a tocar-me, desprepositadamente, suponho, e sai. Nada.
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Acabo por não sair, volto ao lugar, depois de garantir que esta não vai perceber o meu ar de desilusão. Conformo-me, penso que realmente a mulher é algo mais difícil de entender do que parece, mesmo após tantos anos de treino, sorrio, e vou para casa. Não estou triste, e o pouco de desiludido que estava passa rápido. A VIDA ensinou-me a seguir para a frente.
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Saio do metro, cruzo a estrada em frente ao meu prédio, e vou ao café que se encontra no rés-do-chão deste comprar um pack de Marlboro. Apetece-me. Eis que, meto a mão no bolso direito, nada. Esquerdo, nada. Todos, nada! Sorrio, solto mesmo uma gargalhada. A gaja roubou-me a carteira...

domingo, 4 de setembro de 2005

A Mulher do Metro - Parte IV

- Eu de ti não quero nada... - digo, tentando parecer desinteressado.
- Por favor, estou farta de te ver, vais dizer-me que é coincidência...
- É tudo menos coincidência - digo, enquanto tiro a sua carteira do bolso e a atiro para ela, que não faz o mínimo gesto para aapanhar, deixando-a cair.
- Então foste tu que ma roubaste... - diz, com um sorriso cínico e perturbador.
- Fui. Mas não tens nada que me interesse. - e volto costas. Ela não diz mais nada, mas sei exactamente o que está a pensar, e sei que consegui fazer exactamente o que (não) tinha planeado.
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Mulheres como ela estão mais que habituadas a ter as atenções centradas em si. Estão habituadas a ter um bom amigo que mais cedo ou mais tarde tenta algo mais. Estão habituadas a entrar num bar e ter os olhares a apontar na sua direcção, a ter homens nervosos e a gaguejar enquanto tentar articular palavras para a conquistar. E, sobretudo, chicos espertos que vão meter conversa em bares ou mesmo na rua, com linhas como: "Já não te vi em algum lado?", ou "Onde é que andaste a minha VIDA toda? - enfim...
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Uma mulher como ela é segura de si mesma, as inseguranças que tem, se tiver, vem de dentro, e não estão relacionadas com interacção social, e com frustrações acerca das expectativas que as pssoas podem criar de si. Se ela tem alguma insegurança, terá muito mais a ver com o que poderia passar quando efectivamente se apaixonasse por alguém, do que com conquistar (ou deixar-se conquistar por) um homem para ter uma noite menos desinteressante.
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Sabe o que faz, sabe o que não faz, e sabe que não perdera a carteira. Especialmente numa cidade como Moscovo, e tendo que viajar de metro frequentemente, desaparecendo uma carteira, é tão provável ela ter sido perdida como o Lenine se levantar e andar. Assim, no momento em que ela afirmou que tinha sido eu a roubá-la, tê-la-ia perdido "para sempre", no momento em que dissesse: "Não, eu encontrei-a no chão, e achei que devia devolver", ao que ela pensaria: "Que pacóvio...". O que é que uma mulher como ela pensaria que seria normal acontecer?... Pensaria que chegaria alguém com a carteira, a abordasse com gentileza, lhe entregasse a carteira com cuidado, não atirando como eu fiz, e que dissesse que a encontrou, não que a tinha roubado, como eu fiz. E é precisamente nisto que ela está a pensar neste momento. Está confusa, por uma vez, as coisas não correram como ela pensara, houve algo que lhe escapou, e isso, fá-la sentir algo que não costuma sentir, uma espécia de atracção.
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Não deixei o meu número, não deixei nada. Então ela sabe, ou melhor, pensa, que o meu propósito nisto tudo foi... Nada! Para ela sou algo de misterioso neste instante, enquanto caminto até ao fim da rua, e a cruzo. Sem dúvida que pensará na mesma: "Que estúpido, que é que ele quer?.." - e dirá a si própria que eu sou muita coisa, mas nada de bom. Contudo, vai ficar a pensar em mim. Não incluído em algum grupo, como o grupo dos pacóvios, o grupo dos charmosos, mas no meu próprio grupo.
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Muita estratégia para uma coisa tão simples parece. Mas se há coisa que não é simples é fazer baixar as defesas duma mulher que já tem tudo (ou todos) o que quer. Os dados estão lançados, vamos ver em que vai resultar. [continua]

sábado, 3 de setembro de 2005

A Mulher do Metro - Parte III

Observei-a descer a rua lentamente, passo atrás de passo. Fiquei com a sensação que toda a gente por quem ela passava a olhava de lado, como se lhe desejasse algo de mau. "Deixa-te de paranóias" - pensei, mesmo antes de chegar alguém, um homem alto e magro com cara de mau, que dum momento para o outro lhe agarra o braço com violência. Vocifera algo que não percebo enquanto a agita freneticamente. Por um lado sinto o ímpeto de fazer alguma coisa, por outro, gosto de ver a maneira como ela lida com aquilo. Não lida, simplesmente! Permanece impassível, olhando para a frente, ele (penso) chama-lhe nomes e ela não responde. Até que ele desiste e a larga, indo embora.
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Passa a mão no cabelo e segue em frente, como se nada tivesse acontecido. É aqui que me assusto outra vez ao pensar ir falar com ela. E se ela me trata como aquele homem, me ignora completamente. Nunca lidei com esse tipo de humilhação... Ainda um pouco confuso, começo a caminhar na sua direcção.
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Ao chegar ao mesmo lado do passeio onde caminha, o mundo ao redor lentamente esvanece. Só tenho olhos para as suas linhas, caminhando lenta e sensualmente. Todo o tipo de pensamentos me sobem à cabeça, imagino-me com as mãos nas suas ancas, o seu corpo quente e nu a balançar-se sobre mim, seus mamilos... Bem, pára! Controla-te! Sacudo a cabeça e mantenho-me como se fosse uma pessoa qualquer.
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Apresso o passo, reduzindo a distância e começo a sentir o seu perfume, Deep Red, mais uma vez. É neste momento que cruza uma esquina. Eu faço o mesmo passados 5 segundos e já não a vejo. Entro em pânico quase instantaneamente, perdi-a. Olho em volta, até que ouço, num russo com sotaque:
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- Vais dizer-me o que queres duma vez por todas ou tenho de chamar a polícia? - a voz, que não preciso dizer ser sua, vem da minha esquerda, da entrada para o prédio que faz a esquina. O seu ar é de zangado, estou nervoso e sinto o meu corpo todo quente. [continua]

sexta-feira, 2 de setembro de 2005

A Mulher do Metro - Parte II

Os dias passaram, e com eles, também eu. A cada dia ia sentindo-me mais abaixo, mais abaixo, até não saber o que estava a fazer, não saber como o fazer, não saber nada. Não me saía da cabeça aquele olhar triste, a sua face, bela... Queria fugir de onde quer que estivesse e ir salvá-la. Imaginava um sem número de coisas que lhe pudessem estar a acontecer, e imaginava-me a socorrê-la.
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Tinha mais pena das pessoas. Tinha de olhar muito bem para alguém antes de o roubar, sabendo que esse dinheiro não lhe faria falta. Estava com uma moral, dentro desta imoralidade, algo que nunca antes acontecera em mim. Estava, decididamente, diferente. Tinha de tratar disso. O mais rápido possível.
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Começei a vigiá-la. Não me foi difícil chegar onde morava. Da primeira vez, eu levava vestido um pullover vermelho, umas calças de ganga azuis. Enconstei-me a um lampião fundido em frente ao seu prédio de azulejos foleiros castanhos e esperei, fumando cigarro atrás de cigarro. Quando chegou vinha vestida, embora com outras roupas, num estilo exactamente igual a quando a vira da primeira vez. Classe, classe. Senti algo que nunca havia sentido em toda a minha VIDA. Ela era boa de mais para mim. A sua beleza, o seu ar, o seu estilo, classe, era atributos que eu nunca poderia alcançar.
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Apago o cigarro no ferro verde do lampião e sacudo esses pensamentos da cabeça. "Nenhuma mulher é boa de mais para mim. Tenho sempre o que quero. E se quiser esta, tenho-a." - eu próprio não acreditava muito no que diza, mas tentava, lá isso tentava. Estava perfeitamente consciente que esta tinha algo de especial, algo diferente. Algo que eu não podia esperar por saber o que era. [continua]