sábado, 29 de março de 2008

Godlieve - XXXVII

Segunda-feira. Mais um capítulo na VIDA fodida de… Theodoor? Sei lá, já não sei bem quem sou, em que patamar me encontro… Viajo dentro de mim à procura da resposta que me ilude sucessivas vezes, dependendo de com quem esteja. Ilude. Quando sozinho é quando a tenho como mais ténue. Desaparece entre imagens que crio e situações que não chego a viver. É o início duma nova semana e posso, ao menos respirar de alívio, pois tenho diante de mim o próximo passo com Godelieve. Passo? Não. Os passos já foram dados, caminhamos juntos agora, suponho. Talvez o próximo… não sei. Juro que não sei.

Curioso como tanto pensei neste momento, o momento em que a “poderia” contactar, e nem pensei em como o fazer. Isso assusta-me um pouco. Não entro em pânico, mas penso, agitado, e nitidamente exagerando… se conseguirei encontrar um método de a contactar. Sei que sim, e penso se apreciarei este sofrimento, sendo que, apesar da resposta não ser difícil, gosto de a afastar, pensando que a posso ter perto de mim quando quiser. Talvez o mesmo que faço com a própria Godelieve. Poderei afastá-la tanto, jogar tanto com os meus sentimentos, que a perca e não a saiba recuperar? Foda-se que pensamentos de merda…

Terça-feira. Estarei, creio, numa situação parecida com a mítica página branca do escritor. Tudo depende de mim, e tenho várias maneiras de o fazer, mas quero a melhor, e por isso permaneço, não na dúvida, mas numa espécie de escuridão.

Quarta-Feira. Vrijheid? Não. Como saberei que lá vai?... Quero estar com ela este fim-de-semana. Não disse que seria no final de quatro semanas. Disse apenas que seria em quatro semanas, por isso não vou ligar a preciosismos e vou agarrar a oportunidade de a ter perto de mim o mais cedo possível. Um pensamento que não é meu, ou pelo menos não é típico do típico eu, me assalta. Se estiver com ela esta semana e ela quiser esperar mais quatro semanas, apenas a verei… pára! Não continuarei a frase. Perdi-me na própria incongruência do estúpido e sem sentido pensamento. Sim. Disse-lhe que saberia como a contactar. Imagino-a neste momento, completamente sedutora numa qualquer biblioteca de Nieuwe Adelaars a beber um chá e a pensar na maneira como tenho tudo sob controlo. Penso se a imagem que tenho da imagem que tem de mim estará certa. E penso em como, caso esteja, tão distante se encontra da verdadeira imagem de mim, alguém dividido em pó, à espera de algo que ora afasta, ora aproxima… boa merda…

Não estive com Adriaan ou Helga toda a semana. Esta ligou-me a perguntar se não o queria ir buscar à escola, ou jantar com ele, mas tive de inventar uma qualquer desculpa para não o fazer. Tive? Não tive, quis, ou preferi… O último Domingo deixou-me em muito mau estado. E custa sempre a dobrar, quando estamos em tal mal estado, mas a imagem que queremos que prevaleça seja uma completamente diferente. Tudo estaria tão melhor se Godelieve esperasse por mim em casa. Todos os dias. Helga que se foda. Sim… assim como a engano, com esta aparência de segurança quando, no fundo, reside uma espécie de caos, o que me garante que com Helga não se passará o mesmo? E o que me garante, a mim próprio, que apenas penso isto para me sentir mais em paz com a ideia de que já me ultrapassou, e que… não sei, nem tudo é o que parece.

Chego a casa, depois do trabalho. Saio de casa, depois de me sentar no sofá por meia hora sem nada fazer. Entro no primeiro bar, ao virar da esquina, mal frequentado, com revolucionários da treta e bandeiras da treta na parede. Não quero merdas, apenas um whiskey. Lembro-me do episódio no Vrijheid com os outros revolucionários da treta e tenho saudade dessa personalidade que por vezes me habita e me enche de confiança. A ambivalência interior massacra, e o que me prova que o que sinto por Godelieve é algo inominável, é o facto de estar a sofrer, neste preciso instante, como não sofria há muitos anos, e não me arrepender de nada que tenha feito. Foda-se e porque é que me recordo tantas vezes que de nada me arrependo?

Um simples telefonema e arrumo a questão. Mas nem sei por quem chamar, não sei o seu nome. Sei que concerteza uma empregada atenderá. Sim, claro, posso sempre chamá-la pelo último nome do marido. Sei, já nem sei como, que não o adoptou, mas concerteza a empregada perceberá. Mas e se for Ruud? Desligo. Tão simples quanto isso. Tiro o telefone do bolso, e percebo que não sei o número. Tenho de ligar a uma pessoa que o saiba. Quase que nem preciso de seleccionar um nome em particular da lista, e isso faz-me voltar a pensar na rede que (não) tenho.

Sim. Tudo. Nome? Obrigado. Não. Quem sabe um dia. Ok. E acaba a conversa. Tenho o número. O telefone anuncia o estabelecimento da ligação. Ouço, do outro lado, uma voz masculina perguntar quem é. Todavia, não me parece que seja a voz de Ruud. Chamo pela senhora.

- Sim? – o whiskey salta do meu estômago para o meu sangue e sinto-me subitamente embriagado ao ouvir a sua voz de areia. Mais uma vez, nem pensei no que dizer.

- Sou eu. – anuncio-me. Não espero pela pausa do outro lado – Vrijheid, Sábado. Espero ver-te, adeus. – não querendo parecer um menino de escola que deixa um recado à sua apaixonada a toda a velocidade e desliga, falo pausadamente, mas forte, impedindo que responda, quem sabe dizendo que não me pode encontrar. Desligo sem ouvir uma resposta. o whiskey voa pelos cantos dos meus órgãos como se de água se tratasse, e assim vou bebendo. Permaneço no mesmo café, sem os problemas que não queria, apenas bebendo e fumando Dunhill atrás de Dunhill. Espero um sentimento que tarda em aparecer. Queria sentir-me mais em paz depois de ter uma data. Mas não o sinto. Como será possível? Sinto-me ainda pior, pois sinto-me como dantes me sentia, com o acréscimo de que por agora esperava sentir-me melhor. Penso na minha própria estupidez de não ter querido ouvir uma resposta e aí as minhas dúvidas esclarecem-se. Sim, apesar de não o querer admitir, devo ter efectivamente um qualquer prazer nesta dor que a espera me provoca. Será o momento do encontro tão melhor quanto maior a dor que o antecedeu? Será isso?

Foda-se. Vou para casa, enterro-me no sofá. Não tenho cigarros. Que se foda. Não. Volto a descer, compro, volto a subir. Desta feita sento-me na varanda, com a cidade a rezar para mim. Escolho “Braille”, de Regina Spektor, que deixo em repetição. Qualquer sonoridade que me deixe a sentir-me com pena de mim é boa. A VIDA das pálpebras vai, sub-repticiamente, à sua própria VIDA, e quando as volto a abrir, as luzes da capital mostram-me que um novo dia começou.

Quinta-Feira. Acordo com o sentimento indesejável ainda um pouco adormecido, o que me alegra. Quem sabe esteja desfasado de mim, pois um ou duas horas depois, quando já no trabalho, o sentimento acorda. Não tenho música nem whiskey, o que é pena.

Sexta-Feira.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Uma Amena Tarde de Outono

Radiohead - Scatterbrain

.

Vou caminhando rua fora. Toca no meu coração uma música qualquer, que me aquece as extremidades. Um sorriso veste os meus lábios, os meus olhos brilham para as pessoas ao meu redor. Tiro o casaco e levo-o apoiado no ombro. Está uma amena tarde de Outono. Vejo o caminho que ainda me espera, que me separa dela… alonga-se nos metros da estrada de alcatrão estalado, pigmentada pelas belas folhas das árvores, que também gostam de mudar de roupa de vez em quando.

.

Não me sinto caminhar. Quando penso nela, e é tudo o que faço nestes últimos dias, sinto-me levitar. Entra em mim um nervosinho miudinho infantil, algo mais poderoso que borboletas, que me revolve o estômago e por vezes me deixa confuso. A rir, de mim para mim, penso se serei masoquista ao amar tanto este mal-estar, esta sensação que é a mera expressão de tão poderoso sentimento.

.

Dobro a esquina, vejo a sua casa ao lado. O meu sorriso alarga-se um pouquinho. As pessoas passam por mim e vejo-as como se fosse o dia mais feliz das suas VIDAS. Transporto para elas o que eu próprio sinto. E sinto. Sinto cada dia em que estou consigo tão melhor que o anterior, pois é um dia em que a conheço melhor, um dia em que trago comigo mais minutos de existência na sua presença, mais beijos dados… mais segredos contados.

.

Será possível sentir-me tão apaixonado com apenas 17 anos? Mais uma vez me rio de mim mesmo. Pois se o estou a sentir, é porque é possível… Não penso se pode acabar, se vai deixar de gostar de mim, se vou deixar de gostar dela. Sei que a vou amar para sempre, que me vai amar para sempre, e que tudo correrá bem, cada vez melhor, dia após dia.

.

Chego a sua casa. Desde que toco à campainha até ver a porta se abrir passam uns velozes 3 segundos. Vejo-a diante de mim, como se fosse a primeira vez. Cabelo encaracolado, cachos coroando seus ombros, uma flor branca acima da orelha, os lábios pintados de um vermelho discreto. O seu sorriso entra em competição com o meu, oferecemos um empate e matamos ambos os sorrisos, desfazendo-os num longo e apaixonado beijo. Não dizemos nada, descemos as escadas de mão dada, sentimo-nos bem, sentimo-nos felizes, e temos toda uma amena tarde de Outono para desfrutar.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Godelieve 36

O Sábado mostrou-se sozinho, Domingo dizia que da mesma forma passaria, pelo que liguei a Helga, perguntando se podia ir buscar Adriaan. Enquanto ouvia o telefone tocar, imaginava-a a levantar-se da cama, e a dizer a Arie que provavelmente era eu pois esta, tanto quanto eu sabia (que pelos vistos até era pouco), tinha ainda menos amigos que eu… sim, e agora tentava açambarcar o meu melhor amigo… Seria possível Arie iniciar uma relação séria com Helga e continuarmos amigos? Não tinha pensado tanto assim nisto, e agora que o fazia…

.

- Sim?

- Olá! Sou eu!

- Ah, olá, tudo bem? – pergunta Helga. Está com aquele tom de voz que ora me irrita, ora me seduz. Irrita-me porque não era assim descontraída quando comigo, seduz-me pois não era assim descontraída quando comigo.

- Sou eu!!! O teu ex-marido, com quem já não estás há pouquíssimo tempo! Foda-se sente-te desconfortável, sê antipática, que caralho…apetece-me gritar, com toda a força! – Olha estava a pensar em ir buscar o Adriaan. Pode ser? – não responde de imediato.

.

- Pode, pode… mas olha… eu de momento tenho visitas, mas mais daqui a um bocado podíamos ir os três ao cinema, que achas? – hã? – Acho que era bom para o Adriaan estar de vez em quando com ambos os pais… Que achas? – sei lá o que acho?

.

- Hum, pode ser, acho eu… – ah, e as visitas? – Ah, e as visitas… quem são? – pergunto, só para ver como se safa.

.

- São só uns amigos meus, mas eles já vão. Passa aqui daqui a meia hora… – meia hora? Pois passo… que tal agora? Mas desligamos corro, entro no carro, sento-me e conduzo com toda a velocidade para sua casa. Pelo caminho penso se fico escondido à espera, ou se espero mesmo em frente à porta, para ver o meu caro amigo Arie dizer-me “olá” com cara de cu…

.

Estou nervoso. Acendo um cigarro, abro um pouco o vidro para o fumo sair. Demorei cerca de vinte minutos, mais do que esperava. Mas menos de meia hora, isso é o mais importante. Com toda esta comoção, nem pensei no simples facto de querer sair comigo e com o Adriaan. Claro que acho que isso é bom para ele, mas como é que ela se sente tão bem com isto?... E porque é que me está a custar tanto perceber que não serei, pelos vistos, inesquecível?... Será isso? Será que quero ser inesquecível?... Que quero que a marca e influência que tenho nos outros, nas pessoas que me rodeia, e especialmente em mim próprio… seja sentida também pela minha ex-mulher? Que idade tenho?

.

Passam quinze minutos, ninguém aparece. Passam mais dois, e vejo Adriaan, o pequeno Adriaan, descer as escadas que dão acesso ao prédio, com a mãe pela mão. Como é possível? Será que, sabendo que eu viria, fizeram por se despachar? E será possível que eu esteja a ficar completamente doido e paranóico? Penso, com um sorriso que me custa esboçar, que talvez sejam sintomas da abstinência de Godelieve…

.

Como está bonita… Sorri largamente ao ver o meu carro estacionado do outro lado da rua, vê se vêem carros, e solta o filho, que corre na minha direcção… Traz uma saia de lã branca e um top azul, que apesar de discreto, deixa a vontade do toque… de sentir o que está por detrás. Senta-se ao meu lado. Foda-se, como a quero foder neste momento…

.

- Olá! – cumprimenta, com um sorriso – Adriaan, põe o cinto! – tenho de parecer o mais natural possível. Além de não querer por nada que perceba que sei de Arie, não quero que perceba isto que eu próprio não percebo… o desejo que neste momento sinto por si.

- Olá, tudo bem?

~

Não me consegui concentrar muito no filme, e sinceramente, nem me lembro do título. Batalhava com a vontade de lhe segurar na mão, de lhe tocar na perna, de lhe beijar o pescoço. O perfume que chegava aos meus sentidos era o mesmo de sempre, e o meu desejo, esse, por mais que me matasse, não era o mesmo de sempre. Fechava os olhos e queria ver Godelieve. Conseguia vê-la, conseguia sentir o que sentia por ela, nenhum arrependimento pelas decisões que tomava, conseguia descer um pouco a mim próprio e acalmar-me… bem, quem é que quero enganar? Estava, literalmente, sem saída. De olhos fechados, a presença massacrante de alguém que há muito tempo não via e queria ver… de olhos abertos a massacrante presença de alguém que via… e não queria querer ver…

.

- Vamos comer uma pizza a algum lado? – sugeriu, de seguida. A cada passada arrependia-me profundamente de ter feito o primeiro telefonema. Ou de ter assentido que saíssemos os três. Penso. poderia ser que quisesse que se sentisse desconfortável em estar comigo porque isso era, no fundo… tudo o que eu sentia quando estava consigo. Quereria eu… que ela fosse mais fraca? Tinha começado um jogo, ao sugerir o primeiro jantar, que nunca pensara poder perder. Mas agora… não o perderia, certamente, pois não levaria a situação a tal extremo… mas sentia-me o elo mais fraco.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Cruel

The Gift – How the end… always end

.

- Sabes que eu gosto muito de ti, não sabes? – Estávamos sentados em Coimbra. Curioso como posso dizer isto das duas maneiras… Estávamos sentados, em Coimbra. E estávamos sentados em Coimbra, de certa forma, pois diante de nós, estendia-se a Cidade, em todo o seu esplendor e romantismo. Romantismo. Acho que foi isso que me levou a agir como agi. Ou melhor, a fazer o que fiz. Estou confusa. Foi isso que me levou a arriscar. Deixei esse romantismo penetrar bem dentro de mim, e pedi-lhe para descermos até à rua. Achei que o fez a contra gosto. A festa estava animada, e eu, sinceramente, nunca achei que ele estivesse interessado em mim. Contudo, descemos, sentamo-nos no muro, e à medida que ia abrir os lábios para lhe dizer qualquer coisa, ele levanta o indicador, olhando-me bem fundo nos olhos. Não falo. Não tanto por ele ter pedido, mas porque todo o ar que tinha dentro de mim sai subitamente, à medida que o vejo aproximar-se. Tento concentrar toda a minha energia nos meus lábios, todo o meu ser, todo o meu sentir. Mas ele faz um pequeno desvio, e abraça-me. Sinto-o quente,… sentia-o quente, mas sentia fria a maneira como as suas mãos tocavam as minhas costas.

.

- Sabes que eu gosto muito de ti, não sabes? – diz-me então – Terás sempre um lugar especial no meu coração, como a amiga que eu nunca vou perder!

.

Passado uma hora eu permanecia no mesmo sítio. Ignorei os seus pedidos para ir para cima, disse que não estava a fazer birra, e acho que só o percebeu realmente quando o olhei e supliquei, os olhos, imagino, a transbordar, para ir embora. Via, de vez em quando, alguém a espreitar por detrás da cortina a rir, e ele a afastá-los, com cara de chateado. Olho para trás, as lágrimas percorrem a minha face. Cansa. Olho para trás, começo a sentir as ondas de som embater no meu corpo, a festa começa… começava. Cansa. Cansa ser assim, cansa ter sempre o mesmo tipo de relações. Sou sempre a melhor amiga de toda a gente, mas nunca sou o que realmente quero ser para ninguém. Chego a casa. Agora sim, o presente. Chego a casa, dispo-me.

.

- Não ias à Queima?

.

- Estou doente. – largo, com voz chorosa. A mensagem é recebida, e sou deixada em paz. Olho-me, nua, ao espelho. Tento olhar mais fundo, o mais fundo que posso, cerro os olhos, mas não me consigo ver, não consigo ver a minha alma. Olho no espelho e não me vejo, como posso esperar que os outros o façam?

.

Sinto como uma injustiça inqualificável o facto de ser julgada e (não) amada apenas pelas fronteiras do meu corpo. Sou amada pelo que sou por mais gente do que preciso, não sou amada por ninguém da única maneira que preciso.

.

Receio que o que sempre amei em mim, o meu espírito, possa apodrecer fruto do que os outros não amam em mim.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Hooked

Sento-me sempre no mesmo lugar nestas ocasiões. Vejo as pessoas passar, vejo os sorrisos estampados na cara de toda a gente, numa estúpida tentativa bem sucedida de fazer inveja a todos os restantes mortais que, como eu, os vêem passar, altivos e felizes, desfilando imperiais e triunfais pelo meio da população, que aplaude. Aperto um pouco mais o casaco, está frio. Sinto o Vento entrar pelos buracos que explicam a idade do casaco. Aquela tem, de certeza, 26 anos!

.

Compareço sempre nos preparos. Ou invento uma desculpa, ou escondo-me atrás desta ou daquela coluna, vendo tudo o que se passa, absorvendo a alegria que os outros sentem. Contudo, não consigo. Quero absorver essa alegria para mim, mas chega pouco, muito pouco. Como um vírus, ou uma droga, come-me mais um pouco, vandaliza-me totalmente. Após umas dezenas de anos, apenas recentemente descobri que as desculpas que hoje sei que o são, também para mim o eram. Era-me difícil admitir. Tão difícil.

.

Não sei porquê, Deus castigou-me com… não sei, uma cara, um corpo, seja o que for em mim, que sempre manteve os homens a milhas. Mentia, dizendo às minhas amigas que simplesmente não queria, mas a dor que sentia era quase insuportável.

.

Como disse… como qualquer droga, a primeira vez foi fantástica! Tinha 30 anos, e vi a igreja apinhada. Entrei, assisti a toda a cerimónia. Ia-me embora, quando alguém me abre a mão, deitando uma porção de arroz. Não sei o que me levou a fazê-lo, mas não disse que não, e sorri com toda a força que podia, como se fosse a minha própria irmã que se estivesse a casar. Esperava ansiosa à saída, as pessoas ladeavam-me, cada uma pensando que eu seria amiga de um ou outro noivo e eu, estupidamente, não desmentindo. Quando a vejo caminhar, deslumbrante, chega a mim uma energia inexplicável, os meus sentidos são esquecidos e voo para dentro do seu corpo. Nesse momento, ela sou eu, e eu, que é ela, sou alguém triste, sem amigos, infiltrado num casamento.

.

Tudo passa depois, e depois da energia, da alegria, vem a depressão, o sentimento de culpa, a vergonha. Sinto nojo de mim em ter feito o que fiz, sinto vergonha por me ter humilhado daquela forma e descer tão baixo, e convenço-me sempre que é altura de ter juízo e foi a última vez. Aguento uns dias, até que, em amena conversa com o espelho, digo-me que vou apenas ver se alguém se vai casar, para provar a mim mesma que, ainda sabendo que vai acontecer, eu vou ser forte e não vou ceder.

.

Mas.

.

Vai ser a última vez. Prometo que vai ser a última vez.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Sentir

Oceansize – Unravel

.

1 segundo… tudo começa. Como que um início do fim desde sempre desejado. A VIDA não lateja em mim. Caminho pelas ruas e vejo-me desaparecer um pouco por todo o lado. Volto-me para trás e procuro um vestígio de um “eu” desaparecido. Olho para as pessoas que passam por mim na rua, pergunto-lhes, com o olhar, por mim, se me têm visto… ninguém responde. Nunca ninguém responde. É-me inútil comunicar, tentar fazer-me valer no meio de tanta paixão mal orientada. Ouço bater em mim os passos da música, lá longe, que ouvi nesta manhã e não consegui esquecer.

.

2 segundos. O voo pede mais, eu peço mais. Sempre pedi mais, sempre tive tudo. Mergulho em mim, agarro a minha frustração, e critico a minha própria incapacidade em amar tudo o que me deram. Tenho de ser castigado por uma falha tão minha, desde sempre tão minha… em não conseguir apreciar nada da VIDA?

.

2 segundos e meio. Pena de não me sentir, nem no derradeiro momento, em que tudo deveria ser importante, e estupidamente nada o é. Viajo dentro da mente das pessoas que quem mais gosto… não… das poucas pessoas que não me são indiferentes… procuro um objecto sólido, na mente e na memória de cada, que os faça lembrar-se de mim e sorrir, que os faça lembrar-se de mim e sorrir, e não consigo encontrar nada. Vejo reticências que não acabam dentro de toda a gente de quem já, alguma remota vez, gostei.

.

Quase 3 segundos. Vejo à minha frente o futuro, como uma gigante bolha cheia de nada, onde mergulharei e não voltarei a acordar. Vejo o futuro como uma simples abstinência de presente. Na desenfreada corrida que sempre tive de apenas sentir algo dentro de mim, ganhei o medo de realmente o fazer. Cedo caiu em mim a consciência de que sentir estava a milhas de distância. Nada chegava à minha pele, nada entrava dentro de mim. Daí veio o medo. O que sentiria se descobrisse alguma vez que sentir, realmente, estava ao meu alcance?

.

3 segundos. Agora sei. Tenho sensações, mas que morrem sem deixar qualquer descendência em forma de sentimento. Tudo o que senti nesta corrida esqueci no milésimo de segundo seguinte, partindo para um qualquer lugar em mim que nunca tive a coragem de conhecer. Caio no rio gelado. As sensações cessam, os sentimentos permanecem nulos.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Carta

Blue Light - Blooc Party

Vale de Cambra, 29 Dezembro 2008

Z.,

Quatro e cinquenta e cinco da tarde. Tempo chuvoso. Toca a música que me lembra de ti. Sei que não devia ouvir, sei-o bem, tão bem… Mas gosto de me massacrar, gosto de sentir este desespero que me deixa a desejar um passado diferente. Não. Um passado igual, apenas com a decisão fundamental diferente. Serás tu, realmente, a “Bluest Light”? Como espero que não… A melodia toca no computador, mas sinto a batida dentro de mim. O peso da solidão que deixaste em mim é avassalador, e o sentimento de culpa que tenho cospe-me na cara. Vejo pessoas ao me redor, quero ser cada uma, se por um momento pudesse deixar de ser quem sou. Quero ser tudo o que não sou, porque, no fundo, me odeio. Expulsei-te da minha VIDA, num misto de pseudo-heroísmo e estupidez. Querias estar comigo, tratando-te eu como te tratava. Estava disposto a mudar? Não. Arrependo-me? Como…

Acho que, naquele momento em que consegui sair de mim próprio e olhar para a nossa relação, percebi o mal que te fazia. É incrível a disparidade de sentimentos que tenho em relação ao nosso fim. Por um lado acho que a melhor coisa que fiz foi libertar-te de mim, por outro, essa decisão fez com que me sinta aos pedaços VIDA fora… Sempre me senti despedaçado, sabe-lo bem, mas acho que talvez fosses tu que me aguentasses todos esses pedaços, bem juntos, dentro de ti, e me fizesses esquecer de tudo o que tinha que esquecer, apenas com o olhar.

Saudade,

M.


Braga, 1 de Janeiro 2009

M.,

Quando vi a tua carta, na minha caixa de correio, o meu coração disparou. Não sabia muito bem o que sentir, não sabia se queria ler. Pensando na última vez que te vi, queria rasgar a carta. Nunca aconteceria. Com um sorriso, pensando que apenas tu enviarias uma carta nos tempos de hoje, peguei, abri, e li. Fui estúpida. A dor de ver o teu nome, a saudade de tudo o que tivemos deixa-me confusa, desamparada. Ainda assim, não li mais nada até perceber que ouvias a nossa música. Corri para casa. O A. perguntou-me o que tinha na mão, quis mentir, mas disse que era uma carta tua. Chamou-te nomes, mas não quis saber, entrei no quarto, pus eu própria a mesma música, e sentei-me a ler. Chamo-me estúpida porque ouvir a nossa música ao ler as tuas palavras fizeram-me sentir incrivelmente triste. Nem percebo a minha reacção… tu és, ou foste, um cabrão comigo vezes sem conta. Uma parte de mim odeia-te por isso. Mas quero que saibas que a parte de mim que ainda te ama suplanta a parte que te odeia. Ainda que ninguém o perceba.

Saudade,

Z.


Vale de Cambra, 5 Janeiro 2009

Z.,

“If that’s the way it is, then that’s the way it is…”

Quantas vezes repeti estas frases na minha cabeça… pensava em ti, no que perdi, e tentava convencer-me que simplesmente tinha de ser assim. Tenho pena, claro, de te ter perdido, mas… Por favor percebe o meu funcionamento, por favor percebe a maneira estúpida que tenho de afastar as pessoas que amo, por favor percebe isso, e percebe o quanto estou disposto a mudar. Nada do que vejo faz sentido. Apenas tu davas cor às coisas, guiavas-me, deixavas-me sair da minha alma, limpá-la um pouco. Não consegues imaginar o que sinto ao ter de viver sem o teu sorriso terapêutico, amarrado à tua fotografia, que levo para onde quer que vá, ouvindo a nossa música vezes em conta, até me sentir tonto…

Tenho pena de a primeira vez que te digo isto seja num papel, estando tu a 300km de mim, mas peço-te perdão, ainda que sendo tarde de mais, por tudo o que fiz, e suplico-te…

Voltas?

Saudade,

M.


Braga, 31 Janeiro 2009

M.,

Após ter-te enviado a minha carta, esperava sentir-me liberta, não sei porquê, nem de quê, mas o sentimento não veio. Dei por mim a ver a minha caixa de correio todos os dias, sentindo-me, ao não ver nada, ora triste, ora alegre. Talvez fossem as minhas diferentes partes (a que te odeia e a que te ama), a darem voz ao seu interior… Quando vi uma nova carta tua, o processo foi idêntico. Desta feita o A. Não me viu, não teve oportunidade de te chamar nomes e de me fazer odiá-lo naquele momento.

Tenho de ser sincera contigo, como sempre fui. Quando acabei de ler a carta senti-me profundamente triste e, acima de tudo, zangada. Como é que podes fazer isto? Como é que, depois de tudo o que se passou, depois de tudo o que foi dito, depois deste tempo todo, me vens pedir para voltar? Não imaginas como me sinto em desespero! Há agonia a transbordar em mim, pela tua eterna falta de sentido do tempo, falta de preocupação comigo,… agora casada, com uma VIDA estável, a planear ter um filho (sofre), que direito tens tu de agitar assim toda a minha existência? Querido…

Tenho pena da falta de cor na tua VIDA neste momento. Parte de mim… não, toda eu gostaria que as coisas tivessem acontecido doutra forma, gostaria que quando te disse que se saísse pela tua porta, nunca mais me verias, me tivesses pedido, mais uma vez, perdão, e te tivesses comprometido a mudar… mas tu não o fizeste, e sofri, como sofri. Mas, e isto custa-me dizer, vais ter de viver com o peso das tuas decisões, e seguir… como quero que sejas feliz…

A minha VIDA, com o A., sou honesta, não tem aqueles tons brilhantes e coloridos que tinha quando estava contigo. Mas também são muito raros os momentos em que vejo o mundo apenas com duas cores. A paixão dói, o amor conforta. Optei.

“If that’s the way it is, then that’s the way it is…”

Adeus,

Z.

domingo, 16 de março de 2008

Partir

Trail of LIFE - Oceansize

.
Dizem que a minha reacção não é normal. Que estou em profunda fase de negação. Que outras fases virão, como a raiva, e outras coisas assim que não me recordo muito bem. A primeira pessoa que me falou nisto foi o meu médico, com um profundo olhar de consternação. Depois a minha família, tendo ouvido o meu filho, que é psicólogo. Quando digo que está tudo bem, olham para mim com um sorriso triste. Ai sim, por vezes entro em raiva, não pela minha condição, mas pela falta de compreensão. Como se eu fosse obrigado a sentir-me miserável por saber que morrerei no prazo de um ano.

.

Pois vejamos…

.

Tenho 62 anos. Um cancro. Não há grande volta a dar. Querem que entre em tratamentos, que me podem prolongar a VIDA até mais um ano, ano e meio, mas que me obrigarão a passar a maior parte desse tempo em hospitais. Vejamos… tenho 62 anos, 3 filhos que tenho a grande sorte de terem saído à mãe (fantásticos), 4 netos brilhantes. Um deles sai ao avô, mas isso, claro, também me deixa contente, pois o Mundo precisa de pessoas que o abanem de vez em quando. Tive a sorte de passar a VIDA profissional num emprego que me permitia estar com pessoas, sorrir para elas, receber sorrisos em troca. Essa sorte que me permitiu chegar a casa dia após dias com um sorriso nos lábios, salvo as raras excepções a que a condição humana está sujeita, de dias menos bons. Tenho um leque de amigos enorme. Conheço meio mundo. Fiz porcaria que chegue na VIDA que me permitiu aprender com cada erro, mas que também me permitiu sentir-me vivo… Mais importante, deixarei todos em boas condições, a minha mulher com a estabilidade que precisa, e com a beleza dos seus 55 anos num ponto glorioso. Não me posso queixar. Nada. Daí que…

.

- Não sei como lhe dizer isto. O seu cancro foi descoberto muito tarde, e agora não há como reverter a situação.

.

- Como assim?

.

- Podemos, com tratamentos, prolongar um pouco o seu tempo de VIDA, caso contrário, é possível que faleça num ano.

.

- E com os tratamentos?

.

- 2 anos, 2 anos e meio. Mas são um pouco custosos, e tem de passar muito tempo no hospital. De qualquer modo, recomendo vivamente que os faça. – sorrio.

.

- Doutor, não se preocupe. Não precisa de se sentir triste por mim, nem de usar termos como “falecer” em vez de “morrer”. A verdade é que vivi uma VIDA que muita gente desejaria ter vivido. E agora que sei quando vou morrer, posso dizer, com toda a certeza, que partirei feliz e satisfeito. – levanto-me.

.

- Sr. Rodrigues, espere, temos de falar dos tratamentos.

.

- Porquê, está doente? – pergunto, com um sorriso. O seu olhar adquire o estatuto de incompreensão – Estou a brincar consigo. Sabe, acho que prefiro continuar o pouco tempo que me resta a viver como sempre vivi, do que agarrado com todas as forças a uma corda que sei que vai partir mais dia menos dia. Muito obrigado por tudo.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Quero Voltar Para Mim

Reckoner - Radiohead

.

Desespero. Caminho pelas ruas. O meu corpo pede, o meu corpo pede muito. O meu corpo pede e reivindica, não me deixando sossegar. Tremo em cada poro, os olhos querem revirar, tento concentrar-me, e ao mesmo tempo alhear-me. Caminho pelas ruas de chinelos, t-shirt e calças de ganga, as mais velhas do país, imagino. As pessoas passam por mim. As pessoas passam por mim. Estico a mão, peço algo, mas chamam-me nomes com o olhar. “Drogado”. Sou, pois sou. Mas neste preciso momento, quero ser ainda mais, porque preciso mais do que alguma vez. Penso sempre isto quando ressaco violentamente. Como se a cada vez me acrescentassem um peso de 10 quilos nos ombros. Talvez por isso o meu caminhar tenha um olhar tão pesado. Penso nos meus pais, lá longe, que não ouvem de mim faz tanto tempo. Passo por um velho, que levanta dinheiro. O instinto é mais forte, a mão mais rápida. Num momento tenho 100 euros na mão. Quero correr, quero fugir. Sei que ele não me apanha, é velho. Mas eu estou todo destruído, não é difícil perseguir-me. Corro uns metros, ouvindo o velho gritar por ajuda. Já penso no bairro do Ingote quando sinto um violento pontapé nas pernas. Voo uns metros e caio redondo no chão, as notas a voar. Olho para trás e vejo dois rapazes, um apanha o dinheiro para dar ao velho, o outro dá-me pontapés na barriga. Não pára. Não quero que pare. Quero sentir a dor violenta que me afasta dos meus próprios pensamentos. Estou a sangrar. “Mata-me filho da puta, mata-me!” – exijo. É tudo o que quero. Quero desaparecer. Quero morrer e voltar a ver-me há dois anos atrás, voltar a aterrar no corpo saudável do jovem que já fui. Quero desaparecer, deixar de sentir o que sinto, deixar de sentir a culpa enorme por tanto ter magoado quem magoei, que só me faz querer magoar mais, pois apenas um chuto alivia. O gajo afasta-se. Penso na ironia de que os chutos com que me espancou fizeram-me não pensar no outro chuto em que tanto penso. Choro agressivamente, deitado no chão molhado. Confundo terra com sangue com água. “Mata-me filho da puta, mata-me” – digo, baixinho, deixando as lágrimas entrar também nessa mistura sangrenta. Quero voltar para mim…

segunda-feira, 10 de março de 2008

Godelieve 34 (hoje, 2ª, publiquei do 31 ao 34)

- Estou, Arie? – estou no meu Mercedes, a caminho do trabalho, enfiado no trânsito. Afasto uns miúdos locais que me querem lavar o vidro, e ligo ao meu amigo, que aparentemente me iria surpreender…

- Ah, olá! Não tinha visto quem era… – pois não – Tudo bem contigo? – pergunta. Não sei se estou tão obcecado em descobrir sinais e por isso o faço em demasia, vendo em cada sílaba a assustadora verdade ou se… realmente há algo para ver…

- Tudo bem, tudo bem… Olha, estou a ligar para perguntar como correu o teu encontro ontem à noite… – que cínico. Não sei como não me sinto mais incomodado por estar a agir como ajo. Eu sei onde ele esteve, com quem esteve, e ele sabe que eu sei. porque não acabar com esta treta toda? Acho que, devo admitir, me dá um certo gosto o facto de ter percebido isto tudo sozinho e estar numa posição que me permite brincar com as outras pessoas, vendo as suas estúpidas reacções… E, convenhamos, se há alguém que tem de quebrar o gelo nesta situação, é ele! Claro, ou Helga, sim…

- Olha, foi muito porreiro… – apesar de saber que o mais correcto seria ele abrir o jogo, admiro a sua resiliência, e o jogo estúpido que está a fazer comigo. Se comecei na senda das mensagens subliminares com Godelieve, sinto como se isso tivesse sido, efectivamente, apenas um começo de algo prazeiroso, já que tenho vindo a ter o mesmo tipo de jogos com Helga, e neste momento, por incrível que pareça, com o meu melhor amigo – Sabes… aquele jantar que tivemos abriu-me os olhos… De início… Olha, queres tomar café logo? – finalmente – Podemos conversar melhor. Eu agora tenho de ir trabalhar. Vhrijheid às 5?

- Claro… – respondo. Quando desligo o sorriso que tinha vindo a habitar os meus lábios sobe de nível e solto uma leve gargalhada, o que é interessante, já que não é tão frequente assim rirmos quando estamos sozinhos… O dia de trabalho passa sem grandes problemas, e não estive sempre a pensar no café que ia tomar com Arie. Contudo, quando pensava, uma imensa curiosidade tomava conta de mim. Reparava como o desconforto que sentira, dias antes ao imaginar ambos juntos, tinha sido paulatinamente substituído por um sentimento de desafio, de alguns sorrisos e expectativa. Talvez por nestes momentos estar a ver as coisas pelos olhos de Arie. Sim, seria isso. Quando estava com Helga e os imaginava juntos, sentia-me repugnado, e pronto a matar ambos. Mas… agora sentia tudo como diferente.

Sento-me no café. Ninguém está a tocar, uma vez que ainda é de tarde. Os concertos que ali via passavam-se sempre de noite. Havia toda uma noite misteriosamente sedutora em Nieuwe Adelaars. Apenas um certo tipo de pessoas saía. O povo não o fazia. Pelo menos para os mesmo sítios que eu. Não tinha dinheiro, e havia todo um conjunto de regras a que tinham de obedecer que tornava, por vezes, impossível uma saída nocturna. Por isso mesmo, quase eram mais numerosos os bares, restaurantes e casinos que funcionavam à margem da lei do que aqueles que tinham as suas portas abertas nas principais avenidas. Como ninguém tocava no palco, a música que chegava aos meus ouvidos provinha da aparelhagem e, para meu espanto, não tocava o habitual jazz, mas algo mais comercial. Ainda assim, agradava.

- Um Martini. – peço, ao empregado que veio à minha mesa – Olha, que é que está a tocar?

- Isto?... Tenho de ir ver, espere um bocadinho…

- Vê também como se chama a música, por favor… – digo, em voz alta, para me ouvir, já que estava quase a chegar ao bar. Volta, entrega-me o Martini, com duas pedras de gelo e uma rodela de limão e diz-me ser KT Tunstall, a música “The Beauty of Uncertainty”. Não conheço, mas não só o som me agrada, como acho interessante o mote…

A beleza da incerteza… Sorrio. Sim, é belo. Saber sempre tudo o que se vai passar é desesperante. Mas creio ser um desespero que se esconde, disfarçado de segurança. Pensamos sentir-nos seguros, confiantes, quando no fundo apenas estaremos, quem sabe, agarrados a uma certeza proveniente dum medo latente de nos arriscarmos a fazer algo cujo resultado não sabemos… Peço outro Martini, e penso… Com Godelieve, nada era certo… Com Helga, apesar de eu estar convencido que sim, não era certo que estivesse a foder alguém… E caso estivesse, e mais uma vez, apesar de eu estar convencido que sim, não era certo que fosse Arie a pessoa em questão…

Claro que estes sentimentos não são propriamente estáveis. O desespero escondido de ter sempre a certeza acerca de tudo também, por vezes, entra nessa condição que é não ter a certeza de nada. A grande diferença reside, creio, no facto de numa situação ser completamente inconsciente e na outra… completamente consciente. Pois eu prefiro ter os meus sentimentos na mão, senti-los e vê-los, que tê-los disfarçados nos cantos escuros da minha mente…

Estou perdido nas minhas próprias divagações, sentindo a falta de um papel para as eternalizar e definir quando vejo, ao fundo, entrar pela porta o meu fiel amigo. Fiel… a ver vamos… Ou melhor… sim, fiel amigo. Tenho de me convencer, duma vez por todas, que já não estou com Helga… e que não só não estou nada arrependido desta decisão, como também não tenho por que me sentir traído por Arie. Sinto-me traído apenas no facto de não me ter dito nada. Por não me contar o que está a fazer, muito mais do que por estar a fazer o que está a fazer. Vejo que pede algo ao balcão, e encaminha-se de seguida na minha direcção. Traz consigo um sorriso, e a barba por fazer. Sinto-me desafiado. Quase que já não vale a pena referir a inconstância das minhas opiniões…

- Então, vejo que nem tiveste tempo de fazer a barba! – digo, com um sorriso. Foi, de certa forma, como se eu tivesse decidido que as peças brancas seriam as minhas e que por isso, naturalmente, começaria o jogo. Ele sorri.

- Não dormi em casa! Aliás, vou sair de casa, amigo… – atira. Apesar de ter começado o jogo, sinto-me imediatamente desarmado. Sair de casa? Não dormiu em casa? O empregado chega e deixa diante de si um copo de leite.

- Leite? – pergunto, com as sobracelhas sugerindo surpresa e um pacífico desprezo. O que mais quero com esta pergunta não é sugerir-lhe que deveria beber algo mais pesado, mas simplesmente ganhar mais algum tempo para digerir o que me tinha dito. Porém, ele levanta o copo, e vejo no fundo uma substância dourada.

- Com Licor 45, é o melhor que há, caro amigo… – não sei… acho que fá-lo sempre, mas irrita-me um pouco chamar-me amigo no final de cada frase. Não por não o sentir como tal, mas… não sei porquê. Talvez apenas me queira irritar com ele, e por isso procuro qualquer pretexto…

- Ah ok… sim, é bom. Mas explica-me lá isso… – sim, não tenho de comentar. Posso simplesmente perguntar… pedir para me explicar melhor…

- É o seguinte… como te dizia hoje de manhã, ao telefone… No dia em que fomos jantar fora, e te puseste a falar das tuas teorias, dessa suposta nova maneira com que vês a VIDA e não sei quê… Pá, não achei uma treta, mas pareceu-me estranho, e que não estavas a fazer sentido nenhum. Isto, pelo menos, no início… Mas… como dizer… sei lá, à medida que ias falando, sentia como se estivesse a ver a minha VIDA passar mesmo à frente dos meus olhos, percebes? E tudo, tudo o que dizias era verdade! Eu já não faço amor, sexo, ou fodo, ou o caralho, com a Laura há milhões de anos… Este casamento é uma merda, sempre foi!

- Sempre foi? – pergunto, genuinamente intrigando, já que, pelo menos durante os primeiros anos, sempre vi aquela relação como feliz… sentindo-me eu, agora admito, tantas vezes invejoso…

- Ok, estou a exagerar… Não foi sempre assim. Mas, não sei bem onde, nem quando… parece que houve algo que se perdeu. E acredita em mim, foi há muito tempo! Por isso… pá… fui para casa naquele dia, e as tuas palavras não me saíam da cabeça… parece que olhava para a Laura com outros olhos, olhava para a minha VIDA e via tudo estúpido… – vou ouvindo Arie falar, e sem me aperceber, não estou mais preocupado com a sua relação com Helga. Ou melhor, nesse momento, não penso nisso. Penso no que me diz. Penso na certeza com que fala, como se tivesse feito uma descoberta que esperava ser encontrada há anos… Penso que se eu próprio, que cheguei a estas conclusões sozinho, me sinto tantas vezes completamente perdido… como se sentirá ele? Mas a verdade, e é isso que não percebo, parece-me muito mais seguro e feliz do que eu alguma vez estive. Vejo-me, no meu dia-a-dia, consciente da minha existência, não mais num funcionamento robótico, mas a viver e sentir… mas vejo-me também a sentir as constantes dúvidas que me habitam, o constante não saber o que fazer… E vejo, Arie, diante de mim, a falar de como a sua VIDA mudou e de… sim. Este aspecto não é uma mera impressão, na medida em que é um facto… Ele deixou a Laura muito mais rápido do que eu deixei Helga. Terá sido mais corajoso? Ou ter-se-á servido da visão de alguém num desconfortável limbo, e decidido não passar por isso?...

- Ouve lá, Arie… eu estou a ouvir-te falar… e fico contente que estejas bem… mas já viste?... Será que é preciso acabar com casamentos para se ser feliz? Foda-se, pensa nisso… – ele pára de falar, assume uma postura pensadora.

- Não sei… não sei mesmo… Deve depender… No nosso caso foi assim… Tu descobriste aquela gaja…

- Godelieve! – interrompo.

- Sim, tu descobriste a Godelieve e depois descobriste uma nova maneira de pensar… Comigo foi ao contrário. Mas não acho que tenha de ser assim. Se calhar se desde sempre tivéssemos feito o que realmente queríamos, se tivéssemos sido mais fiéis connosco próprios… sei lá, não fosse preciso acabar com um casamento… – levanto o meu copo, sugerindo um brinde, em sinal de concordância. Penso se devo perguntar quem é a pessoa com quem ele está, mas não o quero fazer. Por várias razões… Como já pensei, acho que deve ser ele a dizê-lo. E… se eu perguntar e ele mentir, não sei como reajo. E prefiro não saber, é simples.

- E vais viver com essa mulher?

- Não… para já não… sinto-me bem assim, de momento. Vou arranjar um apartamento aqui no centro, e vou vendo. No meu caso é mais fácil, não temos filhos, estás a ver?

- Sim, isso é verdade… E a Laura, que diz disso? – o café vai enchendo e vejo os Revolutie a prepararem-se para tocar mais logo. Faz algum tempo que não os vejo.

- …todo. – ouço-o dizer.

- Desculpa, estava distraído. O quê?

- Estava a dizer que ela ficou desvairada! É que aparentemente, tudo estava bem, percebes? Ela estava contente, na sua rotina de todos os dias, e nunca previu que algo assim pudesse acontecer… bem, eu tampouco… Como reagiu a Helga? – continua caralho! Agora que disseste o nome não podes parar assim! Irrita-me e não entendo a frieza que ele tem em estar ali, a um metro de mim, e perguntar-me isto… Apetece-me derrubá-lo.

- A Helga previu o que ia acontecer. Até porque foi ela que acabou tudo. Mas depois reagiu bem. – faço uma pausa e debruço-me um pouco na mesa, sob os 5 copos de Martini vazios, para poder estar mais perto do seu olhar – Até anda a foder um gajo agora e tudo! – largo, lentamente. Foda-se. Cedi em não perguntar quem era a gaja dele, mas uma vez que ele fala em Helga, apesar de não lhe perguntar nada, tenho de dizer isto. Está a brincar comigo.

Precioso. Talvez não estivesse à espera desta minha resposta, porque vejo nitidamente que se senti incomodado e sem saber o que dizer. Coça a sua sobracelha direita, começa a acompanhar, subitamente, com o pé esquerdo, o ritmo da música, e pede mais uma bebida.

- Esqueceste-te do leite…

- Não, desta vez quero só mesmo o licor…

Godelieve - 33

Não a vi. O miúdo apareceu cá fora sozinho, com a mochila às costas. Penso se deveria entrar, com uma desculpa inventada qualquer, e tirar tudo a limpo. Mas há outras maneiras de o fazer.

- Quem é que está em casa, Arjan? – pergunto, enquanto esperamos num semáforo.

- A mãe.

- E mais alguém? – volto a perguntar, como se não fosse tão importante assim a resposta.

- Não, ninguém… porquê, pai?

- Por nada filho, nada… – não estava com ninguém. Mas isso, claro, não queria dizer que não fosse estar… Tentava esvaziar a mente, pensar apenas em Arjan e em ver um filme de animação com ele, conversar um bocadinho sobre a escola, os amigos, enfim…

Quando chegamos a casa, parece que sinto no seu olhar sinais de saudade daquele espaço. Penso como seria se vivesse comigo em vez de viver com H. sinto-me um pouco desconfortável ao pensar que não o quereria. Sentir-me-ia menos livre… mas é o meu filho, e eu já não sou um adolescente, longe disso… tudo isso certo, mas mais certo é o facto de eu sentir o que sinto, com ou sem direito… sentir-me-ia menos livre. Junto-me a si com uma pizza, uma coca-cola e vinho para mim.

O filme esticou-me por mais de duas horas. Comecei com um copo de vinho, mas apesar da animação até ser divertida, não conseguia afastar os meus pensamentos do que H poderia estar a fazer nesse momento. A ideia de estar na cama com X parecia-me absurda, mas incrivelmente incómoda. Enojava-me. Não conseguindo afastar esses pensamentos, um copo sucedia o outro, numa tentativa completamente frustrada de pensar noutra coisa… completamente frustrada pois quanto mais bebia mais me sentia obcecado com a ideia. Quando o filme acabou eram 9 da noite.

- Queres ver outro filme? Um de adultos, com tiros e bombas? – pergunto. Não tinha a certeza se era o mais indicado, mas por vezes sentia o puto numa redoma de vidro, afastado da realidade. Claro que aquele filme não seria necessariamente a realidade… mas a realidade era que filme daqueles existiam…

- A sério pai? Mas a mãe não deixa… e tenho de ir dormir às 10… - constata, desanimado.

- Não te preocupes, não tem mal fazermos umas asneiritas de vez em quando. Desde que não faças da tua VIDA uma asneira… – percebo que fica confuso, e penso para quem estarei, na verdade, a falar.

- Ok, fixe! – diz, com um largo sorriso. Sinto a realidade correr mais devagar. Vejo que, na mesa, descansa uma garrafa de vinho vazia e uma de whiskey que me ia beijando a cada 15 minutos. Olho para Arjan, vejo que está entretido com o filme. É um miúdo calmo, nada pode correr mal…

- Olha, filho… o pai tem de ir ali a um sítio, mas volta já. Não fazes asneiras?

- Mas tu disseste…

- Sim, pois disse – interrompo – Mas a tua asneira de hoje é ver este filme, está bem?

- Está bem! – sei que está errado deixar um menino de 10 anos sozinho em casa, mas tenho de descobrir. Está a matar-me este não saber, este estar aqui a olhar para a televisão e imaginá-los a foder! Encho o copo de whiskey e bebo tudo em 4 segundos. Sinto uma reacção de vómito surgir, mas afogo-a, e está tudo bem.

Entro no carro e voo para casa de H. Passo vermelhos, acelero, sem me preocupar com multas. Tudo está a um par de palavras de distância… Estou estacionado frente ao seu prédio. Tem uns 15 andares, parece-me, e, devo dizer, tem muito estilo. Não me parece tão luxuoso quanto aquele onde tantos anos vivemos, mas parece-me bom. Não sei o que dizer quando ela abrir a porta. Estou no elevador, tiro o cantil de alumínio com a imagem do Guevara, que comprei em Cuba, e dou um valente gole. Estou demasiado bêbedo. Ela vai perceber. Volto a descer no elevador. Sento-me nas escadas do prédio. Estou ali, tão perto de saber verdade, mas se ela percebe que estou bêbedo proíbe-me de estar com Arjan, e com razão. Mas não estou assim tão bêbedo… ou estou? Acho que consigo disfarçar. Não posso vacilar, não agora. Volto a entrar no elevador, masco uma pastilha elástica, para disfarçar o cheiro, e treino as palavras. Falando devagar, sem ser demasiado devagar, é a melhor maneira de a enganar.

Toco à campainha. Ajeito o cabelo. Ela abre a porta.

- Olá H! Então, tudo bem? – pergunto, com um sorriso bem disfarçado, penso. a cara dela é de surpresa. está de robe.

- Que estás aqui a fazer? O Arjan? Está tudo bem? – pergunta, preocupada.

- Oh, está tudo óptimo. – respondo, descontraidamente, ao entrar, sem que para isso tenha sido convidado. O apartamento tem um aspecto acolhedor. Talvez por estar bêbedo, não me sinto tão estranho como imaginara ao entrar naquela porta. Porém, a cada passo, sinto um medo terrível de encontrar X em qualquer lado… nu. Ir para o quarto seria demasiado. Sento-me no sofá da sala.

- Mas diz-me, que estás aqui a fazer? O Arjan? – pergunta. Está em pé, à minha frente, com as mãos a segurar o robe. Não consigo perceber se está nua ou não. Este momento será precioso, pois dir-me-á tudo o que preciso saber, sem mo dizer…

- O Arjan está bem… Está em casa com X a ver um filme. E estamos tão divertidos que vim-te perguntar se não te querias juntar a nós… – respondo, lentamente, olhando-a bem nos olhos. O filho da puta está aqui! A sua expressão diz-me tudo. Quem é que está confusa agora?... Ela fica uns momentos sem nada dizer, e dá ao volta ao sofá, ficando atrás de mim, fora do meu campo de visão.

- Hum… Está com o X, dizes?

- Yep…

- Eu… acho que fico aqui. Estou cansada, amanhã tenho de trabalhar. E o Arjan tem escola, precisa de ir dormir, sabes… – estúpida. Sabe que eu sei, e nem tem a decência de me dizer que é impossível Arjan estar com X, porque este está na sua cama, a ouvir tudo, e a pensar no que se estará a passar na minha cabeça… E como é que não se preocupa que Arjan esteja sozinho em casa? E como é que eu não me preocupo?...

- Bem, então está bem… – respondo, com um sorriso sarcástico, ao me levantar – Fica para a próxima então… Mas até foi o X que sugeriu… Ele diz que já não te vê há muito, e que não quer que vocês se deixem de falar só porque nos separamos… – adoro-me! Este sarcasmo levado até ao limite foi uma tirada genial! Uma espécie de mensagem escondida, mas… o propósito nem era pedir que me dissesse a verdade. Simplesmente dizer-lhe que eu sabia...

Sento-me no carro, feliz como um menino a quem acabaram de dar um presente. Ela não percebeu que estou bêbedo, percebeu a minha mensagem, e sentiu-se mal… perfeito. Percebeu o que eu queria que percebesse, e não percebeu o que eu não a deixei perceber. Ligo para casa.

- Filho, o pai já está a ir para casa. Vai dormir, está bem? – peço.

- Mas o filme ainda não acabou… – diz, chateado.

- Ok, então quando o filme acabar vai dormir, está bem?

- Está bem.

- E… olha… Não desligues o telefone, deixa-o fora do descanso, sim?

- Sim pai. – perfeito. Nem sei como, no estado em que estou, me lembrei desta estratégia, que faz com que H não possa ligar para casa e averiguar se realmente deixei Arjan sozinho. Penso em ligar a X. Vou conduzindo pelas ruas desertas de New Eagles, e apetece-me para no Freedom para um copo. Mas não posso, tenho de ir para casa. Penso em ligar a X. Mas não posso. Tem de ser. Quero ouvir a sua voz. Ligo em anónimo? Não…

Devia ter ligado em anónimo, talvez… Não o fiz, e por isso não me atendeu. Se bem que, ligando em anónimo, a menos que fosse um pateta é que não perceberia que tinha sido eu. Não há problema. Não sei bem o que sinto em relação a si. Não sei se estou chateado, desiludido, admirado… não sei… talvez amanhã consiga perceber melhor, quando assentarem alguns sentimentos que agora pulsam, agitados, dentro de mim.

Godelieve 32

Tentava não dar importância ao que se tinha passado, ao que H me tinha dito, à maneira tão acutilante e perspicaz como me tinha lido. Passei os dias seguintes a tentar afastar pensamentos que invariavelmente se colavam à minha mente. Queria estar com Godelieve, tê-la em casa, só para mim, mas ainda tinha de esperar mais 3 semanas. Não sabia bem até que ponto estava a lidar bem com a minha decisão de a ver passado tanto tempo…

Quarta-Feira. Estou sentado na minha sala, duas pedras de gelo bailam no meu copo de Jack Daniels. Liguei a aparelhagem, e o rádio mostra-me Everything Changes, Staind. Curioso. Realmente, tudo muda, e tudo mudou nestes últimos tempos. Sinto-me um pouco sozinho. As paredes ao meu redor fazem-me sentir isolado, numa ilha, dentro de outra ilha, que é este estranho país, dividido, como eu…

Ligo a X. O jantar de Sábado com H não me esclareceu nada. Apenas me deixou mais confuso. Talvez X possa trazer alguma luz ao que se passa entre ele e H. Ou se se passa realmente algo.

- Olá… Tudo bem? – pergunto. Ouço vozes ao fundo, e a primeira coisa que penso é se será Arjan a falar com a mãe.

- Tudo, tudo… e contigo?

- Tudo óptimo – minto – Onde estás? – pausa.

- Estou em casa… porquê?

- Por nada… olha, não queres ir jantar fora logo? Beber uns copos, andar por aí… há algum tempo que não estamos juntos… – sugiro. Efectivamente, é verdade. Tendo em conta o número de vezes em que nos encontrávamos, sentia que, desde o último jantar, em que partilhara consigo a minha nova maneira de pensar, tínhamos vindo a nos encontrar menos. Questionava-me se se teria sentido assustado e confuso… Não sei.

- Sim, tens razão… Mas hoje não vai dar, rapaz… Tenho algo combinado… – estranho.

- Não há problema! Descombinas! – sugiro, a rir. Apesar de estar a brincar, não seria a primeira ou, esperava eu, a última, vez que descombinávamos algo para irmos jantar.

- Pois… mas é que desta vez não vai dar mesmo… é que vou encontrar-me com uma amiga, estás a ver… – bem, parece que levou mesmo a sério o que lhe disse. Penso no que terá percebido das minhas palavras. Eu não lhe disse “trair a tua esposa é bom”, mas simplesmente que deveríamos ser verdadeiros connosco próprios… isso não tem de implicar fazer asneira atrás de asneira… Se bem que muitas vezes… sim… – E hoje é uma dia em que ela pode mesmo, porque geralmente tem outras coisas… Pá, não te posso explicar bem o que é ao telefone, fica para uma próxima, ok?

- Bem, ok, eu percebo. Então liga-me quando puderes. – e desligamos. Fico um bocado mais descansado. Se andava com H e não me tinha vindo a dizer, não estaria a mentir, mas a omitir. Mas se me diz que se vai encontrar com uma amiga, e não me diz que se vai encontrar com H… continua a omitir, mas esta omissão já entra no campo da mentira.

Durante a próxima meia hora sinto-me subitamente, estúpido! E irresponsável. “Como é que me esqueci que hoje vou buscar o Arjan?!” – penso. Que estupidez! Tinha-me esquecido completamente que tinha combinado com H que nesta noite o nosso filho dormiria em nossa casa. Sim… e que ela dormiria sozinha… a noite em que podia fazer qualquer coisa. Claro como água. Odeio X nesse momento. Como é que é capaz de fazer uma coisa dessas? E odeio este meu próprio sentimento, esta inexplicável revolta, quando até me deveria sentir feliz, por duas pessoas de quem gosto estarem felizes. Talvez o instinto de posse em que já pensei esteja a falar mais alto, talvez… não! Sei que não é por ainda amar H! Não é porque sei que tenho entregue todos os meus sentimentos a Godelieve. Apenas a ideia que não conhecia de H como alguém misterioso, alguém que ainda não me mostrou tudo faz sobreviver algum interesse por si. É uma coisa simples, o mistério, mas ainda assim… deixa-me assim. Mas, quem é que quero enganar? O mistério é uma coisa simples? Desde quando? Não fora o mistério que fizera Godelieve aterrasse na minha VIDA, que a colocara mesmo no centro de tudo o que eu sentia? Sim. Por isso, posso dizer, que o mistério, não só não é uma coisa simples, como é das mais fantásticas que temos. A ideia de não saber o que se encontra atrás daquela invisível cortina… a ideia de não saber o que esperar de alguém é das melhores coisas que podemos sentir. Pois não sabendo, imaginamos, e quando imaginamos, podemos estar onde quisermos…

- Olá filho, tudo bem?

- Tudo, pai! Alugaste um filme?

- Sim, aluguei! Vamos?

- Vamos!

Godelieve 31

Continuamos a caminhar estrada fora. A minha mente mexe-se a uma velocidade impressionante. Vejo diante de mim uma infinidade de possibilidades, e não sei qual quero escolher, não sei qual será a melhor. Espero que diga algo, mas ela vai caminhando, um metro à minha frente, a cantarolar qualquer coisa. Pára.

- Olha… não me queres dar um cigarro? – mas quem és tu? Cada vez percebo menos o que se passa consigo, com estas reacções e atitudes que lhe desconhecia.

- Mas… estás a gozar, certo? – estou a ser genuíno. Realmente acho que está a brincar comigo. Porém, o seu olhar é de alguma surpresa, sugerindo-me, ao mesmo tempo, que pedir-me um cigarro era algo naturalíssimo.

- A gozar? Não, porquê? Apetece-me, só isso…

- Mas tu nunca fumaste um cigarro na tua VIDA. Quer dizer… pelo menos comigo… – esta minha última observação traz consigo alguma dúvida.

- Sim, sim, tens razão… – olhas o infinito, com os olhos semicerrados, vejo que pensas e percebes que o que digo faz todo o sentido – E daí? – perguntas, contudo, no segundo seguinte. Encolho os ombros, tiro um Dunhill, que te entrego. Ficas a olhar para mim com um olhar que parece chamar-me de estúpido. Sim, percebo. Lume. Acendes, o cigarro, e tosses duas ou três vezes, até apanhar o ritmo. Ris, de ti para ti, com a maneira infantil como fumaste o teu primeiro cigarro. “Quem é que fuma o primeiro cigarro com esta idade?”, passa-me pela cabeça. Penso que era o que eu faria, tendo a atitude que tenho vindo a ter, mas penso também que H. não é quem eu sou, tampouco alguma vez seguiu estes princípios que tanto já apelidou de ridículos.

Continuamos a caminhar, dobramos a primeira esquina, virando à direita. Foi por opção dela que tomamos esta direcção, e quando vejo um hotel ao fundo, percebo o que significa. Mas… quero eu isto? Não esqueço Godelieve, nunca. E sei que caso entre no hotel com H., o que se passará não fará com que sinta um grama que seja a menos da paixão que sinto por Godelieve. Mas o que H. me está a mostrar, ao mesmo tempo, faz com que a surpresa que sinto agarre o desejo por si esquecido, e o ponha a nu, na minha mão. Aproximamo-nos da entrada do hotel, caminhando lentamente. O meu braço direito abraça a sua anca. Paro, quando estamos à entrada, mas sinto por sua parte alguma resistência. Quando percebe, roda, e encara-me, olhando-me com os seus olhos verdes, que me dizem algo que não consigo decifrar.

- Que foi? – pergunta, inocentemente.

- Não entramos?... – a minha voz decidira por mim. Ia pensando se deveríamos entrar ou não, sendo que entrar ali apenas poderia significar uma coisa. Mas o meu corpo quis parar na entrada do hotel, e a minha voz mostrou-lhe que estava correcto. Ela mantém o seu olhar colado ao meu. Não satisfeita, cola também os seus lábios aos meus, permanecendo assim uns 6 segundos, até que abre espaço para a sua língua entrar, e tocar na minha. Correspondo, e damos um longo beijo. Sinto o sabor a tabaco na sua boca, mas, ao contrário do normal, agrada-me. Talvez por em si ser tão diferente. O beijo é o beijo mais apaixonado que demos nos últimos anos. Percebo que foi a melhor decisão… a decisão de entrar no hotel. Ela larga os meus lábios, e olha-me profundamente.

- Meu querido… não faço ideia da confusão que deve ir na tua cabeça… – diz-me. Quero acreditar que é apenas uma piada. Dá-me outro beijo, desta feita apenas um tocar de pele – Eu vou para casa, só isso. Mas gostei muito do jantar, temos de repetir. Xau querido. – e continua a caminhar. Ao longo da noite tinha-me preparado para ser surpreendido, pelo que as “surpresas” subsequentes foram amenizadas. Contudo, não estava preparado para esta… Sei que não estava a brincar comigo… Vejo-a desaparecer lentamente na escuridão da noite, e sei que tudo aquilo não fora uma manipulação… não sei porque o sei com tanta certeza, uma vez que, aparentemente, não conheço H. tão bem como imaginava, mas sinto-o… E não quero acreditar no que acabara de acontecer… Penso no quão estúpido fui momentos antes, pensando nas hipóteses que eu pensava como certas, pensando na qual eu deveria escolher, que decisão eu deveria tomar… nunca pensando que ela também tivesse direito à sua própria decisão.

Volto para trás, e caminho pela rua deserta, procurando um táxi. Sinto-me fraco. Não, mais que me sentir fraco, sinto-me um fraco, e sinto-me, até, ofendido… sei que é apenas por orgulho. Mas penso que direito tem de dizer que estou confuso. Reúno toda a racionalidade que possuo (que sinto, por vezes, ser cada vez menos) e sei que apenas me sinto ofendido porque ela acertou exactamente no que vai dentro de mim… uma confusão que me deixa sem saber o que fazer, o que pensar, o que sentir… incrível o sentimento de não saber o que sentir…