segunda-feira, 10 de março de 2008

Godelieve 34 (hoje, 2ª, publiquei do 31 ao 34)

- Estou, Arie? – estou no meu Mercedes, a caminho do trabalho, enfiado no trânsito. Afasto uns miúdos locais que me querem lavar o vidro, e ligo ao meu amigo, que aparentemente me iria surpreender…

- Ah, olá! Não tinha visto quem era… – pois não – Tudo bem contigo? – pergunta. Não sei se estou tão obcecado em descobrir sinais e por isso o faço em demasia, vendo em cada sílaba a assustadora verdade ou se… realmente há algo para ver…

- Tudo bem, tudo bem… Olha, estou a ligar para perguntar como correu o teu encontro ontem à noite… – que cínico. Não sei como não me sinto mais incomodado por estar a agir como ajo. Eu sei onde ele esteve, com quem esteve, e ele sabe que eu sei. porque não acabar com esta treta toda? Acho que, devo admitir, me dá um certo gosto o facto de ter percebido isto tudo sozinho e estar numa posição que me permite brincar com as outras pessoas, vendo as suas estúpidas reacções… E, convenhamos, se há alguém que tem de quebrar o gelo nesta situação, é ele! Claro, ou Helga, sim…

- Olha, foi muito porreiro… – apesar de saber que o mais correcto seria ele abrir o jogo, admiro a sua resiliência, e o jogo estúpido que está a fazer comigo. Se comecei na senda das mensagens subliminares com Godelieve, sinto como se isso tivesse sido, efectivamente, apenas um começo de algo prazeiroso, já que tenho vindo a ter o mesmo tipo de jogos com Helga, e neste momento, por incrível que pareça, com o meu melhor amigo – Sabes… aquele jantar que tivemos abriu-me os olhos… De início… Olha, queres tomar café logo? – finalmente – Podemos conversar melhor. Eu agora tenho de ir trabalhar. Vhrijheid às 5?

- Claro… – respondo. Quando desligo o sorriso que tinha vindo a habitar os meus lábios sobe de nível e solto uma leve gargalhada, o que é interessante, já que não é tão frequente assim rirmos quando estamos sozinhos… O dia de trabalho passa sem grandes problemas, e não estive sempre a pensar no café que ia tomar com Arie. Contudo, quando pensava, uma imensa curiosidade tomava conta de mim. Reparava como o desconforto que sentira, dias antes ao imaginar ambos juntos, tinha sido paulatinamente substituído por um sentimento de desafio, de alguns sorrisos e expectativa. Talvez por nestes momentos estar a ver as coisas pelos olhos de Arie. Sim, seria isso. Quando estava com Helga e os imaginava juntos, sentia-me repugnado, e pronto a matar ambos. Mas… agora sentia tudo como diferente.

Sento-me no café. Ninguém está a tocar, uma vez que ainda é de tarde. Os concertos que ali via passavam-se sempre de noite. Havia toda uma noite misteriosamente sedutora em Nieuwe Adelaars. Apenas um certo tipo de pessoas saía. O povo não o fazia. Pelo menos para os mesmo sítios que eu. Não tinha dinheiro, e havia todo um conjunto de regras a que tinham de obedecer que tornava, por vezes, impossível uma saída nocturna. Por isso mesmo, quase eram mais numerosos os bares, restaurantes e casinos que funcionavam à margem da lei do que aqueles que tinham as suas portas abertas nas principais avenidas. Como ninguém tocava no palco, a música que chegava aos meus ouvidos provinha da aparelhagem e, para meu espanto, não tocava o habitual jazz, mas algo mais comercial. Ainda assim, agradava.

- Um Martini. – peço, ao empregado que veio à minha mesa – Olha, que é que está a tocar?

- Isto?... Tenho de ir ver, espere um bocadinho…

- Vê também como se chama a música, por favor… – digo, em voz alta, para me ouvir, já que estava quase a chegar ao bar. Volta, entrega-me o Martini, com duas pedras de gelo e uma rodela de limão e diz-me ser KT Tunstall, a música “The Beauty of Uncertainty”. Não conheço, mas não só o som me agrada, como acho interessante o mote…

A beleza da incerteza… Sorrio. Sim, é belo. Saber sempre tudo o que se vai passar é desesperante. Mas creio ser um desespero que se esconde, disfarçado de segurança. Pensamos sentir-nos seguros, confiantes, quando no fundo apenas estaremos, quem sabe, agarrados a uma certeza proveniente dum medo latente de nos arriscarmos a fazer algo cujo resultado não sabemos… Peço outro Martini, e penso… Com Godelieve, nada era certo… Com Helga, apesar de eu estar convencido que sim, não era certo que estivesse a foder alguém… E caso estivesse, e mais uma vez, apesar de eu estar convencido que sim, não era certo que fosse Arie a pessoa em questão…

Claro que estes sentimentos não são propriamente estáveis. O desespero escondido de ter sempre a certeza acerca de tudo também, por vezes, entra nessa condição que é não ter a certeza de nada. A grande diferença reside, creio, no facto de numa situação ser completamente inconsciente e na outra… completamente consciente. Pois eu prefiro ter os meus sentimentos na mão, senti-los e vê-los, que tê-los disfarçados nos cantos escuros da minha mente…

Estou perdido nas minhas próprias divagações, sentindo a falta de um papel para as eternalizar e definir quando vejo, ao fundo, entrar pela porta o meu fiel amigo. Fiel… a ver vamos… Ou melhor… sim, fiel amigo. Tenho de me convencer, duma vez por todas, que já não estou com Helga… e que não só não estou nada arrependido desta decisão, como também não tenho por que me sentir traído por Arie. Sinto-me traído apenas no facto de não me ter dito nada. Por não me contar o que está a fazer, muito mais do que por estar a fazer o que está a fazer. Vejo que pede algo ao balcão, e encaminha-se de seguida na minha direcção. Traz consigo um sorriso, e a barba por fazer. Sinto-me desafiado. Quase que já não vale a pena referir a inconstância das minhas opiniões…

- Então, vejo que nem tiveste tempo de fazer a barba! – digo, com um sorriso. Foi, de certa forma, como se eu tivesse decidido que as peças brancas seriam as minhas e que por isso, naturalmente, começaria o jogo. Ele sorri.

- Não dormi em casa! Aliás, vou sair de casa, amigo… – atira. Apesar de ter começado o jogo, sinto-me imediatamente desarmado. Sair de casa? Não dormiu em casa? O empregado chega e deixa diante de si um copo de leite.

- Leite? – pergunto, com as sobracelhas sugerindo surpresa e um pacífico desprezo. O que mais quero com esta pergunta não é sugerir-lhe que deveria beber algo mais pesado, mas simplesmente ganhar mais algum tempo para digerir o que me tinha dito. Porém, ele levanta o copo, e vejo no fundo uma substância dourada.

- Com Licor 45, é o melhor que há, caro amigo… – não sei… acho que fá-lo sempre, mas irrita-me um pouco chamar-me amigo no final de cada frase. Não por não o sentir como tal, mas… não sei porquê. Talvez apenas me queira irritar com ele, e por isso procuro qualquer pretexto…

- Ah ok… sim, é bom. Mas explica-me lá isso… – sim, não tenho de comentar. Posso simplesmente perguntar… pedir para me explicar melhor…

- É o seguinte… como te dizia hoje de manhã, ao telefone… No dia em que fomos jantar fora, e te puseste a falar das tuas teorias, dessa suposta nova maneira com que vês a VIDA e não sei quê… Pá, não achei uma treta, mas pareceu-me estranho, e que não estavas a fazer sentido nenhum. Isto, pelo menos, no início… Mas… como dizer… sei lá, à medida que ias falando, sentia como se estivesse a ver a minha VIDA passar mesmo à frente dos meus olhos, percebes? E tudo, tudo o que dizias era verdade! Eu já não faço amor, sexo, ou fodo, ou o caralho, com a Laura há milhões de anos… Este casamento é uma merda, sempre foi!

- Sempre foi? – pergunto, genuinamente intrigando, já que, pelo menos durante os primeiros anos, sempre vi aquela relação como feliz… sentindo-me eu, agora admito, tantas vezes invejoso…

- Ok, estou a exagerar… Não foi sempre assim. Mas, não sei bem onde, nem quando… parece que houve algo que se perdeu. E acredita em mim, foi há muito tempo! Por isso… pá… fui para casa naquele dia, e as tuas palavras não me saíam da cabeça… parece que olhava para a Laura com outros olhos, olhava para a minha VIDA e via tudo estúpido… – vou ouvindo Arie falar, e sem me aperceber, não estou mais preocupado com a sua relação com Helga. Ou melhor, nesse momento, não penso nisso. Penso no que me diz. Penso na certeza com que fala, como se tivesse feito uma descoberta que esperava ser encontrada há anos… Penso que se eu próprio, que cheguei a estas conclusões sozinho, me sinto tantas vezes completamente perdido… como se sentirá ele? Mas a verdade, e é isso que não percebo, parece-me muito mais seguro e feliz do que eu alguma vez estive. Vejo-me, no meu dia-a-dia, consciente da minha existência, não mais num funcionamento robótico, mas a viver e sentir… mas vejo-me também a sentir as constantes dúvidas que me habitam, o constante não saber o que fazer… E vejo, Arie, diante de mim, a falar de como a sua VIDA mudou e de… sim. Este aspecto não é uma mera impressão, na medida em que é um facto… Ele deixou a Laura muito mais rápido do que eu deixei Helga. Terá sido mais corajoso? Ou ter-se-á servido da visão de alguém num desconfortável limbo, e decidido não passar por isso?...

- Ouve lá, Arie… eu estou a ouvir-te falar… e fico contente que estejas bem… mas já viste?... Será que é preciso acabar com casamentos para se ser feliz? Foda-se, pensa nisso… – ele pára de falar, assume uma postura pensadora.

- Não sei… não sei mesmo… Deve depender… No nosso caso foi assim… Tu descobriste aquela gaja…

- Godelieve! – interrompo.

- Sim, tu descobriste a Godelieve e depois descobriste uma nova maneira de pensar… Comigo foi ao contrário. Mas não acho que tenha de ser assim. Se calhar se desde sempre tivéssemos feito o que realmente queríamos, se tivéssemos sido mais fiéis connosco próprios… sei lá, não fosse preciso acabar com um casamento… – levanto o meu copo, sugerindo um brinde, em sinal de concordância. Penso se devo perguntar quem é a pessoa com quem ele está, mas não o quero fazer. Por várias razões… Como já pensei, acho que deve ser ele a dizê-lo. E… se eu perguntar e ele mentir, não sei como reajo. E prefiro não saber, é simples.

- E vais viver com essa mulher?

- Não… para já não… sinto-me bem assim, de momento. Vou arranjar um apartamento aqui no centro, e vou vendo. No meu caso é mais fácil, não temos filhos, estás a ver?

- Sim, isso é verdade… E a Laura, que diz disso? – o café vai enchendo e vejo os Revolutie a prepararem-se para tocar mais logo. Faz algum tempo que não os vejo.

- …todo. – ouço-o dizer.

- Desculpa, estava distraído. O quê?

- Estava a dizer que ela ficou desvairada! É que aparentemente, tudo estava bem, percebes? Ela estava contente, na sua rotina de todos os dias, e nunca previu que algo assim pudesse acontecer… bem, eu tampouco… Como reagiu a Helga? – continua caralho! Agora que disseste o nome não podes parar assim! Irrita-me e não entendo a frieza que ele tem em estar ali, a um metro de mim, e perguntar-me isto… Apetece-me derrubá-lo.

- A Helga previu o que ia acontecer. Até porque foi ela que acabou tudo. Mas depois reagiu bem. – faço uma pausa e debruço-me um pouco na mesa, sob os 5 copos de Martini vazios, para poder estar mais perto do seu olhar – Até anda a foder um gajo agora e tudo! – largo, lentamente. Foda-se. Cedi em não perguntar quem era a gaja dele, mas uma vez que ele fala em Helga, apesar de não lhe perguntar nada, tenho de dizer isto. Está a brincar comigo.

Precioso. Talvez não estivesse à espera desta minha resposta, porque vejo nitidamente que se senti incomodado e sem saber o que dizer. Coça a sua sobracelha direita, começa a acompanhar, subitamente, com o pé esquerdo, o ritmo da música, e pede mais uma bebida.

- Esqueceste-te do leite…

- Não, desta vez quero só mesmo o licor…

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