segunda-feira, 10 de março de 2008

Godelieve - 33

Não a vi. O miúdo apareceu cá fora sozinho, com a mochila às costas. Penso se deveria entrar, com uma desculpa inventada qualquer, e tirar tudo a limpo. Mas há outras maneiras de o fazer.

- Quem é que está em casa, Arjan? – pergunto, enquanto esperamos num semáforo.

- A mãe.

- E mais alguém? – volto a perguntar, como se não fosse tão importante assim a resposta.

- Não, ninguém… porquê, pai?

- Por nada filho, nada… – não estava com ninguém. Mas isso, claro, não queria dizer que não fosse estar… Tentava esvaziar a mente, pensar apenas em Arjan e em ver um filme de animação com ele, conversar um bocadinho sobre a escola, os amigos, enfim…

Quando chegamos a casa, parece que sinto no seu olhar sinais de saudade daquele espaço. Penso como seria se vivesse comigo em vez de viver com H. sinto-me um pouco desconfortável ao pensar que não o quereria. Sentir-me-ia menos livre… mas é o meu filho, e eu já não sou um adolescente, longe disso… tudo isso certo, mas mais certo é o facto de eu sentir o que sinto, com ou sem direito… sentir-me-ia menos livre. Junto-me a si com uma pizza, uma coca-cola e vinho para mim.

O filme esticou-me por mais de duas horas. Comecei com um copo de vinho, mas apesar da animação até ser divertida, não conseguia afastar os meus pensamentos do que H poderia estar a fazer nesse momento. A ideia de estar na cama com X parecia-me absurda, mas incrivelmente incómoda. Enojava-me. Não conseguindo afastar esses pensamentos, um copo sucedia o outro, numa tentativa completamente frustrada de pensar noutra coisa… completamente frustrada pois quanto mais bebia mais me sentia obcecado com a ideia. Quando o filme acabou eram 9 da noite.

- Queres ver outro filme? Um de adultos, com tiros e bombas? – pergunto. Não tinha a certeza se era o mais indicado, mas por vezes sentia o puto numa redoma de vidro, afastado da realidade. Claro que aquele filme não seria necessariamente a realidade… mas a realidade era que filme daqueles existiam…

- A sério pai? Mas a mãe não deixa… e tenho de ir dormir às 10… - constata, desanimado.

- Não te preocupes, não tem mal fazermos umas asneiritas de vez em quando. Desde que não faças da tua VIDA uma asneira… – percebo que fica confuso, e penso para quem estarei, na verdade, a falar.

- Ok, fixe! – diz, com um largo sorriso. Sinto a realidade correr mais devagar. Vejo que, na mesa, descansa uma garrafa de vinho vazia e uma de whiskey que me ia beijando a cada 15 minutos. Olho para Arjan, vejo que está entretido com o filme. É um miúdo calmo, nada pode correr mal…

- Olha, filho… o pai tem de ir ali a um sítio, mas volta já. Não fazes asneiras?

- Mas tu disseste…

- Sim, pois disse – interrompo – Mas a tua asneira de hoje é ver este filme, está bem?

- Está bem! – sei que está errado deixar um menino de 10 anos sozinho em casa, mas tenho de descobrir. Está a matar-me este não saber, este estar aqui a olhar para a televisão e imaginá-los a foder! Encho o copo de whiskey e bebo tudo em 4 segundos. Sinto uma reacção de vómito surgir, mas afogo-a, e está tudo bem.

Entro no carro e voo para casa de H. Passo vermelhos, acelero, sem me preocupar com multas. Tudo está a um par de palavras de distância… Estou estacionado frente ao seu prédio. Tem uns 15 andares, parece-me, e, devo dizer, tem muito estilo. Não me parece tão luxuoso quanto aquele onde tantos anos vivemos, mas parece-me bom. Não sei o que dizer quando ela abrir a porta. Estou no elevador, tiro o cantil de alumínio com a imagem do Guevara, que comprei em Cuba, e dou um valente gole. Estou demasiado bêbedo. Ela vai perceber. Volto a descer no elevador. Sento-me nas escadas do prédio. Estou ali, tão perto de saber verdade, mas se ela percebe que estou bêbedo proíbe-me de estar com Arjan, e com razão. Mas não estou assim tão bêbedo… ou estou? Acho que consigo disfarçar. Não posso vacilar, não agora. Volto a entrar no elevador, masco uma pastilha elástica, para disfarçar o cheiro, e treino as palavras. Falando devagar, sem ser demasiado devagar, é a melhor maneira de a enganar.

Toco à campainha. Ajeito o cabelo. Ela abre a porta.

- Olá H! Então, tudo bem? – pergunto, com um sorriso bem disfarçado, penso. a cara dela é de surpresa. está de robe.

- Que estás aqui a fazer? O Arjan? Está tudo bem? – pergunta, preocupada.

- Oh, está tudo óptimo. – respondo, descontraidamente, ao entrar, sem que para isso tenha sido convidado. O apartamento tem um aspecto acolhedor. Talvez por estar bêbedo, não me sinto tão estranho como imaginara ao entrar naquela porta. Porém, a cada passo, sinto um medo terrível de encontrar X em qualquer lado… nu. Ir para o quarto seria demasiado. Sento-me no sofá da sala.

- Mas diz-me, que estás aqui a fazer? O Arjan? – pergunta. Está em pé, à minha frente, com as mãos a segurar o robe. Não consigo perceber se está nua ou não. Este momento será precioso, pois dir-me-á tudo o que preciso saber, sem mo dizer…

- O Arjan está bem… Está em casa com X a ver um filme. E estamos tão divertidos que vim-te perguntar se não te querias juntar a nós… – respondo, lentamente, olhando-a bem nos olhos. O filho da puta está aqui! A sua expressão diz-me tudo. Quem é que está confusa agora?... Ela fica uns momentos sem nada dizer, e dá ao volta ao sofá, ficando atrás de mim, fora do meu campo de visão.

- Hum… Está com o X, dizes?

- Yep…

- Eu… acho que fico aqui. Estou cansada, amanhã tenho de trabalhar. E o Arjan tem escola, precisa de ir dormir, sabes… – estúpida. Sabe que eu sei, e nem tem a decência de me dizer que é impossível Arjan estar com X, porque este está na sua cama, a ouvir tudo, e a pensar no que se estará a passar na minha cabeça… E como é que não se preocupa que Arjan esteja sozinho em casa? E como é que eu não me preocupo?...

- Bem, então está bem… – respondo, com um sorriso sarcástico, ao me levantar – Fica para a próxima então… Mas até foi o X que sugeriu… Ele diz que já não te vê há muito, e que não quer que vocês se deixem de falar só porque nos separamos… – adoro-me! Este sarcasmo levado até ao limite foi uma tirada genial! Uma espécie de mensagem escondida, mas… o propósito nem era pedir que me dissesse a verdade. Simplesmente dizer-lhe que eu sabia...

Sento-me no carro, feliz como um menino a quem acabaram de dar um presente. Ela não percebeu que estou bêbedo, percebeu a minha mensagem, e sentiu-se mal… perfeito. Percebeu o que eu queria que percebesse, e não percebeu o que eu não a deixei perceber. Ligo para casa.

- Filho, o pai já está a ir para casa. Vai dormir, está bem? – peço.

- Mas o filme ainda não acabou… – diz, chateado.

- Ok, então quando o filme acabar vai dormir, está bem?

- Está bem.

- E… olha… Não desligues o telefone, deixa-o fora do descanso, sim?

- Sim pai. – perfeito. Nem sei como, no estado em que estou, me lembrei desta estratégia, que faz com que H não possa ligar para casa e averiguar se realmente deixei Arjan sozinho. Penso em ligar a X. Vou conduzindo pelas ruas desertas de New Eagles, e apetece-me para no Freedom para um copo. Mas não posso, tenho de ir para casa. Penso em ligar a X. Mas não posso. Tem de ser. Quero ouvir a sua voz. Ligo em anónimo? Não…

Devia ter ligado em anónimo, talvez… Não o fiz, e por isso não me atendeu. Se bem que, ligando em anónimo, a menos que fosse um pateta é que não perceberia que tinha sido eu. Não há problema. Não sei bem o que sinto em relação a si. Não sei se estou chateado, desiludido, admirado… não sei… talvez amanhã consiga perceber melhor, quando assentarem alguns sentimentos que agora pulsam, agitados, dentro de mim.

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