domingo, 29 de junho de 2008

Godelieve - Cap 41-48 [muita coisa mesmo, mas tinha de postar]

LXI

- Amigo… – começa Arie. Estamos a sair do restaurante. É meia noite, as ruas estão desertas e, não conhecêssemos nós melhor esta cidade, pareceria ser o final duma promissora noite – Nunca pensei dizer-te isto… mas estou completamente apaixonado por ti! – oferece-me, com um sorriso radiante – Tu és completamente estúpido! Tu ouviste o que disseste ao Ruud. “O” Ruud! Que tomates pá! Claro que tenho pena que hoje seja a última noite em que te vejo com VIDA, mas ainda assim… parabéns! – o seu tom é de gozo misturado com euforia. Acendo um cigarro e caminhamos estrada fora, com o Blues Bar como objectivo. Penso na excitação de Arie, e na maneira como não a sinto dentro de mim. Ao invés, sinto um misto de paz e loucura habitar o meu corpo, descansando na minha mente. “Porque é que não fiz isto há mais tempo?”, ocorre-me. Por um lado, ainda bem que não. Mas esse… lado… é muito específico, pois refiro-me a que, se o tivesse feito há mais tempo, talvez não fosse convidado para a festa onde a minha VIDA começou a mudar. Mas por outro lado, tinha-me poupado de um monte de hipocrisias e situações desconfortáveis. Claro, claro que podia ter simplesmente dito ao verme que não estava, nem nunca estaria, interessado em entrar para a sua lista, e que se me voltasse a convidar poder-nos-íamos chatear… Mas francamente… Qual é a piada disso?

Dei as 300 Repúblicas como quase perdidas, pois apesar de ter voltado a ouvir Jazz, não era bem Jazz, mas mais uma das tantas tentativas frustradas de fazer soar a novo, algo que tem de soar a velho. Poucos conseguem, sendo a minha amiga sueca Lisa das únicas… Apesar de por vezes abusar um pouco. Enfim, nada é perfeito neste mundo imundo. Pois tendo dado as Repúblicas como quase perdidas, permanecia em mim a vontade de continuar a beber, com o meu caro e complicado amigo, ao som de algo que soasse a velho. O Blues Bar, cujo nome não prima pela originalidade, tinha a espectacular característica da sua música ser, ou ao vivo, ou proveniente duma grafonola. Muito à velha guarda, como um bom bar deve ser. Por vezes quase aplaudia a resistência do governo face às novas modas globais, que tendem a tornar os diferentes cantos do mundo como meras divisões da mesma casa...

Chegamos ao prédio cuja cave alberga o bar destino. À nossa frente um portão de ferro azul claro contaminado quase na totalidade pela ferrugem insistente. Abrimos o portão, entramos, tudo é muito escuro, sendo a única luz que nos chega muito ténue, proveniente duma pequena janela, algumas escadas abaixo. O bar, apesar de com o conhecimento de muita gente, funcionava de forma ilegal. Nunca percebera… ou melhor, nunca quis perceber se tinham algum acordo com alguém no governo, na polícia e se sim, que acordo era. Mas o que é certo era que, apesar de para uma clientela algo seleccionada, o bar funcionava para lá das prontas horas a que muitos dos restantes fechavam. Batemos à porta, dona dessa pequena janela que nos fazia adivinhar actividade interior, e vemos uma pequena porta, dum vidro espesso, atrás dessa mesma janela, se abrir. Dá lugar a um par de olhos aparentemente femininos, cansados, e muito velhos. Procura um outro olhar conhecido, e pára no meu. É impossível saber se sorri, mas a porta abre-se, e vemos o interior dumas das pérolas da cidade. É completamente sem estilo, e talvez seja isso que o faz tão interessante. O chão, apesar de sempre plano, ora é de alcatifa, de tacos, ou de pedra. O mesmo acontece com as mesas, os candeeiros, o balcão. Ao entrarmos e pousarmos os casacos, sentimos cada olhar pregado na nossa nuca, mas apenas por alguns instantes, voltando cada pessoa para as suas conversas, para as suas bebidas. Tenho dificuldade em ver uma mulher que seja, senão a senhora que, curvada se arrasta até ao balcão e tira dois copos. Bebamos nós os que bebermos, os copos serão aqueles. No meio, numa pequena mesa de madeira escura, uma grafonola faz soar Nina Simone. Belo.

Sentamo-nos ao balcão e pedimos dois whiskeys. Sinto o entusiasmo de Arie.

- Pá já tinha ouvido falar deste sítio, mas nunca aqui tinha vindo. Costumas cá vir? – pergunta.

- De vez em quando… – respondo, arqueando os ombros, o que acaba por ser mais esclarecedor do que a frase. Ainda se queixa um pouco por, em tantos anos, ser a primeira vez que ali vamos, mas dou pouca importância. Não me apetece falar muito. Na verdade, penso se não preferiria, neste momento, que Arie fosse para casa, e me deixasse como companhia apenas Nina Simone, algum whiskey, e os meus pensamentos antecipatórios do dia seguinte. Estar com Godelieve. Estar com aquela mulher que conseguira, momentos antes, permanecer tão estática quanto uma simples fotografia, perante o seu apaixonado, e especialmente, perante as palavras do mesmo. Não sei se quero falar com ela acerca desta noite. Mas, da mesma forma, não sei se não quero…

- E amanhã, como vai ser? – pergunta-me Arie. Falava dum qualquer assunto que se prendia com alguma coisa. Não sei.

- Não sei amigo… Disse-lhe para aparecer no Vrijheid, mas não lhe disse horas nenhumas, pelo que muito provavelmente, dei-lhe o poder de decisão. Não a estou a ver a jogar pelo seguro e aparecer cedo… – verdade…

- E depois?

- Depois o quê? – pergunto, mais para mim do que para si.

- Depois vão para onde?

- Tens razão… Ainda não pensei nisso. Foda-se e da última vez em que estivemos juntos, e na vez anterior, foi tudo perfeito… Foda-se nem sei o que vou fazer… – respondo. Queria ter pensado em algo. Porém, não me sentia desesperado em descortinar o que fazer. Quem sabe pelo álcool que tinha bebido, quem sabe com a autoconfiança ganha através do episódio no restaurante, quem sabe… por ser este novo eu que teima em me surpreender a cada minuto com novos sentimentos e maneiras de estar… não me sentia desesperado. Esse sentimento muito me conhecera em alguns momentos nos passados dias, em que via tão longe os milésimos de segundo em que teria Godelieve do meu lado. Milésimos de segundo, não mais. Um piscar de olhos, entre uma ou duas respirações, e tudo se passa, passando cada bater do coração a fazer-se sentir como duas estações fossem… Assim é a VIDA, e não há nada que possa fazer. E que bom…


XLII

Acordei tarde. O relógio mostrava uns sorridentes minutos para lá da uma da tarde. O desespero que não sentira na noite anterior permanecia discreto, como se eu tivesse ficado subitamente imune a sentimentos antecipatórios desagradáveis.

Ligo a aparelhagem, e John Coltrane soa por todo o apartamento, quem sabe se por mais alguns ao redor. Tiro um Dunhill, e vou à varanda, sentindo, ao fumar, o Vento quente e cansando suspirar por toda a cidade. Não sei se sorrio, mas sinto um latente sorriso povoar a minha reflexão. Daqui a umas horas estarei com Godelieve. Penso se terá alguma surpresa a manga, como deixar um bilhete no bar a dizer-me para ir ter a algum lado… não seria novo. Penso se me importaria. Não. Não tenho nada mais a não ser aquilo de que me lembre no mesmo instante em que os meus olhos beijem os seus, pelo que uma elaborada surpresa sua seria algo que não rejeitaria. Penso novamente. Muitas das suas surpresas não são parcas em sentimentos semelhantes ao que referi algumas linhas antes… e não me apetece sentir que ainda vive, esse amigo a que chamo de desespero…

Encolho os ombros, volto para dentro. Abro o frigorífico, e uma garrafa de champanhe olha para mim com olhos matreiros. Fico no mesmo sítio por alguns segundos, tentando recordar-me de quando ali a deixei, mas não consigo saber. Tenho diante de mim duas opções. Sabendo que a verdadeira eventua… certamente será a que me diz que o devo ter feito quando bêbedo, não me importo de pensar, divertido, no quão longe Godelieve conseguiria ir, chegando ao ponto de entrar em minha casa e ali deixar o elixir, pensando em tudo… Sim, já agora, porque não?... Estou no chuveiro quando penso que, se a trouxer para minha casa, se não se importar de ter mais uma dado que seja acerca de quem eu sou, talvez possa tomar a iniciática de espontaneamente um dia aqui aparecer… Sim, quero-a aqui.

Apesar de tudo, apesar de ter-me lembrado de tal opção tão em cima da hora, quero que pareça que tenho tal encontro em mente desde o primeiro instante, pelo que, numa correria algo desorganizada, tento organizar os cantos da habitação, fazendo-a ganhar um ar mais digno do repouso dum sedutor… A tarefa revela-se árdua mas nada que com uma boa música, um copo de whiskey em jejum a acompanhar e umas pausas estudadas para fumar um cigarro, passe dificilmente. Tomo o meu segundo banho, e sinto-me um pouco tonto. Não preciso de olhar para o copo de whiskey vazio para perceber o porquê. Por vezes, por menos que beba, sinto imediatamente a nuca a avisar-me que se avizinha festa. Acontece, como digo, muito raramente, mas acontece…

No espelho do elevador vejo a imagem que me chega. Adoro este contraste de décadas que temos em Hetwestenland com o resto do mundo. Foda-se é a segunda vez em dois dias que digo apreciar uma política nacional. Mas… que dizer, é a verdade. Posso dizer que gosto de alguns resultados, ainda que deteste os meios… Na verdade, este contraste com o resto do mundo deixa-nos a nós, cidadãos, como se sentindo num filme dos anos 40, se repararmos com atenção na maneira como nos vestimos, como falamos uns com os outros, como nos divertimos. A música parou no tempo, o vestuário esticou a sua VIDA, o trato não perdeu carisma. Olho então no espelho, e sinto-me bem por ser alguém como sou. Sinto-me como nunca me senti quando vivia a minha VIDA de outros tempos, a minha VIDA de formiga num quente formigueiro.

Como que para comprovar a minha teoria há muito tempo descoberta, ou pensada, por toda a gente, ligo o rádio e escolho, aleatoriamente, uma estação. Charlie Parker, parece-me. Pois claro. Quando estaciono, um pouco longe do café, preparo-me para o desconhecido. Imagino que aparecerá, mas não tenho a certeza. Não tenho a certeza se esperarei, mas não posso imaginar quanto eventualmente terei de o fazer… Saio do carro, reparo nas ruas, não tão visitadas por mim durante o dia, cheias de gente, cheias de motas, essas sim, do século passado, cheias de brancos em fatos e de locais a vender artigos. No que a esta política diz respeito, posso dizer que me enoja não só o processo, mas claro, o resultado. As diferenças de privilégios entre os brancos e os locais é algo inimaginável. Daí que estes cada vez mais se segreguem, sendo Hetwestenland o país do mundo com cidades exclusivamente para locais… enfim. Arie, por exemplo, não o percebe, nem mesmo quando lhe pergunto qual o mal deles terem cidades para “eles”, quando nós temos o país para “nós”…

E assim, apesar do estacionamento ter sido, como disse, longe, com estes pensamentos demoro apenas dois segundos a estar frente ao bar. Começa mais uma etapa…


XLIII

- Não sei, meu querido… – responde-me. Porque não sabe? Quero que saiba, pois se o souber, eu saberei, e a facilidade em suportar os dias de espera torna-se, quem sabe, mais tolerável. Da mesma forma, se eu souber, posso, pelo menos tentar, encurtar essa distância. Levanta-se, e passeia nua. Reparo que se arrepia, mostrando-me que não sou o único a sentir a diferença de temperatura entre a noite e a tarde.

- Vais ter de saber… – surpreende-se. O seu sorriso é matreiro, e o seu olhar diz-me que me sente, nesse instante, da mesma forma… matreiro. Talvez simplesmente não esteja habituada a ouvir-me assim autoritário. Na verdade, não está habituada a ouvir-me, seja de que maneira for. Os nossos encontros esporádicos permitem tudo menos a criação de hábitos… estes apenas acabam por residir na distância, nos sentimentos. Estou habituado a ter Godelieve longe de mim, estou habituado a sentir-me com vontade de a ter por perto. Mas não estou habituado a realmente tê-la… Investiga o que vê ao seu redor e volto a deitar-me completamente, vendo apenas o tecto cru. Ouço os seus passos, suaves, ora se aproximando, ora se escondendo, até que sinto o colchão ceder um pouco. Pousa cada joelho em cada lado do meu tronco e, sem eu deslocar o destino do meu olhar, este muda, tendo como paisagem a sua face. As suas mãos aterram no meu peito, e deslizam um pouco, com as unhas a deixar uma gentil recordação.

- Vejamos… Vou escolher continuar a não saber, mas vou deixar-te um pouco mais confortável, deixando-te com… algum conhecimento… – diz-me, enigmaticamente – Não te digo quando vai ser, mas posso dizer-te que vai ser o intervalo mais curto que tivemos… – o receio que tinha do que ouviria dissipa-se, deixando-me descansado, animado. Imagino, então, que a próxima vez que a veja seja dentro de uma semana. Sinto-me livre das típicas preocupações, das vezes em que desloco a minha atenção de Godelieve, deixando de me massacrar com o tempo que esperarei para a ver de novo, e sentindo-me em pleno para aproveitar cada segundo da sua presença.

Quando chego ao Vrijheid, não me espanto ao perceber que Godelieve não me espera. Sento-me, peço um Jack Daniels, e com o mesmo, o empregado traz-me um papel. Sinto-me subitamente despertado ao perceber que é da mesma cor que o primeiro que, certo dia, encontrei à minha espera no mesmo bar, com um pedido. Não o leio de imediato. Pouso-o na mesa de madeira com a informação a assentar na mesma, e tomo o meu tempo com o whiskey. Porém, ainda que não tentando ler o que tenho diante de mim, o meu olhar escapa e cola-se ao bilhete lilás, fazendo-me pensar em quantas horas terei de esperar, ou onde terei de ir…

Alguns minutos depois, o copo está vazio, e eu estou mais perto de não assim me sentir. Pego no bilhete, e vejo uma morada. Leio uma vez, duas vezes, e percebo, com admiração, que a morada… é a minha morada. A minha morada? Leio de novo, apenas para confirmar o que já sabia. Peço outro whiskey, e encosto-me para trás, pensando no quanto isto me apanhou desprevenido. Claro que, apesar de pensar que Godelieve seria bem capaz de fazer algo assim, nunca pensei que fosse capaz de fazer algo assim. “Incrível” – a única coisa em que consigo pensar. No entanto, à medida que vou bebendo, sentido o travo prazeirosamente amargo da bebida, vou caindo um pouco na realidade, ficando apenas com a surpresa que sabe onde vivo, deixando de lado a surpresa de que me espera na minha própria casa, sendo que tal não é possível. Concerteza me esperará no hall, com um sorriso e uma promessa de bons momentos. Sim, de certeza…

Pago a bebida, e deixo o bar. Queria ser eu a escolher onde nos encontraríamos. Escolhi, e vamos encontrar-nos onde escolhi, mas não por minha opção. Sinto-me um peão no seu jogo, sem qualquer parecer nas suas decisões, e a indecisão que sinto quanto ao que sentir acerca disso deixa-me confuso.

A viagem escapa-se em breves instantes, e estou em frente ao meu prédio. Entro, procuro por si no hall, não a encontro. Saio novamente, fumo um cigarro, ela não aparece. Começa a nascer em mim, a par de algum nervosismo face a sua ausência, a ideia de que possa estar, realmente, em minha casa. Mas como? Tiro do bolso o bilhete lilás, que leio pela enésima vez, e presto atenção a esse pormenor que é o facto da morada ser precisa ao ponto de ter o número da minha porta… “Bem…”

Eis que me encontro no mesmo sítio onde me encontrava poucos momentos antes… Espero um pouco, não ouço nada. Abro a porta, não vejo nada. Não a chamo, limito-me a perscrutar o que me rodeia, na esperança de ver as suas linhas. Passeio na sala, em todo o apartamento, não a encontro. É quando me preparo para fumar um cigarro na varanda que dou por si. “Como é incrível, e fantástico, que me faças constantemente sentir como um personagem dum romance qualquer…” – penso, extasiado. Está sentada numa espreguiçadeira, bebe algo que me parece um Martini, usa apenas a parte inferior de um bikini laranja, e protege-se do sol com um largo chapéu da mesma cor. Não me viu, não sei se me ouviu. Sorrio e num segundo deixo de me preocupar, ou de pensar em como conseguiu entrar, apenas me concentro no quão deliciosa é, na maneira como me faz sentir. Olho para dentro de mim e sinto-me perto de mim como apenas Godelieve me faz sentir. Na aparelhagem inspiro o som de Diana Krall. Tiro a garrafa de champanhe do frigorífico, duas taças, e levito até si.

- Isso é uma grande notícia, sabes… – respondo-lhe, baixinho, deixando o meu olhar abandonar o tecto branco e concentrando-me completamente no seu rosto. – E temos ainda todo o fim-de-semana… – Deita-se em mim.

- Não desta vez… – ouço-a dizer – Só nos temos por mais um par de horas… desta vez…


XLIV

- O quê? A gaja

- Não a trates por gaja, por favor.

- Tudo bem. Mas… estás-me a dizer que ela entrou no teu apartamento? Amigo, não sei em que te estás a meter, mas deixa-me dizer-te que me parece estupidamente interessante, e interessantemente estúpido. Ela é perigosa… – diz-me Arie. Estamos no Blues Bar, numa noite de Terça-Feira. Bebo um Calvados, ouvimos boa música enquanto lhe conto os pormenores menos reveladores do fim-de-semana. É perigosa? Sei-o bem, como o sei. É perigosa pela maneira como me despertou, como me mostrou sentimentos que já não estava habituado a manejar, como me mostrou que a VIDA poderia ser mais do que aquilo que conhecia. Um perigo que traz consigo simplesmente a natureza de viver e existir.

- Sim, é… Mas sabes que nem sequer falamos de como lá entrou! Quer dizer… posso pensar que surripiou as minhas chaves. Mas é impossível. Tinha de mas tirar, sair de onde quer que estivéssemos, enquanto eu dormia, copiá-las e voltar! Não, não é possível… – constato, procurando mentalmente outras opções. Nada me parecia ter cabimento ou sentido. Antes de estar com ela, de a ver sentada na minha varanda, a possibilidade do que efectivamente se verificou tinha atravessado o meu pensamento, e sempre pensei que, caso confirmasse o que pensava, lhe perguntaria como o tinha feito. Contudo, vê-la levou-me, como sempre, para um universo distinto, onde os planos nunca chegam a acontecer, onde tudo se faz e cria ao sabor da ocasião, onde não existo além dos segundos que nos distanciam. Incrível.

- O teu porteiro tem a chave? – pergunta-me Arie, apresentando uma opção desconhecida.

- Tem, mas ela não lha pediu, tenho a certeza.

- Como é que tens a certeza?

- Não faz o estilo dela… – concluo.

Quarta-Feira. Acordo a pensar na minha certeza da noite anterior. A minha pequena VIDA junto de Godelieve ensinara-me vezes sem conta que certezas era algo que não existia neste mundo onde apenas vivíamos nós os dois. Ainda assim, imaginava todo o cenário que levaria Godelieve a pedir a chave ao meu porteiro, e simplesmente, não sei porquê, tudo se me afigurava como estranho, sem bater certo. Apesar de, como disse, saber que não posso ter certezas com Godelieve, sei que quando descubro os processos que levaram a um qualquer resultado, ainda que nunca o imaginasse, as coisas fazem sentido e batem maravilhosamente certo. Não, não tinha sido assim. Porque não lhe pergunto? Porque não preciso de saber. É bom conseguirmos manter-nos na escuridão em relação a alguns assuntos. Creio que na maior parte das vezes o fazemos porque morremos de medo do que a resposta pode significar. Todavia, desde há algum tempo atrás, tenho escolhido permanecer debaixo da sombra do mistério em algumas ocasiões, simplesmente porque sim, abraçando o bom que é não tudo saber, a beleza da incerteza. Sabendo tudo, dissecando todos os detalhes da nossa VIDA quotidiana leva à inevitabilidade de ver a nossa existência como uma folha de cálculo, em que temos consciência de tudo o que se passa… Claro que o mais curioso é a ilusão que é olhar para esta folha e julgarmo-nos senhores das nossas decisões, detentores do conhecimento daquilo de que somos feitos…

Uma vez entregando-se à realidade que é o simples facto de que nunca nos conheceremos a cem por cento, de que todos os dias nos modificamos, nos transformamos, deixamos de procurar querer saber tudo. Passamos a entregarmo-nos aos sentimentos, a existir de Vento em poupa… Sorrio ao pensar se serão estes mais alguns pensamentos passageiros que assaltam a minha reflexão ameaçando partir. Não sei… Sinto que todo este tempo em que permaneci morto mentalmente, sem pensar nem questionar nada fez com que, subitamente, uma vez que comecei a fazê-lo, a minha mente queira recuperar o tempo perdido, e passam por mim milhares de filosofias, pensamentos… É estranho, e nem sempre fácil de controlar, mas de qualquer maneira, controlo é algo que sinto que não tenho de ter…

Ligo a Arie, e ouço os toques caírem na escuridão, não atende. Penso, desta feita duma forma mais despreocupada, que estará com Helga. Escolhi respeitar a cobardia do meu amigo, por mais estranho que isto possa parecer. Talvez o cobarde esteja a ser eu, por estar a ver uma estupidez e permanecer no silêncio. Mas ainda sinto que deve ser ele e apenas ele a mo dizer. Talvez para o confirmar, ligo para a casa da sua amada.

- Sim? – atende Adriaan, com a sua voz de menino.

- Olá filho! – respondo, efusivamente. Noto a sua alegria, que me recorda que não tenho estado com ele. Sem grandes rodeios, pergunto-lhe quem está em casa, recebendo como resposta “a mamã e o tio Arie” – já é tio… vai ser difícil para Adriaan mudar de tio para “papá”… Mudo habilmente de assunto, e peço para chamar a sua mãe.

- Helga, olá, tudo bem?

- Olá! Sim, tudo bem. Diz?

- Estava a pensar se podia ir buscar o Adriaan agora… – quero, realmente ir buscá-lo, estar com ele. Mas não tem de ser “agora”, posso esperar, não tenho que fazer mais tarde.

- Hum… sim, mas tem de ser agora? É que agora não dá muito jeito…

- Por acaso agora era mesmo perfeito… é que mais tarde tenho umas coisas para fazer… – respondo, diabolicamente. Quase que vejo os perfeitos contornos duma figura vermelha em cima do meu ombro… Helga toma o seu tempo até responder, e quando o faz solta um seco “ok”.

Estou à sua porta dez minutos depois. Helga abre, e vejo o meu rebento correr na minha direcção. Examino com atenção, procurando indícios que me contem se cresceu, se sofreu alguma mudança que eu tenha perdido. Não me parece. Faço por entrar, e não vejo mais ninguém. Confesso que qualquer dos desfechos seria confirmador do papel que Arie almeja alcançar na VIDA de Helga. Se ali estivesse, isso dir-me-ia algo, quanto mais não fosse o simples facto de eu ver com os meus próprios olhos ambos no mesmo local. Como não está, confirma-me, não que ali esteve, mas das suas intenções. Sendo que já sabia que ali tinha estado, pela boca do meu inocente filho, o facto de já não estar revela a sua visita como tudo menos inocente, pois se assim o fosse, não tinha por que desaparecer…

Passei o fim de tarde na alegre companhia de Adriaan, que me mostrava ser a mais eficaz pessoa em retirar os meus pensamentos da silhueta de Godelieve. Pensava na maneira como Helga, nestes últimos tempos, também o fazia, mas duma forma diferente. Diferente pois os meus pensamentos não mudava tanto de pouso, mas simplesmente eram agitados, divididos, confundidos.

Helga, mulher das duas faces, uma a mesma de sempre, a outra a de nunca, voltaria a me surpreender nesta mesma noite. O seu toque voltaria a ser necessitado, os seus olhos voltariam a ser observados, a sua VIDA voltaria, ainda que por uns breves segundos, a respirar…


XLV

Salto No Tempo

- Nunca me chegaste a dizer como entraste em minha casa… – pergunto-lhe, não procurando necessariamente uma resposta. A curiosidade fazia-se sentir, não digo que não, mas o sentimento de não saber talvez seja mais prazeiroso que o satisfazer duma necessidade de conhecimento…

- Pois não, tens razão… – responde, sem mais nada dizer. Estamos em sua casa. Não percebi muito bem como combinamos que fosse Godelieve a decidir o nosso destino nesta noite, sendo que da última vez, apesar de termos feito o que eu tinha planeado, sinto que não foi por minha decisão. Penso nos últimos dias, e recordo com exactidão o momento em que nos vimos pela última vez…

- Não desta vez… – ouço-a dizer – Só nos temos por mais um par de horas… desta vez… – e cala-se por uns longos minutos. Vejo o seu corpo elevar-se com delicadeza a cada inspiração minha. Da maneira como está deitada, chega apenas até mim o delinear das suas perfeitas longas pestanas, que se vão fechando por períodos mais prolongados… Os meus braços apertam-na, e tento senti-la por mais algum tempo. Penso nos dias que se avizinham sem si, e o desespero de não a ter não se faz sentir de forma tão esmagadora como doutras vezes… mas ainda assim sinto cada segundo como fatal, como anunciador da sua doce ausência… Curioso. Pensando realmente bem, como posso tratar a sua ausência como doce? É facto que não trato, mas não menos verdade é que foi o que me saiu, o que atravessou o meu espírito. Talvez a constante inconstância que sinto em relação a Godelieve tenha encontrado alguma momentânea paz, e os meus sentimentos de amor-ódio tenham proposto umas tréguas.

Embalado pelos meus próprios pensamentos, deixei-me escapar do mundo consciente. Entrei num sonho qualquer, em que tinha Godelieve dum lado, numa Savana, correndo, e do outro Helga, num mato qualquer cheio de neve, esperando-me, olhando-me. Sem sequer pensar na estupidez do contraste da natureza avanço pelo meio dos dois destinos, o meu olhar pousa em Helga, e quando volta para Godelieve nada vejo… até que, ao fundo, percebo um felino… parece-me um leopardo, a abrandar o ritmo, até que dá volta e meia sob si mesmo e se deita no chão, espetando as garras do seu olhar na minha pele. Quando volto a procurar Helga, esta, por sua vez, assume o formato duma ave. Ora me parece um mocho, ora uma coruja, um corvo, e outras formas cujo nome desconheço. Na savana está frio, apesar de me parecer ver o sol ao fundo. No mato está calor, apesar de ver o branco da neve preencher todo o panorama. Aproximo-me do leopardo.

- Vem, querido… – chama.

- Vai, querido… – ouço o pássaro dizer, por detrás do meu ombro…

Quando acordo, os meus braços abraçam um pedaço de nada que Godelieve me deixou. Sinto o frio dançar no meu quarto, e o peso da solidão que ela deixou para trás como algum estranhamente reconfortante. A minha mente viaja uns anos, e desta vez sinto-me como um adolescente que suspira pela sua amada. Sem fechar a janela, saio do quarto e mudo o som da aparelhagem, deixando a tocar Dizzie Gillespie, A Night in Tunísia. O som agitado é algo que sinto entrar-me no espírito. Sirvo-me de um whiskey, sento-me no sofá frio de cabedal beje.

Dou algum tempo para que, caso queira, explique como conseguiu entrar, e quando vejo que não o faz pergunto se não terá algo para ouvirmos. Olho à minha volta e o nervosismo ainda não me deixou. Já que tenho de o sentir, escolho apreciá-lo. Dou alguma atenção ao meu interior, e pego nas partículas de fogo que sinto no meio dos pulmões, oscilando, ora subindo, ora descendo ao longo dum qualquer feixe imaginário dentro de mim. Gosto. Olho ao redor e cada detalhe contribui para que o nervosismo não desça. De vez em quando esbarro numa fotografia de Ruud, e chega mesmo a subir um pouco. A casa é imperial, algo ainda melhor do que alguma vez imaginei. Cada centímetro do chão está coberto de tapetes típicos do norte da ilha, vermelhos com rebordos dourados. Os cortinados seguem o mesmo padrão, e cada peça de mobília ostenta uns recortes arrojados e artísticos na madeira castanha escura. Embrenhado nestes detalhes, dou um gole do copo de Mestiba, e começa a chegar até mim Billy Holiday. Vejo Godelieve voltar a entrar no hall onde me encontro, entre a sala de estar e o quarto. O quarto. Dou uma olhada subtil, e penso, desconfortavelmente, se acabarei a minha noite na mesma cama onde uma das pessoas que mais detesto costuma dormir.

É quando Godelieve se senta no meu colo que percebo que tardava o sentimento de despreocupação que a sua presença normalmente imprime em mim. Efectivamente, no momento em que a sua pele volta a tocar o tecido das minhas calças, no momento em que sinto o seu peso instalar-se no meu colo, o seu tronco encostar-se a mim e o seu perfume me sorrir, volto a ser aquele que mais gosto de ser, o verdadeiro Theodoor.

Toda a gente quer, e precisa, de um grande romance na VIDA, cheio de riscos, perigos, paixões assolapadas e arrependimento. E ao abraçar Godelieve, ao sentir os seus lábios trincarem os meus até ao limite da dor, ao sentir a sua alma instalar-se na minha pele, sinto intensamente a beleza de viver, nesse preciso instante, momentos há algum tempo desistidos. A minha mente abandona definitivamente a última semana, os erros, as confusões, deixando as minhas acções de tanto pesar… quase posso dizer que me sinto eu quando com Godelieve, podendo assim aliviar o peso de más decisões, lançando-as para a responsabilidade daquele pedaço de pessoa que me habita quando distante de si.

Levanta-se e afasta-se, deixando-me sozinho. Hipnotizado, o meu olhar segue a sua silhueta felina, e apenas aqui me lembro do sonho que tive. Godelieve como o meu felino, Helga como uma indecisão de aves qualquer que de momento não quero perceber. Claro, um felino. Claro. Encho o copo de Mestiba e bebo tudo duma vez, preparando-me para entrar onde nunca pensei entrar.

Sorrio, e apenas penso, ao olhar para quem me espera, em como é bom ser eu…


XLVI

Helga abre a porta, permaneço na entrada, vendo Adriaan desaparecer no corredor. Ouço o som da televisão acender. Helga, muda, olha-me, ostentando o seu corpo que já tinha esquecido, debaixo da camisa de dormir de seda branca. Olho para as suas bonitas, ainda que não agressivas, linhas, e penso se, só porque tive a possibilidade de a ver nua por anos, tenho de ter privilégios para sempre…

- Suponho que queiras uma bebida… – sugere, para minha surpresa. Estava pronto para ir embora, mas o convite, que matreiro surgiu, subitamente despertou em mim uma vontade de ficar. Entro, sento-me num dos grandes bancos do pequeno bar no canto da sala. Percebo que toca, baixinho, e proveniente duma coluna escondida atrás do bar, algo que me parece ser Zero 7. Olhando o ecrã da aparelhagem confirmo, Destiny é a música. Helga desapareceu do meu campo de visão por uns momentos, e a minha mente volta a instalar-se nesses… privilégios. Sendo que não temos mais nenhuma relação, que somos apenas… amigos… não deveria coibir-se mais? É estranho, e eu próprio estranho a minha antiquada reacção, mas talvez seja apenas o medo daquilo que desperta em mim. Afinal de contas ver aquela beira sensual do lado do seu seio a escapar pela camisa de dormir é algo que não me deixa, nem nunca deixou, indiferente. Minto. Deixou-me indiferente a maior parte da minha VIDA, mas hoje não. Que estupidez…

Volta com uma garrafa de Baileys. Senta-se do outro lado do bar.

- Não me digas que tinhas a garrafa no frigorífico… – digo, numa questão que trazia consigo já a crítica, dada a certeza que tinha, tendo a garrafa na mão.

- Qual é o problema? – Foda-se! O olhar que me lança, que sei ser sem qualquer intenção, deixa-me um pouco zonzo e descontrolado. Não sei definir bem, mas tem uma certa pureza, misturada com jovialidade. Sorrio ao pensar que, pelo menos na parte da pureza, o seu sorriso está a milhas do de algumas pessoas…

- Bem, não é nenhum… – digo, entregando-me – Mas ainda assim vou querer gelo. Ao menos iludo-me quanto à razão do frio… – remato, com um sorriso. Baileys no frigorífico… E que estranho é o facto de uma pessoa fazer algo mal-feito e isso apenas nos aproximar um pouco… Parece-me que estranho é a palavra do dia. Mas se pensar… com Godelieve tudo corre sempre perfeitamente. Monta para mim um espectáculo que nunca sei onde começa ou acaba. Tanto quanto eu sei, qualquer seu trejeito pode ser uma encenação, indo os seus dotes muito para além do cenário ideal, e assentando, especialmente, no estar ideal. Não creio, ou não quero crer, mas ainda assim…

Com Helga… bem, estou a re-descobrir Helga, e sinto-me mais perto de si nestes últimos tempos do que nos últimos anos. Não estou apaixonado por si, não a quero de volta. Claro que me confunde, por vezes, e claro que anda com Arie, mas ninguém é perfeito… nem eu o sou, porque me confunde, nem ela o é, porque anda com Arie…

Adriaan não tarda a adormecer, e Helga deita-o, voltando a fazer-me companhia no instante seguinte. Está sentada do outro lado do bar, e conversamos em voz baixa sobre trivialidades. Sinto assuntos mais interessantes em lista de espera. Não sei quais, até me ouvir perguntar-lhe se tem estado com alguém nos últimos tempos.

- Não me fizeste já essa pergunta noutro dia?

- Não sei… fiz?

- Acho que sim, meu querido. – finalmente começa a abandonar aquele olhar puro, que inocente e involuntariamente me seduzia, e dá um passo para o campo da nunca frustrada sedução.

- E que respondeste? – pergunto. Reparo como mantemos o tom de voz num nível estranhamente baixo. Não o fazemos por Adriaan, este dorme no seu quarto com a porta fechada, não nos ouviria. Que língua falamos?

- Hum… Talvez tenha respondido que não tens que saber o que ando a fazer… – responde, cruelmente.

- Não tenho, tens razão… mas o facto de não ter de saber implica que não vá saber?

- Como assim?

- Simplesmente… acho que nós não sabemos, ou fazemos, apenas aquilo que temos de saber, ou fazer. Muitas outras coisas acontecem, não fruto da necessidade, mas da simples casualidade, divertimento…

- Ou da simples necessidade de errar… – completa. Levantou-se, deu a volta ao bar, aproximou-se de mim. Assentou levemente a palma da sua mão direita na minha face e disse-me esta frase que me recordou de si, que me recordou da necessidade de errar. Volta a virar-se, e senta-se no sofá – Sabes… acho que me devias apresentar a tua… amiga… – ??? O meu silêncio fala por mim. Permaneço sentado no banco do bar. Vejo apenas o seu cabelo louro, estando o resto do seu corpo escondido. Quero dar um salto e cair na sua alma. Não estou sozinho, e isso faz com que seja mais difícil gerir e analisar os sentimentos que correm dentro de mim. A confusão de me sentir tão atraído por Helga mistura-se com as frases estranhas vindas de si mesma, com os pensamentos que partem de mim… – Sim… imagino que estejas confuso. Mas, de certa forma, acho que gosto de algumas partes deste teu novo tu. E alguns pensamentos teus acabam por chegar até mim e, duma maneira completamente estranha, fazem-me sentido… – impressionante como se atreve a dizer-me que Arie lhe conta o que vai dentro de mim…

- E que gostas de ouvir? – pergunto, ao me levantar, e sentar-me do seu lado, no sofá. A minha respiração flutua desalinhada com o resto do ambiente que tenho perante os meus olhos. O seu olhar entra dentro dos meus poros como entrou poucas vezes na minha, na nossa VIDA. Helga aproxima-se e sinto que me devo afastar. Erros? Que erros cometer? Como é confusa esta concepção de abraçar o erro como parte da VIDA. Uma vez que o fiz decidi que nunca mais buscaria a perfeição no meu estar. Mas como escolher que erros cometer? E será que, ao escolher que erros cometer, continuo nessa busca, que pensava esquecida, de almejar a perfeição? Não faço ideia, e este não saber deixa perante mim a única vontade de a beijar.

- Não te posso dizer tudo o que gosto de ouvir. Senão ia entregar-te todas as armas para poderes ter o mais estúpido jogo…

- Como?

- Ias usar-me, ter-me, ao mesmo tempo que ias usar, e ter a tua outra amiga… e se eu ficar assim, se não te deixar saber o que quero, ou não quero, posso ser eu a escolher se te quero ter… – e beija-me. A minha língua sente o sabor do licor nos seus lábios, a minha mente explode e apenas consigo questionar a peculiaridade das situações em que escolho me colocar. A maneira como me beija afigura-se-me como nova, desconhecida, e gosto de sentir os seus lábios, que me parecem, não sei porquê, destreinados, a deitar-se com os meus.

Não tardamos a fazer algo que meia uma hora antes achava que nunca voltaria a fazer consigo. Sinto o seu calor entrar em mim, o meu sangue palpitar nas suas veias e os seus olhos fecharem-se de prazer. Sinto o rebentamento estranhamente perto, e faço por me controlar, faço por esperar que Helga atinja o seu próprio clímax ao mesmo tempo que o meu. as minhas mãos tentam abraçar cuidadosamente os seus seios, mas acabo por rasgar um pouco a camisa de dormir, vendo as partes do seu corpo a sorrirem timidamente. Nada me passa pela cabeça a não ser a surpresa da imagem que vejo, e a roda-viva que tudo o que existe tem de ser…


XLVII

Quando acordo, no dia seguinte, na minha própria cama, procuro sinais de ressaca. Abro os olhos, não sinto nada. Levanto-me, não me custa. Não sinto os pulmões pesados de fumar em cadeia, não sinto a cabeça latejar. Procuro sinais de ressaca que não encontro. Confunde-me, mas talvez esteja a procurar no álcool a razão para ter acontecido o que aconteceu… mas desta vez está inocente. Penso no que bebi, e facilmente percebo que meia garrafa de Baileys, de acordo com os meus padrões de ultimamente, não seria o suficiente para me deixar… assim – tudo o que consigo dizer – assim. Mas então, porque tenho este estranho sentimento de arrependimento?

Ligo a aparelhagem e deixo a tocar PJ Harvey, com o álbum White Chalk. Escolho a faixa When Under Ether, cuja sonoridade combina com o meu estado de espírito. Não me interessa a letra, interessa-me apenas o leve sentido de desespero e tristeza… não a sinto em pleno dentro de mim, essa tristeza, mas mais predominantemente o tal estranho sentimento de arrependimento. Dou voltas e mais voltas à minha cabeça, enquanto fumo um cigarro na minha varanda, procuro as minhas novas filosofias de VIDA, mas nada parece conseguir fazer com que me sinta mais leve. Dever-me-ia ser indiferente, apenas uma experiência, um momento bem passado… ou se um erro, deveria aceitá-lo, e seguir. Claro que seguirei, mas a aceitação desse mesmo erro está-me a ser mais difícil do que imaginei. Talvez se fosse fácil, ou inexistente, não seria na verdade um erro, mas simplesmente algo que não fora planeado. Sim, talvez resida neste facto a eterna diferença… Talvez os erros tenham os seus tempos para serem aceites…

Momentos. Penso nos momentos que constroem a nossa existência, e se por um lado permaneço com o arrependimento dentro de mim, por outro lado sorrio perante a ironia e o prazer que é esta VIDA de constante incerteza. Sinto frio, e sinto o relógio chamar-me para o chuveiro. Algo de que, por mais que mude, não me consigo descolar. O relógio. É triste necessitarmos de certas coisas como necessitamos, como do trabalho. Foda-se, preciso de dinheiro para viver, e preciso de trabalhar para o ter. Mas porque faço algo que não me agrada inteiramente? Que posso fazer de diferente? Sinto-me tão emergido no sistema que vejo a saída como longe, muito longe, talvez apenas alcançável com o interminável galopar da idade, a utopia da reforma. Sei que quando lá chegar, se o fizer, grande parte da minha energia se terá esgotado, e morro de medo de me sentir incapaz para viver como sempre quis viver, para aproveitar os meus últimos anos de existência. Acordo! Acordo subitamente destes estúpidos pensamentos, e aí sim as minhas novas filosofias de VIDA entram em acção e têm o poder de mudança. Felizmente. Ainda que não inteiramente capazes de afastar certos sentimentos, desta feita expulsam eficazmente estes pensamentos de futuro que me desagradam. O presente. Tudo o que me interessa. Como estou, onde estou, quando estou. Existo agora, não no amanhã, e por isso mesmo o meu sorriso adquire um esgar mais genuíno, e não penso nesse futuro.

O dia escorrega em menos segundos do que imaginara, e estou, ao fim da tarde, na rua frente à embaixada americana, onde tivera uma reunião. Escolhi vir a pé. O dia continua a entregar-me a mesma temperatura, que deixa no meu corpo a incrível noção de presença. Penso em Godelieve e em quando a verei. Nada combinamos. Canso-me. Por vezes, por mais que adore este jogo de gato e rato que fazemos, por mais que aprecie este não saber, canso-me. Eventualmente tudo valerá a pena, mas penso quanto tempo durará esta espécie de relação que temos. Quero-a apenas para mim. Não sei se quero envelhecer consigo, mas quero tê-la para sempre.

Sento-me numa esplanada, do primeiro bar que encontro, peço um gim tónico. Penso no que seria envelhecer com Godelieve. Não sei porque hoje a minha mente está a viajar para tão longe. Todavia, desta feita, ao contrário do que fiz nesta manhã, não uso os meus princípios para afastar o que povoa a minha mente. Não o faço pois não tenho uma opinião sólida em relação que me habita, no que a isto diz respeito. Sei que a quero ter para sempre, sei que quero chegar a casa e ter alguém como ela à minha espera, sei que quero sair uma noite qualquer com Arie e saber que, nesse instante, tenho alguém para quem voltar. Quase sinto que quero conhecer a verdadeira Godelieve. Penso na diferença que haverá entre o foder, o gostar, a paixão e o amor. Sinto cada um destes termos como escadas num espectro invisível e que eu, completamente cego, vou percorrendo, às apalpadelas. E não sei onde me encontro. Sei que o primeiro termo como o mais importante cedo pereceu, sei que o terceiro, o guardo dentro de mim, mas entre os restantes, tanto a sua presença como o seu grau, é para mim um completo mistério. Não a quero amar. Pelo menos ainda não. Mas significará que não o farei, ou que não o faço, simplesmente porque não o quero? Se tal sentimento não viaja dentro de mim, porque preciso tanto de a ter?... E porque não o quero sentir? Acho que, no fundo, me assusta a posição incrivelmente frágil em que qualquer pessoa que ama se encontra… Quando amamos não somos nós. Somos pedaços da nossa alma misturados com aquilo que achamos que a outra pessoa quer que sejamos. E como avaliar com exactidão aquilo que os outros querem de nós? Impossível. E precisamente por ser impossível, quem ama estará, de certa forma, vetado ao insucesso, a menos que o sentimento seja partilhado pela outra pessoa. E com Godelieve… como posso saber? Como posso saber aquilo em que pensa, se tampouco sei o que eu próprio penso quando na sua presença?... Não demoro muito a perceber que talvez eu tenha sido, de uma maneira, aquilo que espera que eu seja, e sendo assim, a matemática é simples… esta é apenas o resultado da equação que acabei de enunciar, em que do outro lado estava o amor…

Meu deus, como é terrível e ao mesmo tempo incrivelmente saboroso pensar… Como que um interminável caminho, pensar leva-nos, guia-nos através de estradas de poeira que não nos deixam perceber o destino. O fio condutor entre cada pensamento torna-se cada vez mais delgado, sendo, a partir de um certo momento, impossível perceber onde estamos…


XLVIII

Quero testar Godelieve. Quero, mas não sei se consigo. É Sexta-Feira, saio do parlamento, e o sol pergunta se não quero dar um mergulho no mar. Quero testar Godelieve, e não ir ao Vrijheid, ou a minha casa, os dois únicos sítios onde pode ter deixado alguma mensagem, creio. Se fizer exactamente o que me apetece, que é ir para a praia, estou a estudar a sua precisão, o seu domínio do nosso destino. Mas por outro lado reconheço o impossível que é Godelieve seguir-me de tal forma, e chego à conclusão que ir para a praia seria o mesmo que estar a negligenciar o nosso encontro.

Assim, entro no carro e passados alguns poucos minutos estou onde quero estar. Não tenho calções, mas não me importo. Abro a porta de trás, dispo-me e lanço toda a minha roupa para dentro do carro, ficando apenas de boxers. Sinto os raios de sol queimarem a minha pele, penso no dia anterior. Não consigo perceber a falta de coerência que o tempo tem em Hetwestenland. Mas agrada-me. Não poderia, agora que me encontrei, ser mais feliz em qualquer outra parte do mundo senão neste país podre, cheio de vícios e corrupção, mas cheio do perfume sedutor que é o “não saber”. Em mais nenhum país no mundo “não se sabe” como em Hetwestenland. Fecho o carro, entro na praia. Sinto a areia quente como lava cor de trigo, vejo o mar, calmo, a agradecer ao sol a minha presença. Sento-me. Sofro um pouco, pois quero correr, mergulhar. Mas sento-me. Sento-me e olho ao redor por uns minutos. Tudo é tão assustadoramente real. Tento absorver as sensações que me são transmitidas, mas é demasiada informação. Tento prestar atenção ao azul do mar, à brisa que, sorrateira, me apaixona, ao riso dos meninos a brincar, às cores que constroem a minha realidade. Por um momento percebo o quão mágico tudo é, e sinto que o mundo foi feito para mim, mais ninguém. Sinto cada átomo de mim, cada átomo do mundo onde me incluo como uma peça de teatro a que eu, sozinho, assisto de rasgado sorriso e a que aplaudo entusiasticamente. Deito-me para trás e construo a minha própria melodia. Fecho os olhos, vejo Godelieve. Sinto a verdadeira razão pela qual estou na praia, e não em casa ou no Vrijheid. Quero ser meu. O amor por Godelieve… usei a palavra amor. Escapou-me, sinceramente. Não interessa… o amor que sinto por Godelieve, sinto-o tão poderoso como destruidor, e se por um lado me agrada, por outro desagrada-me esse agrado. Vim para a praia porque era o que eu queria fazer, porque queria dizer a mim próprio que ainda sou meu.

Levanto-me e corro. Tento largar, numa corrida, todas as concepções que o mundo impõe sobre mim, e por uns breves segundos, em que vejo apenas o meu destino, em que sinto as minhas pernas, destreinadas, a queixarem-se violentamente… por uns breves décimos de segundos em que salto, em que antecipo a queda e mergulho no atlântico frio, sinto-me diluído, um pedaço de areia e água abraçado pelo mar…

Devolvo com um sorriso a cara de espanto do Sr. Tom, o porteiro, ao ver-me entrar de tronco nu e cabelo molhado no hall do prédio. Sinto-me como um adolescente, e recordo-me de como sabe bem não fazer o que esperam de nós, mas fazer o que quero fazer. Porque se afasta o humano tanto do que é ser humano?... Buscaremos na falsidade a genuinidade?

Vejo-me no espelho do elevador, e compreendo a cara de Tom, sendo que tenho o cabelo completamente cheio de areia. Penso em chegar a casa, fumar um bom cigarro, a beber uma boa cerveja, a ouvir uma boa música na minha varanda, e de seguida começar a pensar em Godelieve. Corrijo, começar a pensar no nosso encontro, pois a pessoa já me habita o pensamento. Sem problemas…

Começava a encontrar-me surpreendido por não me ter ainda surpreendido, até que, ao chegar à alva porta número 39, vejo um pequeno envelope lilás colado na mesma. “Porquê lilás?...” – penso, divertido, ao abrir o mesmo envelope.

- 371293 – “Só pode ser um número de telefone…” – penso, alternando o meu ar para uma expressão de dúvida – “Bem, logo vejo…”. E assim continuo com o planeado. Sentado sob Nieuwe Adelaars, ouvindo Sigur Rós, e bebendo uma Shift, a melhor cerveja nacional, continuo com os meus pensamentos a saltitar de momento em momento. Vejo, ao fundo, o mar onde instantes antes eu me elevara, aprecio a adrenalina e nervosismo dentro de mim, sorrio voltado para dentro.

- Boa tarde. Suponho que falo com Theodoor. – ouço, do outro lado, uma voz masculina anunciar.

- Hum… Sim, eu suponho que sim… igualmente… – respondo, com alguma surpresa. Pensava no estranho que era Godelieve ter, por um lado, deixado um número de telefone, mas ao mesmo tempo ter-me contactado.

- Tenho instruções ir buscá-lo dentro de quinze minutos. Está bom para si? – a imagem que o espelho me devolve diz que não.

- Quinze minutos é capaz de ser um pouco puxado… Meia hora, pode ser? – pergunto, às cegas.

- Certamente. Alguma bebida, snack, ou música, em particular? – não percebo. Não percebo mas entrego-me, fingindo que percebo perfeitamente o que se passa.

- Hum, sim, concerteza. Mestiba e Miles Davis, pode ser?

- Sim, sem problema. Algum cd em particular? – pergunta, depois de uma pausa para, imagino, anotar os meus pedidos. Quando peço o Straight no Chaser, lança-me a última questão.

- A indumentária é smoking, obrigatoriamente. Sugerimos que traga algo leve, fácil de trocar. Obrigado. – e desliga. Estou confuso, muito confuso. Bebida, música, indumentária, que se passa? Gosto. Modifico a minha confusão ligeiramente. Um toque aqui, um toque ali, e as minhas sobrancelhas abandonam o olhar carregado e elevam-se um pouco, emprestando ao meu ar a energia descontraída e surpresa.

Assim, tomo banho a ouvir o In Your Honor acústico dos Foo Fighters, com todas estas questões por resolver a inundar a minha mente. Passados os pedidos 30 minutos, estou pronto. Sem saber o que a voz queria dizer com algo leve, optei por umas calças de fato de treino e uma t-shirt. Sentia-me nervoso e algo ridículo, pois podia estar a falhar completamente. Ainda assim, desci, sai do prédio.

Não sabia o que procurava, pelo que simplesmente esperei para ser encontrado. Acho que sempre recordarei os segundos em que vi o que vi, imaginei o que imaginei e, com agrado, confirmei. Ao fundo, do outro lado de um semáforo, uma limousine preta, naturalmente, esperava, nervosa (ou seria eu?) para avançar. Achei-me, como tantas vezes o faço, como o personagem do melhor filme de sempre, com a vantagem de que isto estava realmente a acontecer-me. Apago o cigarro quando o veículo estaciona à minha frente. Esperava ver Godelieve sair de uma qualquer porta, mas ao invés vejo um rosto familiar sair do lado do condutor. Aquela cara não me era, de todo, estranha. Não sabia ser era quem, uma vez, me tinha dado um bilhete no Vrijheid, se era quem me tinha conduzido até à mansão de Godelieve, ou mesmo a pessoa que trabalhava no hotel quando… estivemos juntos pela primeira vez.

Não diz nada, limita-se a abrir a porta.

Quando entro, surpreendo-me com o espaço que tenho diante de mim. Se por fora me parece confortável mas pequeno, ao entrar deparo-me com uma espécie de dimensão alternativa, na medida em que vejo o espaço como que duplicado, confortavelmente grande. Sento-me no banco do fundo. Do meu lado direito, pendurado na porta, um smoking. Arrancamos. No tecto da limousine, um pequeno triângulo pede o meu toque, e ao recebê-lo brinda-me com o som de Miles.

Uma vez vestido, sirvo-me de um shot de Mestiba. O copo é um pouco maior do que aquilo a que estou acostumado, pelo que penso em simplesmente apreciar o agreste líquido sabor, ao invés de o destruir num segundo. Encosto-me para trás, dou um gole, imagino para onde me dirijo. Não seguimos o caminho da sua mansão, nem sei onde estou. Venha o momento…

Venham os pedaços de momentos que Godelieve me oferece, venha o toque da sua pele e a sua boca molhada. Venha qualquer surpresa me apanhar prevenido, venha a doce companhia da sua melodia… Seja o que for, em momentos como estes sinto-me estranhamente preparado para o que quer que a minha musa tenha para me oferecer. Desde que ela esteja lá, eu estou onde for preciso…

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Leva nas tuas asas as partes de mim que prometes,

Deixa-me a estoirar os momentos cansados,

Não me dês o que todos os dias repetes,

Não nos vejas nunca mais abraçados.

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Silencia o teu olhar massacrador,

Dá voz ao teu destino longe de mim,

Não peças mais nada do meu amor

Não vejas mais um começo neste fim.

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Oferece-me as paredes como companhia,

Oferece-me a tua eterna ausência,

Prefiro a solidão do dia-a-dia,

Do que a tua viciada influência.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Zero 7 – This World

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O cenário: Ele, sozinho, algures no fim do mundo, no meio do seu quarto. Uma luz dum candeeiro despido do seu abat-jour ilumina o pouco que há para iluminar. Um pedaço de pessoa, apenas em boxers sentado no chão; um par de almas mortas estendidas dentro de si; um pedaço de terreno ao redor povoado de beatas de cigarro. Ela entra.

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- Pago agora ou pago depois? – ele pergunta, olhando de baixo para cima. Está sentado no chão com o seu computador no colo. Ouve This World, Zero 7, em repetição, pela enésima vez. A puta olha, de cima para baixo, e cospe:

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- Pagas quando quiseres, desde que pagues…

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- Pago agora. Não me quero arrepender no final e mandar-te pelo caralho sem o dinheiro… Podes ficar com o troco… – sugere, ao entregar uma engelhada nota de 50 euros.

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- Tu é que sabes… Não te conheço, mas ‘tás com um aspecto de merda… – diz a puta, vendo a sua cara amarelada e as olheiras que emprestam ao seu olhar um aspecto cavernoso. Todo ele é merda. – E cheira mal para caralho aqui!

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- Primeiro… – começa, falando devagar para ser entendido. O álcool tolda não só a sua visão, que não lhe permite averiguar a beleza da puta, como a sua voz, e a cadência das suas palavras, que escorregam melosamente pela sua língua com sabor a tabaco – Não vais dizer asneiras… E depois, eu não te pago para me dizeres como estou, vê se entendes isso…

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Ela emite um sinal, sem falar, que lhe diz que percebe, enquanto passeia pelo quarto. Com cuidado, passa por cima de si, já que as suas pernas estendidas encostadas ao armário bloqueiam a passagem, e ele vê a sua bolsa de pele falsa balançar na sua frente, e mais tarde aterrar numa cadeira.

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- Vais vestir aquelas roupas… E pôr aquele perfume… – ele ordena, apontando com o amarelado dedo para o canto, onde impecavelmente dobradas a puta vê uma saia branca e uma blusa vermelha, coroadas por uma embalagem de perfume cuja marca não reconhece. “Saiu-me um estranho…”, ela pensa, ao começar a despir-se. Ele não a vê, tampouco olha para ela… Eleva um pouco a sua cabeça, como se no tecto algo procurasse, mas os seus olhos permanecem fechados. Tenta sentir a música que ouve, e tacteia, ainda com a visão desaparecida, a garrafa de rum deitada no frio chão a seu lado. A puta, perante o que chega aos seus sentidos, sente algum medo nascer de si, e pensa duas vezes se fará o pretendido. “Fodido como ele está, nunca me conseguia fazer mal…”, pensa, descansada.

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- E agora? – pergunta, envergando as vestes que noutra altura outra pele vestiram. Ele abre os olhos, olha para si, e ela percebe um par de lágrimas querendo sair. Ele afasta o computador do colo, faz os boxers deslizar até aos joelhos apenas.

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- Agora sentas-te em mim. Puseste o perfume?

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- Pus. – e senta-se. Ele permanece imóvel, pelo que ela vai fazendo o trabalho, sentido-o entrar e sair dentro de si, sem qualquer protecção. Ora ele a olha fixamente, duma forma incomodativa, ora fecha os olhos, e sente com os dedos o delicado tecido da sua roupa.

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- Não… – ele diz baixinho.

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- Não o quê? Queres que pare? – ela pergunta, quase preocupada. Sem saber como nem porquê, sente em si nascer um sentimento de pena e empatia por ele. Porém, ele abre os olhos furiosos e grita…

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- Tu não és metade, um terço dela! Quem é que pensas que és? – empurra-a, violentamente, para a sua esquerda. Ela rebola e sente a sua cabeça embater na mesinha que a esperava no canto. Ele fica no mesmo sítio.

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- Que caralho! Que é que ‘tás a fazer filho da puta?

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- Eu disse para não dizeres asneiras! – ele cospe, desta feita literalmente, na sua cara. Ela continua no chão, e sente a sua saliva quente e mal cheirosa deslizar pelo seu rosto. Levanta-se abruptamente e prepara-se para abandonar o quarto. Ele levanta-se também e agarra-a, começando a despi-la, rasgando a roupa e partes da sua pele.

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- Onde é que ias com a roupa dela, hã? – ele grita, em pé, com os boxers nos calcanhares, os olhos carregados de sangue, lágrimas. Ela grita, enquanto ele a deixa completamente nua e a empurra porta, com o pontapé, deixando-a apenas com a sua bolsa, completamente nua.

~

A música continua a tocar, e ele chora, sem soluçar. Não quer chorar, não quer pensar no passado, mas a certeza de ter tido algo que nunca mais se terá tira qualquer realidade ao discernimento, qualquer discernimento da realidade… A puta não era metade dela, um terço, um milésimo, assim como ninguém o será, nunca mais… Alguém pontapeia a porta. Ele não sabe quanto tempo passou, mas a música terá tocado mais umas vinte vezes… Gritam do outro lado e ele distingue uma voz masculina agressiva e a voz da puta… “Estou fodido…”, ele não pensa… Levanta-se e sabe que a única maneira é fugir pela janela. A porta ainda aguenta, mas por pouco tempo mais o fará. Ouve os socos na madeira estranha ecoarem na sua mente, fazendo sua cabeça latejar. Levanta-se novamente, sobe os boxers, caminha até à sua janela. Abre-a. A porta está quase a ceder. É a única maneira.

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Sem se equivocar, salta pela janela, e aterra alguns metros abaixo, 6 andares depois.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Procura

The Used – Blue and Yellow

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Um dia perdi-me dentro de mim. Tanto procurei, tanto procurei, que não só não encontrei, como me perdi completamente. Os anos passavam e a resposta não vinha, pelo que, certo feio dia, decidi procurá-la sozinho. Tinha um punhado de certezas, e nelas confiava para me agarrarem à VIDA que, apesar de apenas uma ilusão, me mantinha colado ao planeta e me permitia não ser triste. O punhado de certezas que tinha… esses vi-os perecer momento a momento, em anos que décadas pareciam… Enquanto tinha apenas uma dessas certezas, outrora mais que algumas, permiti-me continuar, aventurando-me cada vez mais, obcecado, viciado com o prazer e dor que havia a cada nova descoberta. A cada nova pseudo-descoberta. A cada passo que dava, a cada nova descoberta que tocava, via, apenas um pouco adiante, uma outra que me pedia que abdicasse da anterior para a poder conhecer. Não sei porquê, fui caminhando. Talvez pensando, ou sabendo, que cada uma dessas descobertas não passava, precisamente, de uma pseudo-descoberta, menos valor de cada vez dava, e confiante que a mais difícil seria a melhor, os meus passos ecoavam algures dentro da minha mente, dos territórios que talvez tivessem sido feitos para permanecer virgens… Nada aparecia, e tão depressa agarrava algo como descartava, percebendo o quão fácil é ser enganado…

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Mas tinha ainda a certeza que me traria de volta á ilusão de VIDA feliz que me fazia passear pela existência com um sorriso amarelo no rosto. Ou tinha? As minhas mãos tacteavam no escuro, à procura desse mágico fio que me traria de volta, mas nada aparecia. O desespero esperava, à porta, para se fazer sentir, mas tentava, com força, manter a mesma fechada, colocando todas as minhas forças para que esta não se abrisse. Quando dei por mim, queria continuar a procurar a certeza que me agarrava ao mundo, queria continuar a procurar uma descoberta que não passasse duma pseudo-descoberta, mas estava demasiado ocupado, concentrando todas as minhas forças na porta de madeira negra que já rangia e ameaçava dar de si. A força era avassaladora, e não tive como não ceder. O desespero instalara-se e além de me deixar com um sentimento de incapacidade, toldava-me um pouco o tacto. Já caminhava às cegas… tinha perdido a certeza, e procurava, pelo outro lado, algo que me trouxesse de volta. Algo que me trouxesse para mim, para a realidade de quem sou, ou apenas para essa ilusão de VIDA que tinha tido e de que tinha abdicado. Sentia, cruelmente, que a ideia de poder, nessa altura, descobrir a minha essência, essa descoberta, se manifestava, num pontapé maquiavélico do destino, numa ilusão despida de qualquer fundamento real, de qualquer aspiração…

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Continuei a caminhar. Não ia sozinho. Dum lado a sombra do desespero, do outro a pesada constatação da realidade… Ironicamente, não vivia já numa ilusão, mas na certeza de que sempre perdido viveria.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Velho

Era uma vez um senhor que já nasceu velho.

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- Querido, as águas rebentaram! – anunciou Isaura, sua mãe, certo dia. Tomavam café em Vale de Cambra, o dia era de Verão, e era o dia ideal para ter um filho. Sim, o dia ideal. O sol aquecia, as pessoas andavam contentes, tudo estava bom, e perfeito. A correria iniciou-se e num instante estavam no hospital. Não custou muito a sair, e passados uns breves minutos, ouvia-se um choro. Porém, o choro durou pouco. O bebé terá tomado consciência que não fazia tanto sentido chorar se estava a começar a viver, pelo que simplesmente permaneceu calado, à espera do banho que o libertaria de toda aquelas secreções e sangue. Toda a gente o adorava! Era o mais querido no infantário, pois raramente chorava, e os pais diziam que era a perfeição numa criança, pois não fazia birras, não gritava, e percebia quando não lhe iam dar o que queria. Por vezes sentiam tal qualidade como algo estranho, mas no momento seguinte davam graças a deus, especialmente quando viam os filhos dos seus amigos em berreiros que incomodavam toda a gente, em birras que irritavam o mais calmo santo… Quase que nem valeria a pena falar do extremo amor que os professores sentiam por esta criança que, sentada na quarta fila, não fazia barulho, levantava sempre a mão pedindo para falar, e tinha um desempenho nos exames que, apesar de não ser brilhante, era bonzinho e bastante regular.

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Todavia… ninguém compreendia isto, mas não era muito popular entre os seus amiguitos… Simplesmente não gostavam dele. Entenda-se. Não é que desgostassem da criança… simplesmente não gostavam… o português tem que se lhe diga… Continuando, não era muito popular entre os seus amigos, muito devido ao simples facto de não se identificar, nem sentir qualquer prazer nas brincadeiras que estes tinham entre si. “Qual é o prazer em andar a correr uns atrás dos outros? Só se cansam, e mesmo que apanhem a outra pessoa… para quê?...” – pensava, enquanto fazia as suas palavras cruzadas, sentado num canto, no recreio. Certo dia, porém, foi chamado à realidade por uma menina da sua classe. Andava no terceiro ano.

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- Porque é que não brincas nunca connosco?! – perguntou a menina.

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- Porque não gosto. É estúpido andarem sempre uns atrás dos outros! Não serve para nada.

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- E às escondidas?

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- Oh… P’ra quê? Esconder-se dez minutos, é uma seca…

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- Então porque é que fazes isso? – perguntou Beatriz, apontando para o caderninho de palavras cruzadas e sopa de letras – Também não serve para nada!

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Ele não se lembra muito bem do que respondeu. Talvez por querer apagar o sentido que aquilo fazia, talvez por ter medo de admitir que, talvez, no fundo, simplesmente era diferente… Sempre o soubera, mas considerava essa diferença como algo de bom, algo que o distinguia. Mas naquele momento, em que Beatriz, com o delgado dedo apontando o caderno, lhe colocara aquela pergunta, algo percebeu…

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De qualquer maneira, apesar de, como dissemos, essa popularidade não ser abundante, não era uma pessoa completamente isolada. Tinha alguns amigos, e quanto mais os anos passavam, mais se aproximava duma pessoa normal. Porém, a relação que as pessoas tinham consigo eram diferentes das relações que tinham entre si. Não havia tantas brincadeiras, risadas. E este nosso personagem, chamemos-lhe Feliz, não era muito feliz. Ria-se, claro que se ria, ele era velho, não era desprovido de sentimentos, e ficava triste, por vezes, mas o que se sentia mais era irritado. A irresponsabilidade das outras pessoas fazia-o ir aos arames. Não percebia como é que, sendo ele, e tendo sempre sido, tão responsável com os outros, estes não o conseguiam ser consigo.

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- Foda-se é tão fácil! Como é que perdeste aquilo? Como é que não planeaste melhor o tempo? – eram as frases mais populares do Sr. Feliz…

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A VIDA do Sr. Feliz foi passando. Tinha alguns amigos, ainda que nas condições já referidas, era respeitado e tido como muito competente em tudo o que fazia. Às custas desta mesma competência, subiu na VIDA sem dificuldade, e aos 60 anos, podia gabar-se de ser rico e de ter uma grande família. Contudo. Não pensava muito. Não pensava muito porque, todos sabemos, pensar pode doer. Fazia a sua VIDA, dia após dia, olhava para o espelho apenas para se barbear, e nunca se sentava a pensar no que realmente gostava, nunca pensava acerca de quem realmente gostava. Ia seguindo o seu rumo, numa espécie de instinto, agindo, e sempre da melhor maneira, de acordo com o que a VIDA lhe dava.

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Poder-se-á chamar ao Sr. Feliz alguém bem sucedido na VIDA? O que é certo é que morreu, um dia. A sua família e amigos choraram por ele, mas os adjectivos que usavam para o descrever era como alguém justo, competente, inteligente. Nunca usavam adjectivos como feliz, simpático, nunca diziam que era alguém de bem com a VIDA. Claro que não diziam o contrário, igualmente. É mais fácil nomear o que existe do que aquilo que nunca existiu…

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A VIDA dele passou, e ele morreu de velho.