quinta-feira, 5 de junho de 2008

Velho

Era uma vez um senhor que já nasceu velho.

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- Querido, as águas rebentaram! – anunciou Isaura, sua mãe, certo dia. Tomavam café em Vale de Cambra, o dia era de Verão, e era o dia ideal para ter um filho. Sim, o dia ideal. O sol aquecia, as pessoas andavam contentes, tudo estava bom, e perfeito. A correria iniciou-se e num instante estavam no hospital. Não custou muito a sair, e passados uns breves minutos, ouvia-se um choro. Porém, o choro durou pouco. O bebé terá tomado consciência que não fazia tanto sentido chorar se estava a começar a viver, pelo que simplesmente permaneceu calado, à espera do banho que o libertaria de toda aquelas secreções e sangue. Toda a gente o adorava! Era o mais querido no infantário, pois raramente chorava, e os pais diziam que era a perfeição numa criança, pois não fazia birras, não gritava, e percebia quando não lhe iam dar o que queria. Por vezes sentiam tal qualidade como algo estranho, mas no momento seguinte davam graças a deus, especialmente quando viam os filhos dos seus amigos em berreiros que incomodavam toda a gente, em birras que irritavam o mais calmo santo… Quase que nem valeria a pena falar do extremo amor que os professores sentiam por esta criança que, sentada na quarta fila, não fazia barulho, levantava sempre a mão pedindo para falar, e tinha um desempenho nos exames que, apesar de não ser brilhante, era bonzinho e bastante regular.

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Todavia… ninguém compreendia isto, mas não era muito popular entre os seus amiguitos… Simplesmente não gostavam dele. Entenda-se. Não é que desgostassem da criança… simplesmente não gostavam… o português tem que se lhe diga… Continuando, não era muito popular entre os seus amigos, muito devido ao simples facto de não se identificar, nem sentir qualquer prazer nas brincadeiras que estes tinham entre si. “Qual é o prazer em andar a correr uns atrás dos outros? Só se cansam, e mesmo que apanhem a outra pessoa… para quê?...” – pensava, enquanto fazia as suas palavras cruzadas, sentado num canto, no recreio. Certo dia, porém, foi chamado à realidade por uma menina da sua classe. Andava no terceiro ano.

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- Porque é que não brincas nunca connosco?! – perguntou a menina.

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- Porque não gosto. É estúpido andarem sempre uns atrás dos outros! Não serve para nada.

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- E às escondidas?

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- Oh… P’ra quê? Esconder-se dez minutos, é uma seca…

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- Então porque é que fazes isso? – perguntou Beatriz, apontando para o caderninho de palavras cruzadas e sopa de letras – Também não serve para nada!

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Ele não se lembra muito bem do que respondeu. Talvez por querer apagar o sentido que aquilo fazia, talvez por ter medo de admitir que, talvez, no fundo, simplesmente era diferente… Sempre o soubera, mas considerava essa diferença como algo de bom, algo que o distinguia. Mas naquele momento, em que Beatriz, com o delgado dedo apontando o caderno, lhe colocara aquela pergunta, algo percebeu…

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De qualquer maneira, apesar de, como dissemos, essa popularidade não ser abundante, não era uma pessoa completamente isolada. Tinha alguns amigos, e quanto mais os anos passavam, mais se aproximava duma pessoa normal. Porém, a relação que as pessoas tinham consigo eram diferentes das relações que tinham entre si. Não havia tantas brincadeiras, risadas. E este nosso personagem, chamemos-lhe Feliz, não era muito feliz. Ria-se, claro que se ria, ele era velho, não era desprovido de sentimentos, e ficava triste, por vezes, mas o que se sentia mais era irritado. A irresponsabilidade das outras pessoas fazia-o ir aos arames. Não percebia como é que, sendo ele, e tendo sempre sido, tão responsável com os outros, estes não o conseguiam ser consigo.

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- Foda-se é tão fácil! Como é que perdeste aquilo? Como é que não planeaste melhor o tempo? – eram as frases mais populares do Sr. Feliz…

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A VIDA do Sr. Feliz foi passando. Tinha alguns amigos, ainda que nas condições já referidas, era respeitado e tido como muito competente em tudo o que fazia. Às custas desta mesma competência, subiu na VIDA sem dificuldade, e aos 60 anos, podia gabar-se de ser rico e de ter uma grande família. Contudo. Não pensava muito. Não pensava muito porque, todos sabemos, pensar pode doer. Fazia a sua VIDA, dia após dia, olhava para o espelho apenas para se barbear, e nunca se sentava a pensar no que realmente gostava, nunca pensava acerca de quem realmente gostava. Ia seguindo o seu rumo, numa espécie de instinto, agindo, e sempre da melhor maneira, de acordo com o que a VIDA lhe dava.

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Poder-se-á chamar ao Sr. Feliz alguém bem sucedido na VIDA? O que é certo é que morreu, um dia. A sua família e amigos choraram por ele, mas os adjectivos que usavam para o descrever era como alguém justo, competente, inteligente. Nunca usavam adjectivos como feliz, simpático, nunca diziam que era alguém de bem com a VIDA. Claro que não diziam o contrário, igualmente. É mais fácil nomear o que existe do que aquilo que nunca existiu…

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A VIDA dele passou, e ele morreu de velho.

2 comentários:

pedro disse...

Morreu de velho, mas segundo os seus olhos, feliz? muitas vezes não importa a sociedade desde que o individuo se sinta feliz e contente consigo mesmo...mais que tenha conseguido o que sempre desejou...Gostei da ideia da "estória" e dela também :)

Anónimo disse...

Precisamente no dia em que a minha filha nasceu (dia 5) e já lá vão 18 anos :)
Morrer de velho e...não velho. Há aqui um jogo de palavras para muitas "estórias".

Grande abraço