terça-feira, 19 de agosto de 2008

Como Me Sinto

A

Como me sinto… Dizem-me ter dado um passo importante, fulcral, vital na minha VIDA, mas o que mais quero, a cada segundo que passa, é ter o que tinha semanas antes. O que me dizem agarra-se aos meus ouvidos com toda a força pedindo, ora com jeitinho, ora violentamente, para entrar. Quero deixar entrar, e puxo a porta com toda a força que tenho, mas sinto cada esforço como um movimento em vão. Cansa-me, como me cansa. A porta que quero abrir é pesada e está enferrujada, mexendo-se apenas uns centímetros quando a queria escancarada. Desistir do que desisti manifesta-se tão difícil como nadar com um colete de ferro. Sinto no corpo o pedido das benzodiazepinas, e resisto contra a vontade de ceder pela enésima vez. Vou tentando nadar, mas as braçadas são pesadas, e a necessidade de, com um aceno, ao mesmo tempo pedir ajuda torna tudo complicado e inconsequente. Desistir desistindo é difícil. Ter a ajuda que vou tendo a cada dia ajuda, mas ao mesmo tempo deixa-me a sentir-me como um extraterrestre no meio dos restantes residentes… que batalham com os seus problemas psicológicos, quando eu apenas os tenho em lista de espera. Vejo B, minha “irmã mais velha” cheia de força, de energia e boa disposição e, mais uma vez, os sentimentos contraditórios me recordam da sua existência… vejo-a como o personificar duma meta, duma possibilidade, um olhar para algo em que me posso tornar… mas ao mesmo tempo sinto a distância galáctica entre os nossos estados tão assustadoramente grande… grande demais, de tal forma que penso ser, para mim, simplesmente impossível…

B

Como me sinto…ou como me sentia, já que neste momento não faço ideia. Ou não quero fazer ideia, face à notória evidência de que agora me sinto pior que há pouco tempo atrás. Toda a gente gabava o meu progresso, e eu sorria, por dentro e por fora, contente com a constatação daquilo que sentia mudar em mim. Hoje, toda a gente continua a gabar o meu progresso, e eu continuo a sorrir, mas apenas o faço por fora. Esta mudança, que no fundo nada mais foi, quem sabe, que um neutralizar da errónea ideia antes tida, passou-se nas últimas semanas, a uma velocidade que, não sei se lenta, se veloz, sei apenas que sub-reptícia. A verdade é que, quando vi A entrar na Comunidade Terapêutica, vi-me a mim mesma, meses antes… vi aquela imagem de mim que julgava esquecida e que sufoquei num qualquer canto da minha memória… Magra, muito magra, os olhos a querer fechar a toda a hora, o silêncio como carrasco e o nulo como constante. O corpo já a não necessitar de substâncias mas ainda assim a pedi-las. A mente, pobre mente, completamente às escuras, sem saber o que fazer. Falo com A, vezes sem conta tentando incentivá-la e ajudá-la a abandonar esse funcionamento. Quem sabe mais para me ajudar a mim, mas o seu olhar vazio não me escuta, e só me apetece gritar-lhe aos ouvidos, garantindo assim a sua atenção. Ou tentando, já que não consigo ter garantias de si. Porém, não deixo transparecer, não sei porquê, esta súbita fraqueza e vulnerabilidade recentemente adquiridas. Talvez admitir, ou falar disto num grupo ou em aconselhamento, seja dar ainda mais um passo atrás… Ouço os meus próprios pensamentos e penso que eles sim representam, não um passo atrás, mas que a realidade é que não dei tantos em frente.

C

Depois do almoço, como todos os dias, retiramo-nos para fumar um cigarro. Com a Primavera ao virar da esquina e o Inverno esquecido, os sorrisos são mais abertos e as gargalhadas mais sonoras. Mas esta é estranhamente sonora. Não sei se é o nível, o tom, o que é… mas apenas confirma o que já há algum tempo imaginava. Quinze anos de toxicodependência, mais outros quinze, já livre, de trabalho com toxicodependentes, acabam por nos dotar com algumas características não raramente infalíveis. Os residentes voltam para dentro, e B, já com o olhar descansado, e por isso mesmo reflexivo e distante, deixa-se ficar, iniciando o seu segundo cigarro, sentada a admirar a sua caneca de café.

- Podes baixar a guarda agora…. – digo, sentando-me a seu lado. O seu olhar é de surpresa, e nasce um sorriso amarelo.

- Como? – pergunta.

- Sei como te sentes. Já passei por isso, não precisas de esconder. Nem de mim, nem de ninguém, e muito especialmente, de ti – tenta interromper, imagino para dizer que não sabe do que estou a falar, mas o meu olhar pede mais um minuto de antena – Sabes… não foste a única a perceber as semelhanças entre ti e A. Assusta, não assusta? – volta a assumir a postura que assumira quando se julgara sozinha. O seu verdadeiro eu tem permissão para respirara uns minutos.

- O que é que faço? – pergunta, perdida.

- O que é que tens feito?

- Nada. não percebo isto que se está a passar. É frustrante! Pensava que estava num lugar comigo completamente diferente! E agora parece que me vejo… ao espelho, de cada vez que olho para A. e… sinto-me a regredir.

- Pois eu sinto-te progredir…

- Como assim? – pergunta-me, notoriamente sem saber o que quero dizer.

- Se aprendi alguma coisa, em 30 anos a lidar com drogas, é que simplesmente não existe algo como um percurso perfeito em recuperação… e quando tudo corre bem, sem mácula, com um desempenho notável… acho que quer dizer que tudo vai mal. Porque se estás aqui, é porque há merda aí dentro… merda de que precisas de falar, de deitar cá para fora! E a razão pela qual digo que acho que estás a progredir é que começaste a sentir, começaste… a ver-te na minha perspectiva…

B

Ficamos a falar mais uns minutos, até que tive de ir lavar o chão dos corredores. C. surpreendera-me duma maneira que não achava possível. Como é possível sermos tão transparentes quando julgamos que estamos a ludibriar toda a gente?... Odiei-o por me ver tão bem, mas a verdade… disse-me o que eu já sabia, e fez-me ver que o progresso, a minha recuperação, não está em querer tudo perfeito dentro de mim, mas aceitar o que não está… tentar melhorar e conseguir… falhar e aprender a lidar com isso…

Como me sinto. Triste. Triste pelo tempo perdido a tentar mostrar aos outros uma imagem minha que não era real. Mas fe… mas contente por o ter percebido a tempo. E feliz por estar agora numa posição tão melhor para ajudar A., mostrando-lhe que o meu percurso também é difícil. Mas juntas, todos juntos, chegaremos a bom porto…

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Vivo!

Sigur Rós - Gong

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Mysen. No meio do nada, comigo mesmo como companhia, a alma que me habita ao meu lado e a música de Sigur Rós dentro de mim. Sento-me na sebe branca de madeira e a música cresce. Cresce. Cresce e sinto-a entrar dentro de mim. Fecho os olhos e um arrepio imenso e interminável entra dentro de mim. Quero sair! Quero sair e correr e nunca mais parar. Quero ficar aqui e apreciar o céu azul às onze da noite. Quero voar e quero parar. Quero sair. Sinto os pelos dos meus braços eriçarem-se e sinto-me plenamente vivo. Quero sair do meu corpo e voar, e beijar, e abraçar. Quero fazer tudo o que posso num momento, quero ficar parado a sentir a VIDA lamber as minhas veias. O coração não acelera mas a mente dispersa-se. Sinto-me plenamente vivo. Como uma pequena partícula dum organismo infinitamente maior, que quer elevar-se, experenciar cada detalhe da existência fugaz e injusta a que temos direito. Quero viver! Quero chorar, sorrir, quero sentir! Estou sozinho, mas não estou sozinho. Um oceano de questões, sensações, medos e sentimentos habitam-me e quero dar atenção a cada um, amá-los, tê-los como meus e agradecer-lhes por me darem VIDA.

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Quero viver! E vivo, plenamente dentro de mim aceito tudo o que tenho para me dar, satisfeito por tudo o que sinto… Se sinto amor não sinto ódio, se sinto saudade não sinto a satisfação da presença, se sinto paz não sinto fúria. Não me interessa, quero sentir, seja o que for, quero sentir. E sinto-o. Sinto tudo, sinto a satisfação de olhar para dentro de mim, a insatisfação de não ter tudo o que quero e a satisfação de possuir o que tenho. Sinto-me plenamente vivo!

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Positivo [Estória Experimental]

Um dia, o Positivo matou-se.

- É um dia triste para todos nós – anunciou a jornalista – Foi encontrado morto em sua casa… Paulo Olívio Soares Ilha, mais conhecido pelo povo português como o Positivo. Tudo indica que terá cometido suicídio…

- Profissão? – perguntou a senhora do ginásio, ao preencher a ficha de inscrição de Positivo.

- Técnico de Vibrações Positivas. – respondeu o mesmo. A empregada olhou para si com cara de não-sei-o-que-é-isso-mas-deve-ser-uma-engenharia-qualquer, e acabou de preencher a ficha uns minutos depois. E o que era, na verdade, isso de Técnico de Vibrações Positivas?...

- Então e que fazes? – perguntou a senhora, enquanto fazia o gelo rodar e se diluir no Martini Rosso, visivelmente interessada em Positivo.

- Sou Técnico de Vibrações Positivas! – respondeu o personagem desta estória, à espera que a sua companhia lhe perguntasse o que isso era.

- E isso é o quê?

- Basicamente, espalho energia positiva… Trabalho para o governo. Este recebe pedidos de instituições sociais, como orfanatos, comunidades terapêuticas, hospitais, entre outros, para eu passar uma ou duas semanas a trabalhar com eles… o governo envia alguém para aferir a situação e ver quem mais precisa de mim, e eu vou… – respondeu… pela milésima vez na sua VIDA… a cara que recebeu como resposta à sua resposta foi a mesma que já recebera no passado, não mil vezes, mas muitas mais – Não, não sou nenhum bruxo, nem nada do género. Sou normal. Quer dizer, não sei se será bem isso, mas simplesmente sou bom em pôr as pessoas… numa boa onda. E passo uma ou duas semanas (três, em casos excepcionais) em instituições cujo ambiente esteja, ou à beira de rotura, ou com muitos mal entendidos, entre outras coisas, e geralmente consigo aligeirar um pouco, algumas vezes muito e outras completamente, o ambiente… Não faço nada de especial, nem sei porque se passa isto…

Nessa noite, o Positivo levou a sua companhia para casa, e ambos libertaram muita energia. Nessa noite, o Positivo explicou a sua profissão uma das últimas vezes. Não porque foi antes de se suicidar, não foi isso. Mas porque foi pouco depois do governo ter reconhecido, pela primeira vez na história do mundo, a profissão de Técnico de Vibrações Positivas. Após muita resistência por parte deste organismo, e de muita insistência, não de Positivo, que não se importava do nome que lhe davam, mas das instituições que reconheciam o seu trabalho, o governo cedeu, e criou esta profissão, que não só não existia, como dito, em mais nenhum país, bem como era a única profissão no mundo apenas com um profissional. E realmente é estranho… Técnico de Vibrações Positivas…

Tudo começou muito cedo. Não a sua profissão, claro, mas o facto das pessoas perceberem que havia algo de diferente com Paulo. Sempre fora uma criança muito simpática, sabia dizer a palavra certa no momento certo e até as suas palavras erradas era no mesmo momento, o certo. Contudo, talvez o seu maior trunfo fosse esse sorriso. Tinha um rasgado sorriso que irradiava alegria e bem-estar. Claro que apesar de tudo começar muito cedo, ninguém adivinharia que ele, um dia, faria disso uma profissão. Apenas o viam como alguém muito simpático e divertido. Não era melhor, nem pior, que os outros, não era muito mais inteligente, simplesmente era mais… qualquer coisa… qualquer palavra que quem sabe não exista, assim como a sua profissão não existia. Se bem que… positivo, sim, é simples e existe. Fiquemos com positivo. Simplesmente era mais positivo.

Chateava os seus pais, como qualquer pré-adolescente o faz, chateava-se com os seus amigos, como qualquer adolescente o faz, e cometia estupidezes com as suas namoradas, como qualquer jovem adulto o faz. Mas, de uma maneira ou de outra, tudo sempre se recompunha, e nunca quebrava relações com ninguém, a menos que estas se desvanecessem lentamente com o tempo e distância. Mas nunca com uma ruptura. Porque não o queria, e porque, sem o saber, fazia com que os outros também não o quisessem. Costumava dizer aos seus amigos, nos últimos tempos da sua VIDA, em que beijava sorrateiramente a ternura dos quarenta, que talvez tenha ficado pela fase de jovem adulto, e fosse isso que o fazia tão… positivo.

Claro que todas as qualidades são fruto de inveja. Todas. Não por toda a gente, mas haverá sempre alguém que inveja a beleza da Joana, a inteligência do Joaquim ou o dinheiro do Júlio… e, para dizer a verdade, toda a gente invejava esta influência positiva que Positivo tinha com as pessoas. O que é mais curioso é que invejavam a qualidade, mas ficavam por aí, não conseguindo sentir algum tipo de sentimento negativo pelo personagem. Havia quem o quisesse odiar, mas quando na sua presença, duas palavras e três sorrisos subitamente pareciam relativizar as coisas e tornar o ar mais fácil de ser respirado…

Mas um dia, o Positivo matou-se…

Vamos sabendo, ainda que com breves frases (pois isto será uma estória e não um romance) como começou a sua estória. Mas como continuou a mesma?

Sendo que as pessoas tão bem se sentiam na presença de Positivo, este não teve grandes dúvidas acerca do seu futuro. Faria isto de profissão. Seria um psicólogo. Os seus pais torceram o nariz. Tinham outros planos para si, mas a sua mente estava decidida. O seu percurso na universidade foi o dum típico estudante. Ia passando, por vezes boas notas, outras vezes nem por isso, uma queca aqui, uma queca ali, e quando deu por si, tinham passado cinco anos e na sua mão pousava um canudo… que não era um canudo, mas uma folha normal… canudo soa sempre melhor, ainda que o escritor esteja a estragar tudo referindo-o… “Txi, foda-se, para onde foram estes anos todos?...” – perguntava-se Positivo, sem saber o que responder a si mesmo. Era tempo de procurar por emprego, e enfrentava tal empreitada com dificuldade. Não o dizia a ninguém, pois sabia que ninguém compreenderia mas na verdade, sabia que seria favorecido por ter esse… talento. Efectivamente, custara-lhe admitir de si para si, que tinha um jeito especial com as pessoas, mas uma vez que o fez, prometeu a si mesmo que não o utilizaria para benefício próprio. Se algum tempo demorou a aceitar a sua qualidade, muito menos tempo tardou em perceber que o que prometera a si mesmo era impossível de cumprir. Percebeu-o certa noite, no Porto, em que tentava seduzir uma rapariga aparentemente inacessível, mas que eventualmente… aconteceu. E isto deixa-nos na posição ideal para explicar um pormenor acerca do falecido. O seu talento não era o de seduzir. Não era um sedutor. As pessoas sentiam-se bem quando consigo, apenas isso. Os sedutores fazem com que as pessoas se sintam, muitas vezes, algo que não são. Um pouquinho mais bonita, muito mais inteligente, etc. Positivo apenas fazia com que as pessoas se sentissem bem. É simples, não há, na verdade, muito mais a explicar. Pois estava o personagem com esta rapariga, chamemos-lhe, Júlia, e ao sentir a resistência da mesma baixar, pensou se estaria a “usar” o seu talento para a conquistar… estaria? Não sabia. Portanto, qual a única coisa que poderia fazer? Ir embora. Claro que não o fez, e nessa noite houve muita energia de cada um para o outro…

Continuando, não foi difícil encontrar emprego pois acabou por ser convidado para trabalhar no sítio onde tinha estagiado. Um orfanato, para ser mais preciso.

- Pá, isto já não era o mesmo sem ti…

Passou-se um ano, passaram-se dois, e quis o destino… ou melhor. Quis a inevitabilidade das coisas, já que teria de acontecer mais cedo ou mais tarde, que alguém de fora reparasse no talento de Positivo.

- Ele é tão simpático! Mas não é graxa, percebes?

- Sim, sim Julieta! E então?

- Olha, fofa, e então – respondeu Jacinta, sacudindo a farinha do seu pastel de feijão. Estavam sentadas na sala de chá da primeira, envergando os seus vestidos aos quadrados que, em conluio com o penteado, presenteavam quem tal teatro observasse, o cliché do que é ter irmãos com filhos – acho que ele é a pessoa ideal para discursar na nossa festa de angariação de fundos! – podíamo-nos questionar se foi aqui que alguém colocou um revolver na mão de Positivo, e o disparou, à Kurt Cobain, debaixo do queixo… mas não terá sido… Aconteceria mais cedo ou mais tarde. Quis isso a inevitabilidade.

Escusado seria dizer, foi um sucesso. Claro que este talento de Positivo não era algo que se espalhasse às massas, portanto os seus ouvintes, apesar de gostarem do personagem, não se sentiram de imediato completamente cativados. Isto, claro, até que o foram cumprimentar, e por uns largos minutos não conseguiam sair da sua beira…

- Foda-se ó pá, ‘tás popular! – disse Jaime, num dia de Outono. Positivo estava no quarto-de-banho a defecar, e por isso o seu amigo e companheiro de trabalho teve de gritar.

- O quê?

- ‘Tava a dizer que ‘tás popular! – repetiu Jaime, quando Positivo voltou da casinha.

- Então?

- Nesta semana chegaram duas propostas para duas palestras e uma outra para visitares um orfanato em Vale de Cambra.

- Vale de Câmara?

- Cambra!

- Isso é onde? – perguntou Positivo, realmente curioso.

- Sei lá ou o caralho… Ah, espera, diz aqui que pertence a Aveiro…

Positivo percebia, e não percebia o porquê destas chamadas, que rapidamente se tornaram numa constante. Percebia, pois conhecia a sua arte, mas não percebia… bem, porque talvez não quisesse perceber… Tentava ir sempre, pois era algo que o apaixonava, poder contribuir para o bem-estar de crianças que tinham tido menos sorte que os demais.

Dividir o seu percurso em passos torna-se complicado, pois pode ser difícil escolher que acções terão sido passos ou não. Mas se trabalhar foi o primeiro, ser convidado para a primeira palestra, o segundo e convidado para visitar outras instituições, o terceiro… o quarto terá sido quando Positivo foi convidado, pela primeira vez, para passar três dias numa instituição que não um orfanato.

- Orientação de estagiários no Apoio à Vítima?? Que caralho é que tens a ver com isso? – perguntou Jaime, a rir. Jaime abria sempre o correio de Positivo, que não se importava. Jaime era assim.

- Sei lá pá… – mas sabia… “Começou…”, pensou, no mesmo instante. Não sabia se estava contente ou triste. Sentia a pressão em si, e não sabia se tudo aquilo fazia muito sentido. Colocava a si mesmo a questão que, alguns anos mais tarde, muita gente viria a colocar. “Sou um bruxo ou quê?...”. Foi lesto, feliz, ou infelizmente, em descartar esta hipótese. Pois facto é que não disse que não àquele convite, tampouco aos outros que começaram a chover, já não apenas no seu consultório, nas mãos de Jaime, mas também na caixa de correio de sua casa. Sentia cada argumento como uma desculpa reles. Sabia a verdadeira razão por detrás de tudo, mas admiti-lo, ou sugeri-lo… tinha medo da maneira como o poderiam julgar. “Quem é que tu pensas que és?” ouvia os seus ouvidos dizer para bem dentro da sua mente.

Assim, semanas eram planeadas em que Positivo, tentando fazer o máximo que podia sem faltar ao seu trabalho no orfanato, encetava tarefas como orientação de estagiários, sessões de esclarecimento de relações interpessoais (umas das célebres desculpas), supervisão, entre muitas outras. Como dito, permanecia no orfanato, e isso obrigava-o a fazer todo este trabalho extra em horário pós-laboral, nos fins-de-semana ou então, porque tinha de ser, faltando…

Eis que o quinto e penúltimo passo… não… se pintar o tecto do seu quarto de vermelho-sangue foi o último, este quinto passo terá sido o antepenúltimo… eis que o quinto e antepenúltimo passo da sua VIDA nos termos em que está a ser contada se aproximava gigantemente, até que o abraçou, e fê-lo duma maneira tão forte, que Positivo não teve como dizer adeus. Nem quis. Recebeu uma carta do Ministério da Saúde a pedir uma audiência. Dessa vez não penso “Começou”, por duas razões. A primeira, prende-se com o facto de que tudo tinha já começado e a segunda com o facto de nunca ter antecipado o que lhe ia ser proposto. Daí ter ficado quase tão surpreso como ficou quando, alguns anos mais tarde, lhe propuseram a atribuição do estatuto de Técnico de Vibrações Positivas.

- Gostaríamos que abandonasse o seu posto no orfanato e trabalhasse directamente para o Ministério da Saúde. – propôs o engravatado.

- Hã? Como? A fazer o quê? – perguntou Positivo, que estava de ressaca, por acaso.

- Como Supervisor de Rendimento. Todos os meses vai estar em sítios diferentes, sem fugir muito à sua zona de residência. Isto é, viajará por toda a Delegação Regional do Centro. Quero dizer, todos os meses damos-lhe o seu plano, consoante o sítio onde achemos que seja necessário intervir. Que diz?

- Hum… não sei… nem sabia que isso existia…

- Mas existe…

- Então… mas seria mais ou menos o que já estou a fazer, mas a tempo inteiro, certo?

- Mais ou menos…

- Então… porque é que me estão a pagar três vezes mais? – perguntou Positivo, olhando para o contracto que aguardava, impacientemente, a sua assinatura. Os engravatados riram entre si e tentaram partilhar o mesmo riso com o personagem, que lhes devolveu uma pergunta muda.

- Bem… – começaram, percebendo que estava a ser genuíno – Você está, para todos os efeitos, a subir na carreira.

Positivo começou então esta nova etapa na sua VIDA. Todos os meses davam-lhe um novo roteiro, de todos os sítios que teria de visitar. As desculpas, ou pretextos, para a sua visita apresentavam-se de todas as formas. Seminários, orientação, supervisão, entre muitos outros, e o nosso amigo fazia das tripas coração para dar o melhor de si, e isso, felizmente, funcionava. Porém, é justo dizer que não eram raros os dias em que chegava a casa completamente esgotado. Por vezes chegava ao seu apartamento nos arredores de Lisboa, por volta das 20h, e ia directamente para a cama, sem sequer jantar. A sua conta bancária, satisfeita, dava a ilusão que tudo corria bem, apesar de Positivo raramente ter oportunidades de gastar o imenso dinheiro que ganhava. Estava a ficar rico, mas o dinheiro sentava-se, imóvel, pedindo um pouco de contacto, que o personagem não tinha oportunidade de dar. Assim andou por uns três ou quatro anos, até que as diversas instituições que visitava, cansadas das desculpas que tinham de inventar, e cansadas da maneira como poderiam rentabilizar tão mais a presença de Positivo se este não tivesse de se ocupar com actividades fachada propostas pelas mesmas, começaram a pressionar o Ministério para a atribuição de um novo estatuto para Positivo. Inicialmente, pediam apenas para que trabalhasse como um agente livre, que fizesse o que, na hora, achasse mais conveniente junto de cada instituição. O governo, obviamente, não queria dar esta liberdade. Muito a explicar a muita gente, não se poderia simplesmente ter alguém como agente livre, era necessário um monte de papelada a explicar as funções deste indivíduo.

Certo dia, os pássaros preparavam-se para abandonar Portugal, com suas malas feitas e despedidas agendadas, João, director dum CAT em Torres Vedras, enquanto tomava uma Água Castelo com gelo e uma rodela de limão, teve a ideia que nós conheceremos como o penúltimo passo na VIDA de Positivo.

- Técnico de Vibrações Positivas? Você está a brincar connosco? – perguntaram os engravatados. Eram uns cinco ou seis, sentados em fila, cada um com a sua pasta a seu lado, como o estereótipo assim ordena.

- Não estou a brincar – retorquiu João – Toda a gente sabe que é isso que ele faz! Ele tem uma técnica qualquer que ainda ninguém conseguiu descortinar e que deixa, simplesmente um melhor ambiente onde quer que vá! – e pronto, foi o início desse longo processo que, após um ano e meio se deu mais ou menos por concluído. Mais ou menos pois durante outro meio ano seria uma experiência. Mas “first things first”, como diriam os nossos amigos ingleses. Não soa tão bem em português… as primeiras coisas primeiro…

- Técnico de quê?? – perguntou, abismado, Positivo, naquela noite. Estava sentado em sua casa a ver televisão, e tinha acabado de receber a visita de João, alguém com quem trabalhava frequentemente, mas de quem não era, propriamente, amigo. Daí que tenha estranhado o convite que João fez a si mesmo de aparecer. Tinham passado seis meses desde a visita deste aos engravatados. Apesar de, como sabemos, ainda terem mais doze meses pela frente antes da aceitação, esta pessoa empreendedora começava a perceber que era uma possibilidade, e só aí contactou Positivo, que permanecera, até então, na mais escura sombra no que a este assunto diz respeito.

- Sim! Vá, você sabe que é verdade, por isso não se faça de surpreendido! Ouça, eu ando em negociações com aqueles gajos há meses, e hoje demos um passo gigante pá, eles ‘tão a pensar avançar com isto… – disparava, entusiasmado, João. Positivo, sentado no seu sofá, num dos poucos momentos que tinha livres, bebia uma cerveja, comida tremoços, e via o Benfica-Estrela. Via, pois deixou de ver. Mesmo depois de João ter abandonado o seu apartamento, os olhos do personagem continuaram pregados ao pequeno ecrã, mas a sua mente apalpava terreno um pouco por todo o lado, digerindo a novidade. “Técnico de Vibrações Positivas… foda-se…”, pensava, incrédulo. Estava contente, mas estava renitente. Tinha medo. sentia-se bem em ajudar, mas nos últimos tempos chegava a casa um pouco cansado de dar o melhor de si. Pois afinal de contas, e não obstante o seu talento, também se sentia triste, por vezes. E quem é que uma pessoa triste anima? Ninguém, a menos que falemos daquele grupo de pessoas cuja maneira de se animar é sabendo que há alguém numa pior situação… E como, para a maioria das pessoas, uma pessoa triste não é muito animadora, Positivo dava o melhor de si para contrariar os seus próprios sentimentos, encenando sorrisos, encenando a sua própria realidade interna.

À medida que o tempo passava, Positivo sentia a energia crescer ao seu redor. Não a energia que ele, ok, espalhava, mas a energia, o fulgor de todos com quem trabalhava que, conscientes do processo por que Positivo passava, não podiam esperar pelo novo estatuto. Se nesses momentos sentiam a ajuda incrível do nosso amigo, ainda que “desperdiçando” o seu tempo com meros… ensinamentos, a ideia do que poderia acontecer, do que poderiam receber uma vez que a sua única função fosse melhorar o ambiente estava para lá dos seus sonhos…

Assim, uma belo dia, em que os pássaros permaneciam calados, Positivo, ao chegar a Santarém, onde daria uma acção de formação sobre ética do trabalho, vê, na instituição que visitaria, um número anormal de carros. Mais, muitos mais. Entra, não vê ninguém… sobe a escadas, respira fundo e, ao abrir a porta, vê largas dezenas de pessoas, que desatam a gritar “parabéns”! Tinha acontecido. Ele percebeu de imediato, questionando-se como o Ministério poderia alinhar em algo assim, e deixou-se levar pela euforia que via ao seu redor, festejando… sem perceber que as pessoas ao seu redor muito mais alegres estavam com a novidade do que o próprio Positivo.

- Como é que foi isto tudo, pá? – pergunta Positivo a João. Estavam na varanda do Centro de Saúde de Santarém a fumar um charuto trazido pelo amigo.

- Olhe…

- Olha… já é alturinha de nos tratarmos por tu, não achas? – interrompe Positivo, com um sorriso.

- Ok, ok. Pá é o seguintecomo te fui dizendo, fomos batalhando com o Ministério para que te libertasse de todas essas tretas que andavas a fazer… ok, ok, eram, e são importantes – corrige João, devido ao olhar de Positivo – mas a questão é que qualquer pessoa as pode fazer… Sendo assim marcamos várias sessões com os gajos, em que vinha sempre alguém diferente, duma instituição diferente, servir, vá lá, como uma testemunha do teu desempenho… Eles aceitaram, mas estamos com rédea curta…

- Como assim?

- Todos os sítios onde fores vão ser alvo de monitorização… vão passar testes de rendimento antes e depois das tuas visitas, fazer entrevistas, visitas surpresas, etc… Isto porque os primeiros seis meses serão um período experimental… Ah, e os gajos da televisão querem falar contigo! – alertou.

- O quê? ‘Tás a gozar! Para quê?? – perguntou, incrédulo, o nosso amigo a poucos minutos da fama…

- Que é que achavas? Que o Ministério cria uma posição que não existe em mais lado nenhum no Mundo e ninguém vinha fazer perguntas? Não marquei nada por ti, mas não estranhes se amanhã fores interpelado por eles no Ministério.

- Que é que eu vou fazer ao Ministério? – perguntou o personagem.

- Foda-se pá, parece que andas na lua. A partir da próxima semana tens uma profissão nova! Não sei quanto vais ganhar, mas tenho a certeza que vão ser balúrdios, cabrão… Mas isto para dizer que o resto desta semana tens não sei quantas reuniões no Ministério… – largou João. Positivo não conseguia perceber como tudo isto acontecera à sua margem… Nem imaginava que tal fosse possível. O que é certo era que, se dependesse de si, manter-se-ia como Supervisor de Rendimento, ou mesmo “mero” psicólogo. Afinal de contas, quem era ele para se achar digno da posição de Técnico de Vibrações Positivas?... São tempos estranhos…

Esses 6 meses de experiência acabaram por se resumir a 4 até que a nova posição de T.V.P. foi oficialmente admitida. Facto é que os dados obtidos através do inúmeros testes foram muitos reveladores do desempenho de Positivo. Tanto que muita gente no Ministério chegou a pensar que se tratava de resultados arranjados, pelo que convocaram inúmeras reuniões e entrevistas com as pessoas com quem Positivo trabalhava, como forma de averiguar a veracidade dos resultados obtidos. Reuniram-se também várias vezes com o personagem, factor que muito influenciou para o aceleramento de todo o processo.

Tudo isto resultou numa mediatização que nunca esperou acontecer. Era convidado várias vezes para falar na televisão, tinha uma rubrica semanal numa estação de rádio e os convites para visitas a instituições inundavam a sua caixa de correio. Tinha acordado que apenas seguiria aqueles que o Ministério encaminhasse, pelo que lhe custava ter de dizer que não a alguns. Porém, sem muita gente saber, lia todos, e por vezes não conseguia resistir a aceitar. Era um erro, era sempre um erro, mas um erro que ele cometia várias vezes. Era um erro pois havia sempre alguém que sabia, e quando confrontado com uma rejeição, trazia ao assunto a visita não oficial de Positivo a determinado sítio… Além de toda esta comoção tinha, quase todos os dias, ao chegar a casa, pessoas à sua espera, que queriam tomar café consigo, conversar, muitas vezes entrar… A sua VIDA estava a acontecer a uma velocidade impressionante, e quando deu por si, estava a trabalhar uma média de 14h por dia… Isto pois, como não podia estar com toda a gente a toda hora, decidiu abrir um consultório. Recebia grupos de pessoas não muito grandes em blocos de 45 minutos, quinzenalmente, e cobrava cerca de um terço do que outro psicólogo cobraria. Mas era demasiado.

Dava o máximo que podia de si, tinha sucesso, todo o sucesso que alguém pode desejar, e pelas melhores razões, pois este advinha do simples facto de tornar as pessoas ao seu redor mais felizes, a sentirem-se melhor. Contudo, sentia que nunca era o suficiente. A cada dia tinha mais pessoas a pedirem a sua presença, pedidos esses a que Positivo continuava a aceder muito mais do que deveria… Por isso, ia deixando de viver a sua alegria que tanto o caracterizava, de si para si, vivendo com um sentimento latente e constante de um cansaço perturbador e pesado. Passava os seus dias esquecendo a dor e ausência de prazer que sentir dentro de si, empurrando para o fundo estes sentimentos, para que pudesse assim ser o melhor, apesar de único, a fazer o que fazia… Progressivamente ia deixando de sentir prazer em ajudar as pessoas, em fazê-las felizes, pois a cada vez que observava um resultado do seu trabalho, os pedidos multiplicavam-se e a constatação da miséria que existia ao seu redor e que, nem ele nem provavelmente ninguém, conseguiriam concertar era demasiado massacrador. Não se permitia sonhar, pois a realidade das coisas era demasiado óbvia…

Por isso um dia, o Positivo matou-se.

Abandonou o Hospital de Setúbal nessa tarde… o sentimento de dever cumprido era algo que já não conhecia muito bem. Da viagem de 4 minutos até ao seu carro, 3 pessoas o interpelaram. Não conseguia, não tinha tempo. Tinha, a começar no espaço de uma hora, em Lisboa, sessões de terapia de grupo que se arrastariam até às 21h.

Quando saiu do seu consultório, a ideia de que não teria ninguém à sua espera em casa seria, por um lado, perfeita, e por outra a constatação da VIDA horrível que vivia… por um lado, pensava em não ter ninguém à sua porta de casa a pedir minutos do seu tempo, o que seria bom e relaxante, uma vez que fosse… por outro lado, pensava em não ter ninguém à sua espera dentro de casa, apenas o pesado vazio, o pesado sentimento de solidão que preenchia os poucos momentos em que estava sozinho. A VIDA que levava não lhe permitia manter uma relação. Sem o saber, Positivo tinha optado, fazia muito tempo, em fazer as pessoas ao seu redor felizes, antes de se fazer a si mesmo. Pensou, ingenuamente, que tudo seria possível, mas não foi.

Assim, chegou a casa nessa noite, e as paredes relembravam-no constantemente que mais ninguém ali esperava por ele. O pensamento bailava na sua mente, como tantas vezes antes o tinha feito. Em tantas vezes antes, Positivo fez tudo menos puxar o gatilho. Os rostos dos seus colegas, das crianças com quem trabalhava costumavam fazê-lo parar. Ninguém sabe, nem saberá o porquê de, naquela vez, não o terem feito. Positivo chorava, sentado na sua cama, com o cano encostado à sua pele. A dor era demasiado forte, e sentia-se esgotado, sem forças, sem Energia…

No dia seguinte ao anúncio que chocou Portugal, a mesma jornalista, anunciando o funeral duma das pessoas mais queridas do povo português, concluiu a notícia que tinha dado no dia anterior.

- Confirma-se que Positivo, Paulo Olívio Soares Ilha, cometeu suicídio. As autoridades não quiseram adiantar mais quanto ao método, mas vizinhos falam de terem ouvido um disparo. Podemos ainda dizer que… – voz treme e esforça-se por não chorar. A mesma jornalista tinha, certa vez, entrevistado a fantástica pessoa que fora Positivo… – Junto do corpo de Positivo foi encontrado um bilhete dizendo apenas… “Sempre tentei dar tudo o que podia. Mas devia ter dado apenas tudo o que podia”.

FIM