quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Quero

a ouvir Radiohead - Bodysnatchers [clique para o link]

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Que passeio delicioso é esta VIDA! Apetece-me saltar para um qualquer lado desconhecido. Sobreviver às custas de sorrisos, comer lamentos desnecessários. Correr em cima de carros, beijar estranhos e fugir, deitar-me na estrada e adormecer a sorrir. Lembrar-me de tudo o que tenho e fiz e embrulhá-lo num estranho embrulho de alegria. Fazer merda a torto e a direito, pensando apenas no próximo segundo, estalar o verniz da sociedade que me olha de soslaio por não me perceber. Ser o verdadeiro rebelde sem causa, o mau exemplo que ninguém deve seguir. Foda-se como me apetece ser de tudo um pouco. Desfazer-me em elogios aos transeuntes, beijá-los com uma gargalhada e dar-lhes uma palmada nas costas. Dançar todo nu o mais estúpido dos tangos, numa bebedeira sem elixir nem consequência. Partir-me a rir e com vontade, até me doer a barriga, e rebentar em lágrimas sem aparente razão. Quero sentir coisas estranhas e sem grande significado, quero sentir vulcões e euforias dentro de mim, deixar-me mal disposto e querer vomitar num exercício de não compreensão da beleza que cada segundo tem. Quero olhar para um relógio e adivinhar o próximo segundo, pará-lo na impossibilidade de tal acontecimento, ficar fodido com a desilusão. Quero envelhecer, não quero envelhecer. Que se foda, quero alguma coisa. Quero sentir a vontade e a necessidade de querer coisas que não tenho sem me preocupar porquê. Viver a essência de momentos irrecuperáveis e morrer de tristeza face a constatação da sua brevidade.

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Quero querer e querer o mais que possa sem me arrepender. Quero querer e não ter porque o não ter.

sábado, 22 de novembro de 2008

Não

Amiina – Rugla
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Não me perguntes como me sinto se não te sei responder. Sinto o meu estilo crescer, sinto-me mudar, sinto a minha pessoa saltar níveis, perdida à procura daquilo que eras para mim. Sinto a minha alma à deriva em sentimentos que pareço já não ter. Por isso não quero que me perguntes nada. Silencia-te mais um ou dois anos, quem sabe com o passar do tempo esqueço o que é sentir de todo e não preciso de te mentir. Quem sabe com o tempo esqueço quem sou, quem fomos, e não seja nada mais do que a imagem ilusória que guardamos num canto qualquer.
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Não fales comigo nem me questiones. Continua a brindar-me com a tua diária presença, os teus lendários carinhos e a tua infinita atenção. Sê como sempre foste para mim por favor. Não mudes, ou terei de pensar se ainda gosto de ti. Não mudes pois assim é mais fácil. Não mudes para poder viver agarrada a tudo o que juntos criamos, sem consciência da VIDA que sempre aconteceu fora da nossa rotina…
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Não me faças sentir velha. Não me faças sentir que o vestido de princesa que me ofereceste quando nos conhecemos já não me serve. Não me faças sentir que nada mudou, ou que tudo mudou… não me faças sentir de todo, e quem sabe assim o sorriso que vês se possa mais aproximar da realidade ilusória que é o que vai dentro de mim. Não me faças sentir que as rugas se aproximam e o sentimento esvanece. Não me faças, sobretudo, fazer o que agora faço, colocando as tuas defeituosas qualidades num papel e olhá-las com tristeza.
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Não quero fazer nada mas as linhas aparecem diante de mim. Sento-me frente à máquina de escrever, o teu vivo corpo a dois metros, no mesmo sítio de sempre, com uns indesejados pontos de interrogação a circundá-los ávidos, quais abrutes esfomeados. Não quero fazer nada mas as perguntas que trago comigo e tento afogar são demasiado pesadas. Não as consigo fazer ir embora, não me consigo, acima de tudo, fazer ir embora. A porta é demasiado pequena e o futuro demasiado incerto. Olho com saudades para o passado em que não pensava, em que apenas existia e tudo era perfeito. Quero sorrir de boca cheia, sentir que te amo, quero, como nunca, não pensar em mais nada a não ser no que fazer no próximo segundo…

domingo, 16 de novembro de 2008

Fá-lo

Fá-lo, meu querido, fá-lo. Não tenhas pressa, estou aqui ao teu lado. Abraça-me no teu abraço sôfrego e luzidio. Aperta-me nos teus braços dourados e diz-me que tudo vai correr bem, que um segundo é tudo aquilo que poderíamos desejar. Pára o tempo um bocadinho, eu sei que podes. Pára o tempo e deixa-me existir à vontade neste segundo, deixa-me ser eu só para ti, deixa-me abrir os braços e sentir quem és.
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Abraça-me devagarinho e pede-me o que não posso dar. Não vou dizer que não. Fala comigo baixinho, deixa-me adormecer. Deixa-me dobrar o tempo, deixa-me dobrar o espaço, deixa-me fazer tudo o que é impossível e que me permita abrir os olhos só mais um bocadinho. Sente a minha pele a envolver-se na tua, sente o meu sentimento crescer, acalma-o, desafia-o, beija-o. Deixa-me afundar-me em ti e percorrer tudo aquilo que não me contaste. Deixa-me saber o que não queres que saiba. Tem calma, não digas uma palavra. A minha fortaleza é o teu olhar que, atento, me despe de mim. Fá-lo. Faz desaparecer da minha alma tudo o que não sou. Descola a pouco e pouco as partes de mim que me afastam de quem és. Funde-te comigo. Lentamente conseguimos. Sofre comigo.
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Fecha os olhos e entra comigo onde nunca quiseste entrar sozinho. Agarra-me e não me deixes cair. Agarra-me até que me doa, mas agarra-me com calma. Aperta-me devagarinho, faz a minha pele queixar-se, dá-me beijos pequeninos. Fala com os meus lábios, abre os meus olhos e olha para nós. Podes esticar o tempo um bocadinho. Estica esse segundo, congela-o, não me interessa o que faças, mas fá-lo. Fá-lo com calma.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

JR

Ryan Farish – Pacific Wind

Penso vezes sem conta na minha decisão. Disseco cada segundo do meu passado e tento viver de novo o momento em que decidi vir, sair, para poder fazer diferente. Vejo os meus dedos a beijar o teclado, os meus olhos passearem pela proposta de dois meses em Balsall Common, esse pedaço de desconhecido que, a alguns milhares de quilómetros de distância, me tenta seduzir. Quero saltar para esse passado para poder escolher diferente. Odeio-me por isso. Odeio-me por o querer fazer e estranho-me totalmente por saber que não o faria, tivesse eu mais mil viagens a esse momento…

Penso no meu dia-a-dia, penso nas ilusões que alimentei e em como em tantos casos não mais que isso foram. Ilusões e promessas de algo diferente. Penso no meu dia-a-dia, mas volto a pensar. Concentro-me nas palavras que me dizem, nos conselhos que me dão. Fazem-me sentido. Sentir esta dor que sinto e o massacrador peso da saudade criará uma Rita diferente. Alimenta a minha VIDA com estórias, alimenta o meu ser com pensamentos, que me inundam e me deixam confusa. Percorro o meu caminho de todos os dias, divertida aprecio o clima intermitente inglês, que ora me brinda com viscosas gotas de água que servem apenas para destruir o meu penteado, ora oferece aos meus olhos a magnífica visão dos bravos raios solares ganharem a dura batalha que é oferecer um pouco de calor a quem por terras britânicas se aventura. Penso no meu dia-a-dia… mas volto a pensar. Paro uns segundos que, gozões, em minutos se transformam enquanto enrolo um doce cigarro, e entrego-me à estrada e às dezenas de metros que me separam de onde posso ser um pouquinho mais feliz. Ouço Ryan Farish, sinto a minha alma dançar um pouquinho com a sua melodia, à medida em que me sento na sebe de madeira molhada. Fecho os olhos e quero ser tudo o que me rodeia. Sinto-me pequenina mas extremamente importante para o equilíbrio do mundo que me abraça. Penso no que por vezes me dizem, e na incompreensão que me mostram acerca de como posso gostar tanto de algo tão simples. O cheiro a lavanda da planta que apanhei minutos antes agarra-se aos meus sentidos, o verde que tenho diante de mim faz-me feliz. Penso e volto a pensar. Penso em como sei que, no final, tudo valerá a pena. As pequenas batalhas do dia-a-dia, por mais que custem passar parecem desaparecer, ou transformar-se, nos momentos em que me vejo apenas comigo, no meio de tudo o que mais amo, a natureza que não faz mal a ninguém. Penso, penso, penso. Não consigo, tampouco o quero, deixar de o fazer. Os pensamentos misturam-se com imagens de sorrisos caseiros nunca esquecidos, e a vontade de voltar volta a fazer-se sentir. Entrego-me ao futuro e vejo-me chegar, descendo, imperial, as escadas do avião, alguns artigos na mala e nada além de orgulho na bagagem. Vejo os rostos dos meus amigos e vejo-me chorar de alegria por os ver. Penso se realmente pensarei, ou terei consciência do importante que isto está a ser para mim, e da maneira como recordarei os dias aqui passados, para sempre. Penso no porquê de me sentir triste por ter finalmente deixado o berço, se sempre o quis fazer. É difícil, e a resposta afigura-se difícil. Queria tê-la diante de mim, quem sabe um pedaço de verdade traria consigo alguma paz e sossego. Sim, traria alguma paz e sossego, mas tenho 20 anos, que farei com paz e sossego?

domingo, 9 de novembro de 2008

Jovem

XX

- O que temes? – perguntou-me o doce e apaparicado menino de vinte anos.
- O que temo? – respondi, tentando ganhar algum tempo para responder a sua inteligente questão. Sorriu-me, dizendo-me sem se pronunciar que não repetiria a questão. Fechei os olhos, beijei-o mais uma vez, e tentei explicar-lhe, com um subtil olhar, os milhares de quilómetros que nos separavam. Não me respondeu, sentindo eu que a minha inexistente resposta não chegara à sua atenção. Como explicar o que se teme, quando se batalha por não o querer saber? – Porque tens de pensar tanto nas coisas, e não podes simplesmente abraçar este momento? – respondi, fugindo à sua questão, enquanto pegava no seu braço e o impelia a me acariciar, suavemente, o pescoço.
- Porque já não consigo viver sem ti. Já não consigo sobreviver com a mera ideia de que o que se está a passar é apenas uma louca aventura. Já não me consigo agarrar à excitação que me dava estar com uma mulher casada trinta anos mais velha que eu… – disse-me, cruamente. O peso das suas inocentes palavras apenas acentuaram o peso das minhas rugas. Começava a nascer algo que eu própria nunca havia previsto, e que se revelava assustadoramente real. Se por um lado tentava zombar dos sentimentos do pobre jovem, tentando mostrar-me a mim própria como passiva e intocável, por outro lado receava admitir que o que ele dizia era o que eu pensava vezes sem conta. Esticava ao máximo as horas em que estava na sua presença, sofria como nunca quando longe. Já deixara de o ver como “o meu jovem” e já o via como… “o meu homem”. Deus, como me é estranho dizer isto!...
- Queres agarrar-te a quê? – pergunto, brincando com o seu cabelo. Temo a sua resposta. Seja o que for, não vou gostar. Seja aquilo de que não goste, o passado que implicou, o presente que implica ou o futuro que pode implicar. Cada desfecho é assustador, cada alternativa relembra a possibilidade de tudo o que se passou entre nós ser um erro.
- Quero assumir o que temos, ou desaparecer, ou fazer alguma coisa! Fazer alguma coisa que nos permita estar juntos sempre que nos apetecer, sem estas mentiras e arranjos… – diz, elevando-se. Estava deitado na cama, de barriga para baixo, agora olha-me doutra perspectiva, com os cotovelos apoiados no confidente colchão. Vejo o seu olhar carregado de algo que me parece uma mistura de desespero com esperança. Não faço a mínima ideia do que lhe responder. O que eu queria fazer era largar tudo, e assumir, para poder, como ele diz, estar junto de si a toda a hora…
O que tenho a favor é “apenas” um ponto, o que tenho contra são inúmeros. E como pode apenas este ponto colocar numa situação tão frágil tudo o resto? Como podem algumas coisas, por mais simples que sejam, ser tão poderosas a ponto de nos fazerem questionar tudo? Admito que me perturbaria imenso saber que as pessoas falavam de mim na rua. Sei que a ele não, é romântico e jovem… e isso é outro pormenor que me faz afastar terrivelmente a possibilidade de termos um futuro.

XY

- Tu não queres estar comigo… – diz-me, tristemente. Preparava-me para uma rejeição, mas esta frase… não sei bem em que categoria a posso incorporar dentro de mim…
- Que queres dizer com isso? – pergunto. Tento apanhar o seu olhar, puxá-lo para mim para quem sabe mexer na sua opinião, mas olha algures que não para mim…
- Tu tens a VIDA toda pela frente! Tens a universidade, paixões para viver, erros para cometer… eu estou no processo completamente invertido… estou a descer…
- Mas – tento interromper.
- A cada segundo que passa sentes mais VIDA dentro de ti, eu sei-o bem. Mas eu, a cada segundo que passa, sinto menos VIDA dentro de mim! E não penses que vou querer roubar-te um segundo da tua jovialidade…

XX

- Mas será que não posso ter algo a dizer em relação à minha própria felicidade? – pergunta-me, quase irritado – É quase certo que se ficares comigo, não vou viver toda a minha VIDA do teu lado! – faz uma pausa, imagino que ganhe coragem para dizer o que tem a dizer – Provavelmente morrerás muitos anos antes de mim, e a minha VIDA continuará. Mas isso está tão longe… Já é tarde demais para procurar o meu primeiro amor! Encontrei-o em ti, e não ficarmos juntos vai apenas deixar-me amargurado!
- Mas
- Não há “mas” que possas dizer! É a verdade… – impossível saber a razão que tenho, o sentido que as suas palavras fazem em mim. Se ouvisse a mesma estória contada por outras pessoas, o que sinto dentro de mim seria estúpido e irresponsável. Mas a diferença que vai entre o que nos contam e o que sentimos será sempre, ela mesma, estúpida, e eventualmente sem sentido. A decisão que eu quero tomar é apenas uma. Desaparecer. Assumir, admitir, seja o que for, e entregar o meu amor ao jovem de 20 anos que sente tal sentimento pela primeira vez… É difícil, como é, afastar a maneira como o mundo, por detrás do meu ombro, espreita cada jogada e opção que tomamos, mas a minha vontade é uma…

XY

O desespero que sinto quer explodir em lágrimas. Aguento-as, sinto que isso apenas a relembraria da minha tenra idade, sinto que viajasse instantaneamente ao primeiro momento, em que eu não era um homem aos seus olhos, mas um interessante rapaz. Sei a sua resposta.
- Tudo bem, querido, tens razão. – diz-me, passeando seus dedos pelo meu braço. Sinto adrenalina inundar o meu ser, e a eventualidade da minha previsão estar errada deixa-me perto do êxtase – Vamos assumir o que temos, e ser felizes tanto quanto possamos!

XX

Dei voz aos sentimentos que tinha dentro de mim e senti-me estranhamente confortável e feliz perante a ideia de futuro que se começava a desenhar. Porque não? Tenho 50 anos e ele tem 20, mas será isso assim tão errado? Sou casada, e isso é errado de acordo com quem gere as nossas VIDAS e tomas as nossas decisões. Mas não será mil vezes mais errado viver em relações cujo sentimento é um mero nada a que nos agarramos? Sim. Será difícil, mas vê-lo, a um metro de mim dá-me o conforto e a energia para enfrentar tudo o que terei de enfrentar. A ideia de o ter comigo sempre que quero, a ideia de poder pousar em si os meus olhos é apenas um milhão de vezes melhor que a tristeza de lhe dizer adeus para sempre. O futuro não será tão longo assim, mas o presente será bestial…

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Como O Mundo Avançou

um

A

Foi num Domingo. Era de manhã, creio que por volta das dez e qualquer coisa… Tinha acordado fazia pouco tempo, e punha café a fazer. Tomaria banho de seguida. Estávamos em Maio e a temperatura era agradável. Ouvia Getaway Car, dos Audioslave… O telefone tocou algures enquanto eu caminhava da cozinha para a sala.

B

- Ele acordou!! – gritei, com um sorriso viajante e um tom que, apesar de muito elevado, nunca exagerado. Dava a notícia à única pessoa no mundo que eu sabia que ficaria tão contente quanto eu com a novidade, e isso unia-nos eternamente, apesar do tempo passado.

C

- Quanto tempo… estive… em coma? – pergunto – Onde está a A.? –tudo o que me passava pela cabeça relacionava-se com estas duas questões. Quanto tempo estive fora? Dois meses, seis meses, um ano?? Fiz A. perder muito tempo da sua VIDA, esperando por mim? Esperou por mim? Noto como me custa algo tão simples como falar, algo tão simples como pensar. Sinto-me terrivelmente cansado, sinto-me terrivelmente ansioso, sinto-me, acima de tudo, destreinado de sentir. Quando tempo estive fora?

D

Quando A. me ligou, não pude acreditar. Não pude acreditar como, ao ouvi-la pronunciar aquelas duas palavras, tanto entrei em contacto com a minha natureza animal. Como pode ser possível que eu tenha ficado triste ou desiludido pelo meu amigo ter acordado de um coma? Acho que chorei, e ninguém estranhou, pensando que as lágrimas que viam correr eram de alegria, quando representavam nada mais que um misto de desilusão comigo mesmo, traição ao meu melhor amigo, o constatar de que nunca poderia ter A. para mim, que o tempo que esperara por ele fizera sentido… que o tempo que eu esperara por ela nenhum fez…

dois

A

Quando treinamos tanto tempo sentimentos e reacções, encontramo-nos completamente sem saber como acontecer quando surpreendidos pelo esperado. O choque foi tal que me recordo de tantos pormenores do que fazia antes, mas não faço ideia do que respondi a B…. O momento de que me recordo presenteia-me a imagem de um espelho choroso, de uma pessoa a chorar compulsivamente. Sentia que podia finalmente libertar duma vez toda a mágoa e tristeza acumulada. Não precisava já de disfarçar que acreditava que acordaria, de vestir sorrisos, de me dar falsas esperanças. O meu amor tinha acordado… não me senti mal por ter tantas vezes duvidado se alguma vez o faria. Não me senti mal pois isso nunca me impediu de o visitar quase todos os dias, não me impediu de dizer não a D., por mais que me custasse, por mais que, no fundo, me apetecesse dizer que sim…
Fiz a viagem com calma. Não porque queria ser cuidadosa para nada me acontecer agora que estava tão perto de o ver. Não por isso, mas porque sentia uma ansiedade inexplicável rebentar dentro de mim. Sentia-me… e isto sim, custa-me admitir… sentia-me como se fosse encontrar um desconhecido por quem me tinha apaixonado através de… cartas, ideias, imagens… Levava comigo as memórias de todos os bons tempos passados, a que me agarrava com unhas e dentes, com medo de esquecer o amor, agora que o tinha de volta.
Vi-o. Vi-o e tudo rebentou. Mais uma vez não aguentei o choro, não aguentei nada, e simplesmente desabei sob o seu corpo, no mesmo sítio dos últimos tempos, mas com alguém a habitá-lo. Senti-o tocar-me, e tudo voltou.

B

Quando vi o meu filho de olhos abertos, com os mesmo pregados em mim, senti as minhas lágrimas correrem pela sua cara. Ignorei a sua cara de surpresa ao olhar com mais atenção para mim, agradeci a deus por estar presente nesse momento. Abracei-o com força, como o abracei… Abracei-o com força, senti os seus delgados braços tentarem, frustradamente, fazer o mesmo, senti a sua mente confusa e sem saber.
- Mãe, que se passou? – perguntou-me, baixinho. Como é que passei tanto tempo imaginando como seria quando acordasse, pensando em tudo o que faria, e nunca me passou pela cabeça como lhe explicaria?... Que se passou?
- Filho, tu tiveste um acidente. Foi muito grave. Lembras-te de alguma coisa?
- Não sei… não me lembro da última vez que conduzi… – responde, após um olhar carregado de pensamento – Quanto tempo estive em coma? – perguntou, a medo.
- Não, filho, tu não ias a conduzir. Ias para casa com o D. Era uma Quinta, final da tarde. Num cruzamento houve um carro que… não parou – sinto algumas lágrimas quererem estragar o ambiente. Empurro-as para dentro – e bateu no vosso. Foi uma sorte não terem morrido os dois…
- Que aconteceu ao D.?
- O D. partiu algumas costelas e estalou a coluna. Quase ficou paralítico… Mas agora está óptimo!

C

Agora… quando é agora? Quando vi a minha mãe, senti esse agora como algo muito longe e perdido. Vi entrar pela magra porta do hospital a mesma cara de sempre, a mesma cara que me acolheu há não sei quantos anos atrás neste mundo, mas vestida de um rosto mais pálido, triste, e rugoso. Vi como os anos deslizaram, e saltei na minha mente para um estado em que não queria saber o tempo que havia passado.
- Não sei… não me lembro da última vez que conduzi… Quanto tempo estive em coma? – ouvi alguém dentro de mim perguntar, para minha surpresa. O medo fez-se sentir de uma forma estranha e inquietante. Vivendo numa dormência de sentimentos constante, cada um era sentido como novo e misturava-se entre as definições aprendidas… O rosto envelhecido da minha mãe disse o que os seus lábios não tiveram coragem de admitir. Foi muito.
Tentava focar-me no que me era dito, relembrado, mas queria apenas ver B. diante de mim. Queria saber se tinha esperado por algo que era tudo menos certo. Sentia o reboliço de emoções sem nome dançar no meu interior, sentia os meus pensamentos como contraditórios. Se por um lado queria que estivesse feliz, por outro queria que estivesse à minha espera nesta espécie de eternidade.
- O D. partiu algumas costelas e estalou a coluna. Quase ficou paralítico… Mas agora está óptimo! – não queria continuar, por mais um segundo que fosse, na minha ignorância. Agora que penso nisso, protegido pela segurança dos anos que me separam desses momentos, percebo a confusão que sentia dentro de mim. Queria, não queria, sentia, não sentia, sabia, não sabia…
- Mãe, quando tempo estive em coma? – perguntei, tentando ser o mais sério e veemente possível. Enfrentei o seu olhar com o meu, prendendo a sua atenção e exigindo um número. Tinha de saber o mais cedo possível. Tivesse sido o tempo que tivesse sido, cada segundo agora era precioso, e o domínio do não-saber era um luxo a que não me podia dar.
- Sete. – ouvi a voz, à minha direita, dizer. Ao olhar para a sua face, não consegui distinguir anos ou expressões. Toda ela era as minhas lágrimas. Correu para mim e explodiu no meu peito, abraçando-me e chorando. A minha saudade era artificial. Como podia sentir a sua falta se apenas a tinha a uma noite de sono de distância. A minha memória estava confusa o suficiente para poder parecer que tinha adormecido a seu lado e que agora a via ao acordar. O vazio dos anos que sentia era para mim, tal como a saudade, artificial, algo que eu não sabia se sentia porque sentia, ou se sentiria algo completamente diferente se me dissessem que tinham sido sete dias.
A. beijou os meus lábios secos, chorou por eternos momentos e disse que me amava.

D

Algum tempo depois de tudo, A. falou-me da dificuldade que tem tanto treinar e imaginar reacções e posteriormente desempenhar esse papel… Hoje não me recordo do que lhe disse mas o que senti ainda hoje sinto vez por vez. Senti como completamente injustas e estúpidas as suas palavras… Estúpidas porque estar dentro de mim naqueles momentos foi das coisas mais difíceis que alguma vez tive de enfrentar. Ver C., o meu amigo de infância, sorrir, despertava uma alegria imensa… que rapidamente era manchada pela imagem quase satânica de ver A. do seu lado, a sorrir igualmente, feliz por ele estar de volta. Tremia, tinha medo de tudo o que pudesse dizer, de tudo o que pudesse fazer. Mas sabia que conseguiria esquecer o idílio que era ter A. para mim, que conseguiria abandonar uma ideia que nunca tinha tido nada para ser real, e que tudo voltaria ao normal.

três

A

Uma vezes desfeitos os sorrisos, veio o silêncio. Tinha diante de mim alguém que não conhecia. Como seria possível que tanto tivesse mudado se nada na verdade tinha acontecido? Como pode o nada ser tão forte a ponto de mudar tudo?
Depois de C. acordar, depois da surpresa deixar, lentamente, o meu corpo, vieram as obrigações. O constante cuidado, as viagens para a fisioterapia, as perguntas intermináveis acerca do que tinha acontecido… o tanto para dizer que se atropelava e não passava no final de um triste soluço. Acho que apenas contava com o sacrifício da espera, imaginando que tudo seria rosas daí em diante. Acho que talvez achasse que tinha sido castigada o suficiente, que ele, sem culpa nenhuma, tinha-me arrancado o passado… e sentia uma injustiça cruel ao ver o presente desaparecer dia após dia, juntando-se a essas memórias que fazia por esquecer…
Sentia-me cruel, sentia-me desprezível, e via o seu olhar de incompreensão como pesados fardos que tentava aguentar, numa tarefa impossível que era ser para ele tudo o que tinha já sido. Os meus últimos anos nada tinham a ver com o que ele era. Quem eu era, a pessoa em que me tinha transformado, susceptível à nem sempre triste erosão do tempo manifestava-se em desalinho com a pessoa que ele deixara no tempo.
As decisões acerca do que fazer foram tomadas por mãos que não as minhas. Mas não conseguia deixar de me ver nos bastidores, sem maldade mas com intenção, a manejar as minhas incontroláveis reacções, e acabar por ser eu a decidir, sem o fazer, o que fazer connosco.

B

Ver os olhos tristes dele era quase tão difícil e pesado como os ver fechados. Com o passar do tempo, face a dura realidade do que via, sentia nascer dentro de mim um ódio por A. que não conseguia compreender. Tentava ouvir a minha própria e suposta voz da razão. Tentava equilibrar o meu interior, procurando perceber o porquê do que via acontecer. Mas não conseguia, nunca consegui. Os olhos dele sempre falavam mais alto do que alguma coisa que eu conseguia ouvir. Os olhos dele sempre me mostravam o cinzento que ia dentro de si, as perguntas sem resposta, a espera…
Eventualmente, o que começou num acidente, acabou aparentemente acidentalmente.

C

O fim pode ser mais pesado que a terrível consciência do tempo. Não sei quanto tempo dura um fim. Se escassos milésimos de qualquer coisa, se dias, meses, sete anos… Hoje, não sei se tudo acabou no momento em que o carro embateu na minha alma, se quando os zangados olhos de A. massacravam a minha pele, se quando tudo se materializou numa palavra…
A paixão sentida no dia em que acordei abraçou-me de uma forma estranhamente reconfortante. Uma vez u… não. Ia dizer uma vez ultrapassado o choque… mas acho que nunca ultrapassei realmente o choque de ter perdido sete anos da minha VIDA, e com eles o meu primeiro amor. Passei, isso sim, por períodos. Tantos que já não lembro. Com o passar do tempo, sentia-me a alternar. Ora me sentia conformado e vazio, feliz por ter sobrevivido, desesperado com vontade de desaparecer…
Passados os primeiros momentos, em que os nossos olhares falavam por nós, as palavras revelavam-se arrastadas e forçadas. Eu tinha curiosidade acerca de tudo o que se tinha passado, e sentia a vontade de A. em me contar, mas a dificuldade em o fazer. No meu interior, muitas vezes sentia-me zangado, triste, revoltado… como seria possível que tanto tempo se tivesse passado, e por vezes me apetecesse perguntar-lhe se também tinha estado em coma…
O seu olhar castigava-me frequentemente. Sentia-me estranhamente culpado por ter estado tanto tempo distante. Sentia-me vulnerável e frágil, dependente de si, e sentia isso como injusto… sentia como injusto porque não queria pedir mais que os sete anos que me tinha dado, e sentia como injusto pois A. fazia, sem o querer, por mo recordar constantemente. Algo se tinha perdido, e os anos que desapareceram de mim acabavam por se revelar importantes apenas por significarem a perda de uma relação que em tempos julgara perfeita…
Como pode o tempo ser tão importante? Como pode algo tão relativo determinar termos tão absolutos? Se os sete anos passaram para mim como uma noite de mau sono, como podem ter passado como décadas para A.?... Estas questões inundavam qualquer pensamento que tinha, revelando-me algo que eu fazia por afastar, por negar.
As discussões, quando existiam, eram marcadas por tudo o que não era dito. Via as frases em todo o lado menos nos seus lábios. Queria ouvi-la dizer que estava farta, que tinha de seguir o seu caminho, mas nunca acontecia… As palavras ficavam suspensas no ar, apenas eu as via, apenas eu as sentia doer…

D

- Que foi? – perguntei, ao vê-la chorar. Abraçava-se a mim com força, e sentia o seu choro como exagerado. Não sei porquê, não conseguia imaginar o que quer que fosse que fosse justificativo…
- O C. acabou com tudo! Com tudo… – respondeu, entre soluços. A surpresa foi tanta que, recordo-me, não tive a certeza que tinha ouvido correctamente.
- Acabou?... com…
- Sim, disse para eu seguir o meu caminho… – não fazia a mínima ideia de como me sentir… Não me sentia feliz, porque dois amigos meus tinham acabado um relacionamento, não me sentia triste, porque dois amigos meus tinham acabado um relacionamento. Hoje percebo as suas razões, mas ao ouvir A., que entre lágrimas me contava o sucedido, uma onda de incompreensão tomava conta de mim e um ódio que não queria sentir toldava a minha visão. Só pensava na injustiça que era A. ter esperado tanto tempo por C., apenas para este, passado uns meses acabar com tudo, deixando-a de rastos…
Porém, como disse, hoje percebo. Não sei quando foi a última vez que vi o meu amigo. Talvez há quatro, cinco anos… Ainda vejo partes de si, apesar de que cada vez menos. Vejo partes de si em olhares esporádicos e perdidos de A., vejo partes de si no meu dia-a-dia que conta com a presença de alguém que foi, em tempos, eternamente sua. Hoje percebo o quanto lhe custava ver o olhar triste de alguém que já tinha abdicado de tanto, o quanto ele sentia que não lhe podia pedir para o continuar a fazer. Talvez simplesmente A. não pudesse colocar um final enquanto C. dormia, e talvez tenha tido a cobardia de o fazer quando este acordou, obrigando-o a oferecer-lhes as palavras que, sem querer, A. tanto queria…