terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Rita

Pego numa flor, cheiro. Abro tudo o que posso de mim e deixo-a mergulhar no meu olhar com intensidade. A tontura que sinto em nada se assemelha à loucura que é respirar outro ser. Passeio lentamente pelos campos ingleses e viajo com a palma das mãos deslizando entre os pequenos arbustos. O frio que sinto é estranho e desconfortável, mas ao mesmo tempo apelativo. Pede-me para ficar, pede-me para ficar duma forma que nem entendo nem me esforço por entender. As palavras por vezes fazem mais sentido quando desprovidas de lógica nem verdade. Deito-me nas tuas palavras perdidas e adormeço, saltando de planeta em planeta até estar junto de ti.
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Sonho. Sonho algo que passou, aconteceu, tive e não terei. Sonho com os meus próprios olhos cor de fogo, alegres e tempestivos, beijados pelo teu toque caloroso. Vejo-te a ver-me, olhar para os meus longos cabelos ruivos, a minha pele branca e feroz, o meu olhar perdido e nunca inocente. Vejo-te aproximar de mim, esticar os braços e pedir um ou dois segundos. Sem roupa nem pecado entrego-me a ti, viro do avesso as promessas do tempo, tomo as piores decisões e embriago-me das tuas lágrimas.
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Acordo. A luz morre lentamente, o sol escapa-se um pouco, segundo a segundo, até desaparecer completamente, deixando um aroma não mais de frio confortável mas gélido e desesperado. Não tenho nada a fazer senão voltar para casa. A flor que cheirei, que matei, jaz nua no chão, ao meu lado, tremendo com questões, questionando o meu tremor.
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Açambarco tanto quanto possa de tudo o que o mundo tem para me dar, na esperança de que esta overdose de sentimentos, ideias e sensações me possa fazer esquecer por alguns segundos a tua imagem cruelmente vincada. Nada sou senão o nosso passado.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Pedro [Tristeza]

Há tristezas que são quentinhas. Como que um cobertor leve e confortável, mascarando-se de um par de dias, de um par de horas. Afunda-nos apenas o suficiente para podermos pensar com outra mente. Encolhemo-nos um bocadinho e, do nosso novo canto, podemos ver quem somos duma forma mais apurada, mas ainda assim enviesada. Vemos algumas coisas que fazemos, que somos, como estranho e sem grande sentido. Como é uma tristeza apenas quentinha, como não é fria, gélida, permite-nos sorrir como quem não quer a coisa, achar-nos piada, achar-nos um bocado estúpidos mas ingénuos.
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Ouve-se, classicamente, uma música nada alegre, para prolongar mais um pouco o sentimento que dizemos não gostar de sentir. Deus nos livre de admitirmos que por vezes gostamos de estar tristes. Seria terrível… sorrio. Fecho os olhos e deixo a melodia amarelada entrar por mim adentro. Encosto a cabeça na parede de estranha tinta atrás de mim e deixo-me levar, por uns segundos, para dentro de mim. Às vezes, uma parte mais preguiçosa de mim gosta de não gostar da euforia. Tudo seria muito mais fácil se tivéssemos apenas um caminho a seguir. Deus, que seria de nós apenas com uma estrada, sem decisões… Entendo estes meus pensamentos. Não fico assustado, ou nervoso, porque sei que deixar em palavras questões que apenas esporadicamente me habitam não me acostumará a esta normalidade aborrecida. Sei que daqui a uns segundos, minutos, horas, a alegria do não saber voltará, como sempre o faz. Mas… que dizer? Por mais fortes que nos sintamos em relação a uma ideia, a uma filosofia ou modo de estar, que significaria se não o questionássemos de vez em quando? Não seria algo cego e sem sentido? Que são das ideias sem questões? E a minha questão de agora prende-se única e exclusivamente com a infinidade de estradas que vejo, ou gosto de ver, diante de mim. Vejo estender-se à minha frente mil e um futuros, cada um me seduzindo por diferentes razões, cada um me afastando terrivelmente. Sei apenas que não escolherei não escolher. Sei apenas que, faça o que fizer, sempre o verei, em mim, como ir para algum lado, mais do que fugir doutro sítio qualquer. Ai, não sei… É estranho quando certas certezas que temos de repente decidem que afinal… não é bem assim. Mas como sabe tão bem ter razões para esta tristeza quentinha… Como sabe bem saber que temos tudo à nossa frente… Não interessa a idade, o quando, o porquê… Nada interessa senão o tudo de que nunca abdicaremos. Vejo esta tristeza quente como a irmã e amante incondicional da euforia da indecisão. Abraça-me e não me deixes, ou deslizarei a caminho da nulidade de tudo saber…

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Não Sei

Que saudades tenho do mundo que inventámos… Posso dizer-te com precisão a última vez em que te vi, o último beijo que te dei, o último passo que dei nessa fantasia, caminhando em direcção ao sempre conhecido. Vivo, neste segundo em que escrevo, ora no passado ora no futuro, seja na última vez que te sorri, seja na próxima que me sorrirás.
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Tenho saudades da complexa simplicidade da dimensão que inventamos segundo após segundo e onde mergulhamos sem pensar no que pode acontecer. Mergulhamos fundo, bem fundo, sem nunca saber se o ar nos nossos pulmões será suficiente para voltar à superfície. Pensei duas vezes nesse risco, sabes? Quem engano… pensei mil vezes nesse risco, mas hoje penso mil vezes em como valeu a pena vivê-lo. Dói-me que o tenha feito, as feridas da tua presença marcam-me como ácido na alma, mas a dor que sinto envolve-me e deixa-me com um triste sorriso que se recorda da tua presença.
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Ai como me apetece chorar! Não me perguntes porquê, por favor, ou poderei dizer coisas que não quero ouvir. Não me perguntes porquê e limita-te a não ler o que agora te escrevo. Tenho saudades tuas como a lua tem da noite. Tenho saudades tuas como tu tens de mim… penso. Desta vez não penso mil vezes. Penso uma, quem sabe duas… forço-me a parar o sacrifício que é examinar o teu sentimento por mim. É-me difícil, mas consigo vivê-lo como algo que, por mais indefinido que possa parecer, será sempre aquilo que é… estranho a minha estupidez ao, num esforço qualquer ao tornear a definição de ti para mim me fico por algo estupidamente vago. Assim me apetece…
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Os dias que me separam de ti, ou dum novo esporádico mergulho no pequeno mundo que criamos, são cada vez menos. Penso se será melhor uma inventada e azul realidade do que a cinzenta existente. Penso nos quilómetros que separarão estas duas, penso em qual delas será aquilo que posso tocar. Porque terá de ser a minha realidade algo que me entregaram? Porque não a posso criar, porque não a posso escolher e abraçar? Estará na consciência da nossa brevidade tudo aquilo que te eleva para mim? Não sei, não sei!

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Quero

a ouvir Radiohead - Bodysnatchers [clique para o link]

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Que passeio delicioso é esta VIDA! Apetece-me saltar para um qualquer lado desconhecido. Sobreviver às custas de sorrisos, comer lamentos desnecessários. Correr em cima de carros, beijar estranhos e fugir, deitar-me na estrada e adormecer a sorrir. Lembrar-me de tudo o que tenho e fiz e embrulhá-lo num estranho embrulho de alegria. Fazer merda a torto e a direito, pensando apenas no próximo segundo, estalar o verniz da sociedade que me olha de soslaio por não me perceber. Ser o verdadeiro rebelde sem causa, o mau exemplo que ninguém deve seguir. Foda-se como me apetece ser de tudo um pouco. Desfazer-me em elogios aos transeuntes, beijá-los com uma gargalhada e dar-lhes uma palmada nas costas. Dançar todo nu o mais estúpido dos tangos, numa bebedeira sem elixir nem consequência. Partir-me a rir e com vontade, até me doer a barriga, e rebentar em lágrimas sem aparente razão. Quero sentir coisas estranhas e sem grande significado, quero sentir vulcões e euforias dentro de mim, deixar-me mal disposto e querer vomitar num exercício de não compreensão da beleza que cada segundo tem. Quero olhar para um relógio e adivinhar o próximo segundo, pará-lo na impossibilidade de tal acontecimento, ficar fodido com a desilusão. Quero envelhecer, não quero envelhecer. Que se foda, quero alguma coisa. Quero sentir a vontade e a necessidade de querer coisas que não tenho sem me preocupar porquê. Viver a essência de momentos irrecuperáveis e morrer de tristeza face a constatação da sua brevidade.

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Quero querer e querer o mais que possa sem me arrepender. Quero querer e não ter porque o não ter.

sábado, 22 de novembro de 2008

Não

Amiina – Rugla
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Não me perguntes como me sinto se não te sei responder. Sinto o meu estilo crescer, sinto-me mudar, sinto a minha pessoa saltar níveis, perdida à procura daquilo que eras para mim. Sinto a minha alma à deriva em sentimentos que pareço já não ter. Por isso não quero que me perguntes nada. Silencia-te mais um ou dois anos, quem sabe com o passar do tempo esqueço o que é sentir de todo e não preciso de te mentir. Quem sabe com o tempo esqueço quem sou, quem fomos, e não seja nada mais do que a imagem ilusória que guardamos num canto qualquer.
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Não fales comigo nem me questiones. Continua a brindar-me com a tua diária presença, os teus lendários carinhos e a tua infinita atenção. Sê como sempre foste para mim por favor. Não mudes, ou terei de pensar se ainda gosto de ti. Não mudes pois assim é mais fácil. Não mudes para poder viver agarrada a tudo o que juntos criamos, sem consciência da VIDA que sempre aconteceu fora da nossa rotina…
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Não me faças sentir velha. Não me faças sentir que o vestido de princesa que me ofereceste quando nos conhecemos já não me serve. Não me faças sentir que nada mudou, ou que tudo mudou… não me faças sentir de todo, e quem sabe assim o sorriso que vês se possa mais aproximar da realidade ilusória que é o que vai dentro de mim. Não me faças sentir que as rugas se aproximam e o sentimento esvanece. Não me faças, sobretudo, fazer o que agora faço, colocando as tuas defeituosas qualidades num papel e olhá-las com tristeza.
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Não quero fazer nada mas as linhas aparecem diante de mim. Sento-me frente à máquina de escrever, o teu vivo corpo a dois metros, no mesmo sítio de sempre, com uns indesejados pontos de interrogação a circundá-los ávidos, quais abrutes esfomeados. Não quero fazer nada mas as perguntas que trago comigo e tento afogar são demasiado pesadas. Não as consigo fazer ir embora, não me consigo, acima de tudo, fazer ir embora. A porta é demasiado pequena e o futuro demasiado incerto. Olho com saudades para o passado em que não pensava, em que apenas existia e tudo era perfeito. Quero sorrir de boca cheia, sentir que te amo, quero, como nunca, não pensar em mais nada a não ser no que fazer no próximo segundo…

domingo, 16 de novembro de 2008

Fá-lo

Fá-lo, meu querido, fá-lo. Não tenhas pressa, estou aqui ao teu lado. Abraça-me no teu abraço sôfrego e luzidio. Aperta-me nos teus braços dourados e diz-me que tudo vai correr bem, que um segundo é tudo aquilo que poderíamos desejar. Pára o tempo um bocadinho, eu sei que podes. Pára o tempo e deixa-me existir à vontade neste segundo, deixa-me ser eu só para ti, deixa-me abrir os braços e sentir quem és.
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Abraça-me devagarinho e pede-me o que não posso dar. Não vou dizer que não. Fala comigo baixinho, deixa-me adormecer. Deixa-me dobrar o tempo, deixa-me dobrar o espaço, deixa-me fazer tudo o que é impossível e que me permita abrir os olhos só mais um bocadinho. Sente a minha pele a envolver-se na tua, sente o meu sentimento crescer, acalma-o, desafia-o, beija-o. Deixa-me afundar-me em ti e percorrer tudo aquilo que não me contaste. Deixa-me saber o que não queres que saiba. Tem calma, não digas uma palavra. A minha fortaleza é o teu olhar que, atento, me despe de mim. Fá-lo. Faz desaparecer da minha alma tudo o que não sou. Descola a pouco e pouco as partes de mim que me afastam de quem és. Funde-te comigo. Lentamente conseguimos. Sofre comigo.
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Fecha os olhos e entra comigo onde nunca quiseste entrar sozinho. Agarra-me e não me deixes cair. Agarra-me até que me doa, mas agarra-me com calma. Aperta-me devagarinho, faz a minha pele queixar-se, dá-me beijos pequeninos. Fala com os meus lábios, abre os meus olhos e olha para nós. Podes esticar o tempo um bocadinho. Estica esse segundo, congela-o, não me interessa o que faças, mas fá-lo. Fá-lo com calma.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

JR

Ryan Farish – Pacific Wind

Penso vezes sem conta na minha decisão. Disseco cada segundo do meu passado e tento viver de novo o momento em que decidi vir, sair, para poder fazer diferente. Vejo os meus dedos a beijar o teclado, os meus olhos passearem pela proposta de dois meses em Balsall Common, esse pedaço de desconhecido que, a alguns milhares de quilómetros de distância, me tenta seduzir. Quero saltar para esse passado para poder escolher diferente. Odeio-me por isso. Odeio-me por o querer fazer e estranho-me totalmente por saber que não o faria, tivesse eu mais mil viagens a esse momento…

Penso no meu dia-a-dia, penso nas ilusões que alimentei e em como em tantos casos não mais que isso foram. Ilusões e promessas de algo diferente. Penso no meu dia-a-dia, mas volto a pensar. Concentro-me nas palavras que me dizem, nos conselhos que me dão. Fazem-me sentido. Sentir esta dor que sinto e o massacrador peso da saudade criará uma Rita diferente. Alimenta a minha VIDA com estórias, alimenta o meu ser com pensamentos, que me inundam e me deixam confusa. Percorro o meu caminho de todos os dias, divertida aprecio o clima intermitente inglês, que ora me brinda com viscosas gotas de água que servem apenas para destruir o meu penteado, ora oferece aos meus olhos a magnífica visão dos bravos raios solares ganharem a dura batalha que é oferecer um pouco de calor a quem por terras britânicas se aventura. Penso no meu dia-a-dia… mas volto a pensar. Paro uns segundos que, gozões, em minutos se transformam enquanto enrolo um doce cigarro, e entrego-me à estrada e às dezenas de metros que me separam de onde posso ser um pouquinho mais feliz. Ouço Ryan Farish, sinto a minha alma dançar um pouquinho com a sua melodia, à medida em que me sento na sebe de madeira molhada. Fecho os olhos e quero ser tudo o que me rodeia. Sinto-me pequenina mas extremamente importante para o equilíbrio do mundo que me abraça. Penso no que por vezes me dizem, e na incompreensão que me mostram acerca de como posso gostar tanto de algo tão simples. O cheiro a lavanda da planta que apanhei minutos antes agarra-se aos meus sentidos, o verde que tenho diante de mim faz-me feliz. Penso e volto a pensar. Penso em como sei que, no final, tudo valerá a pena. As pequenas batalhas do dia-a-dia, por mais que custem passar parecem desaparecer, ou transformar-se, nos momentos em que me vejo apenas comigo, no meio de tudo o que mais amo, a natureza que não faz mal a ninguém. Penso, penso, penso. Não consigo, tampouco o quero, deixar de o fazer. Os pensamentos misturam-se com imagens de sorrisos caseiros nunca esquecidos, e a vontade de voltar volta a fazer-se sentir. Entrego-me ao futuro e vejo-me chegar, descendo, imperial, as escadas do avião, alguns artigos na mala e nada além de orgulho na bagagem. Vejo os rostos dos meus amigos e vejo-me chorar de alegria por os ver. Penso se realmente pensarei, ou terei consciência do importante que isto está a ser para mim, e da maneira como recordarei os dias aqui passados, para sempre. Penso no porquê de me sentir triste por ter finalmente deixado o berço, se sempre o quis fazer. É difícil, e a resposta afigura-se difícil. Queria tê-la diante de mim, quem sabe um pedaço de verdade traria consigo alguma paz e sossego. Sim, traria alguma paz e sossego, mas tenho 20 anos, que farei com paz e sossego?

domingo, 9 de novembro de 2008

Jovem

XX

- O que temes? – perguntou-me o doce e apaparicado menino de vinte anos.
- O que temo? – respondi, tentando ganhar algum tempo para responder a sua inteligente questão. Sorriu-me, dizendo-me sem se pronunciar que não repetiria a questão. Fechei os olhos, beijei-o mais uma vez, e tentei explicar-lhe, com um subtil olhar, os milhares de quilómetros que nos separavam. Não me respondeu, sentindo eu que a minha inexistente resposta não chegara à sua atenção. Como explicar o que se teme, quando se batalha por não o querer saber? – Porque tens de pensar tanto nas coisas, e não podes simplesmente abraçar este momento? – respondi, fugindo à sua questão, enquanto pegava no seu braço e o impelia a me acariciar, suavemente, o pescoço.
- Porque já não consigo viver sem ti. Já não consigo sobreviver com a mera ideia de que o que se está a passar é apenas uma louca aventura. Já não me consigo agarrar à excitação que me dava estar com uma mulher casada trinta anos mais velha que eu… – disse-me, cruamente. O peso das suas inocentes palavras apenas acentuaram o peso das minhas rugas. Começava a nascer algo que eu própria nunca havia previsto, e que se revelava assustadoramente real. Se por um lado tentava zombar dos sentimentos do pobre jovem, tentando mostrar-me a mim própria como passiva e intocável, por outro lado receava admitir que o que ele dizia era o que eu pensava vezes sem conta. Esticava ao máximo as horas em que estava na sua presença, sofria como nunca quando longe. Já deixara de o ver como “o meu jovem” e já o via como… “o meu homem”. Deus, como me é estranho dizer isto!...
- Queres agarrar-te a quê? – pergunto, brincando com o seu cabelo. Temo a sua resposta. Seja o que for, não vou gostar. Seja aquilo de que não goste, o passado que implicou, o presente que implica ou o futuro que pode implicar. Cada desfecho é assustador, cada alternativa relembra a possibilidade de tudo o que se passou entre nós ser um erro.
- Quero assumir o que temos, ou desaparecer, ou fazer alguma coisa! Fazer alguma coisa que nos permita estar juntos sempre que nos apetecer, sem estas mentiras e arranjos… – diz, elevando-se. Estava deitado na cama, de barriga para baixo, agora olha-me doutra perspectiva, com os cotovelos apoiados no confidente colchão. Vejo o seu olhar carregado de algo que me parece uma mistura de desespero com esperança. Não faço a mínima ideia do que lhe responder. O que eu queria fazer era largar tudo, e assumir, para poder, como ele diz, estar junto de si a toda a hora…
O que tenho a favor é “apenas” um ponto, o que tenho contra são inúmeros. E como pode apenas este ponto colocar numa situação tão frágil tudo o resto? Como podem algumas coisas, por mais simples que sejam, ser tão poderosas a ponto de nos fazerem questionar tudo? Admito que me perturbaria imenso saber que as pessoas falavam de mim na rua. Sei que a ele não, é romântico e jovem… e isso é outro pormenor que me faz afastar terrivelmente a possibilidade de termos um futuro.

XY

- Tu não queres estar comigo… – diz-me, tristemente. Preparava-me para uma rejeição, mas esta frase… não sei bem em que categoria a posso incorporar dentro de mim…
- Que queres dizer com isso? – pergunto. Tento apanhar o seu olhar, puxá-lo para mim para quem sabe mexer na sua opinião, mas olha algures que não para mim…
- Tu tens a VIDA toda pela frente! Tens a universidade, paixões para viver, erros para cometer… eu estou no processo completamente invertido… estou a descer…
- Mas – tento interromper.
- A cada segundo que passa sentes mais VIDA dentro de ti, eu sei-o bem. Mas eu, a cada segundo que passa, sinto menos VIDA dentro de mim! E não penses que vou querer roubar-te um segundo da tua jovialidade…

XX

- Mas será que não posso ter algo a dizer em relação à minha própria felicidade? – pergunta-me, quase irritado – É quase certo que se ficares comigo, não vou viver toda a minha VIDA do teu lado! – faz uma pausa, imagino que ganhe coragem para dizer o que tem a dizer – Provavelmente morrerás muitos anos antes de mim, e a minha VIDA continuará. Mas isso está tão longe… Já é tarde demais para procurar o meu primeiro amor! Encontrei-o em ti, e não ficarmos juntos vai apenas deixar-me amargurado!
- Mas
- Não há “mas” que possas dizer! É a verdade… – impossível saber a razão que tenho, o sentido que as suas palavras fazem em mim. Se ouvisse a mesma estória contada por outras pessoas, o que sinto dentro de mim seria estúpido e irresponsável. Mas a diferença que vai entre o que nos contam e o que sentimos será sempre, ela mesma, estúpida, e eventualmente sem sentido. A decisão que eu quero tomar é apenas uma. Desaparecer. Assumir, admitir, seja o que for, e entregar o meu amor ao jovem de 20 anos que sente tal sentimento pela primeira vez… É difícil, como é, afastar a maneira como o mundo, por detrás do meu ombro, espreita cada jogada e opção que tomamos, mas a minha vontade é uma…

XY

O desespero que sinto quer explodir em lágrimas. Aguento-as, sinto que isso apenas a relembraria da minha tenra idade, sinto que viajasse instantaneamente ao primeiro momento, em que eu não era um homem aos seus olhos, mas um interessante rapaz. Sei a sua resposta.
- Tudo bem, querido, tens razão. – diz-me, passeando seus dedos pelo meu braço. Sinto adrenalina inundar o meu ser, e a eventualidade da minha previsão estar errada deixa-me perto do êxtase – Vamos assumir o que temos, e ser felizes tanto quanto possamos!

XX

Dei voz aos sentimentos que tinha dentro de mim e senti-me estranhamente confortável e feliz perante a ideia de futuro que se começava a desenhar. Porque não? Tenho 50 anos e ele tem 20, mas será isso assim tão errado? Sou casada, e isso é errado de acordo com quem gere as nossas VIDAS e tomas as nossas decisões. Mas não será mil vezes mais errado viver em relações cujo sentimento é um mero nada a que nos agarramos? Sim. Será difícil, mas vê-lo, a um metro de mim dá-me o conforto e a energia para enfrentar tudo o que terei de enfrentar. A ideia de o ter comigo sempre que quero, a ideia de poder pousar em si os meus olhos é apenas um milhão de vezes melhor que a tristeza de lhe dizer adeus para sempre. O futuro não será tão longo assim, mas o presente será bestial…

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Como O Mundo Avançou

um

A

Foi num Domingo. Era de manhã, creio que por volta das dez e qualquer coisa… Tinha acordado fazia pouco tempo, e punha café a fazer. Tomaria banho de seguida. Estávamos em Maio e a temperatura era agradável. Ouvia Getaway Car, dos Audioslave… O telefone tocou algures enquanto eu caminhava da cozinha para a sala.

B

- Ele acordou!! – gritei, com um sorriso viajante e um tom que, apesar de muito elevado, nunca exagerado. Dava a notícia à única pessoa no mundo que eu sabia que ficaria tão contente quanto eu com a novidade, e isso unia-nos eternamente, apesar do tempo passado.

C

- Quanto tempo… estive… em coma? – pergunto – Onde está a A.? –tudo o que me passava pela cabeça relacionava-se com estas duas questões. Quanto tempo estive fora? Dois meses, seis meses, um ano?? Fiz A. perder muito tempo da sua VIDA, esperando por mim? Esperou por mim? Noto como me custa algo tão simples como falar, algo tão simples como pensar. Sinto-me terrivelmente cansado, sinto-me terrivelmente ansioso, sinto-me, acima de tudo, destreinado de sentir. Quando tempo estive fora?

D

Quando A. me ligou, não pude acreditar. Não pude acreditar como, ao ouvi-la pronunciar aquelas duas palavras, tanto entrei em contacto com a minha natureza animal. Como pode ser possível que eu tenha ficado triste ou desiludido pelo meu amigo ter acordado de um coma? Acho que chorei, e ninguém estranhou, pensando que as lágrimas que viam correr eram de alegria, quando representavam nada mais que um misto de desilusão comigo mesmo, traição ao meu melhor amigo, o constatar de que nunca poderia ter A. para mim, que o tempo que esperara por ele fizera sentido… que o tempo que eu esperara por ela nenhum fez…

dois

A

Quando treinamos tanto tempo sentimentos e reacções, encontramo-nos completamente sem saber como acontecer quando surpreendidos pelo esperado. O choque foi tal que me recordo de tantos pormenores do que fazia antes, mas não faço ideia do que respondi a B…. O momento de que me recordo presenteia-me a imagem de um espelho choroso, de uma pessoa a chorar compulsivamente. Sentia que podia finalmente libertar duma vez toda a mágoa e tristeza acumulada. Não precisava já de disfarçar que acreditava que acordaria, de vestir sorrisos, de me dar falsas esperanças. O meu amor tinha acordado… não me senti mal por ter tantas vezes duvidado se alguma vez o faria. Não me senti mal pois isso nunca me impediu de o visitar quase todos os dias, não me impediu de dizer não a D., por mais que me custasse, por mais que, no fundo, me apetecesse dizer que sim…
Fiz a viagem com calma. Não porque queria ser cuidadosa para nada me acontecer agora que estava tão perto de o ver. Não por isso, mas porque sentia uma ansiedade inexplicável rebentar dentro de mim. Sentia-me… e isto sim, custa-me admitir… sentia-me como se fosse encontrar um desconhecido por quem me tinha apaixonado através de… cartas, ideias, imagens… Levava comigo as memórias de todos os bons tempos passados, a que me agarrava com unhas e dentes, com medo de esquecer o amor, agora que o tinha de volta.
Vi-o. Vi-o e tudo rebentou. Mais uma vez não aguentei o choro, não aguentei nada, e simplesmente desabei sob o seu corpo, no mesmo sítio dos últimos tempos, mas com alguém a habitá-lo. Senti-o tocar-me, e tudo voltou.

B

Quando vi o meu filho de olhos abertos, com os mesmo pregados em mim, senti as minhas lágrimas correrem pela sua cara. Ignorei a sua cara de surpresa ao olhar com mais atenção para mim, agradeci a deus por estar presente nesse momento. Abracei-o com força, como o abracei… Abracei-o com força, senti os seus delgados braços tentarem, frustradamente, fazer o mesmo, senti a sua mente confusa e sem saber.
- Mãe, que se passou? – perguntou-me, baixinho. Como é que passei tanto tempo imaginando como seria quando acordasse, pensando em tudo o que faria, e nunca me passou pela cabeça como lhe explicaria?... Que se passou?
- Filho, tu tiveste um acidente. Foi muito grave. Lembras-te de alguma coisa?
- Não sei… não me lembro da última vez que conduzi… – responde, após um olhar carregado de pensamento – Quanto tempo estive em coma? – perguntou, a medo.
- Não, filho, tu não ias a conduzir. Ias para casa com o D. Era uma Quinta, final da tarde. Num cruzamento houve um carro que… não parou – sinto algumas lágrimas quererem estragar o ambiente. Empurro-as para dentro – e bateu no vosso. Foi uma sorte não terem morrido os dois…
- Que aconteceu ao D.?
- O D. partiu algumas costelas e estalou a coluna. Quase ficou paralítico… Mas agora está óptimo!

C

Agora… quando é agora? Quando vi a minha mãe, senti esse agora como algo muito longe e perdido. Vi entrar pela magra porta do hospital a mesma cara de sempre, a mesma cara que me acolheu há não sei quantos anos atrás neste mundo, mas vestida de um rosto mais pálido, triste, e rugoso. Vi como os anos deslizaram, e saltei na minha mente para um estado em que não queria saber o tempo que havia passado.
- Não sei… não me lembro da última vez que conduzi… Quanto tempo estive em coma? – ouvi alguém dentro de mim perguntar, para minha surpresa. O medo fez-se sentir de uma forma estranha e inquietante. Vivendo numa dormência de sentimentos constante, cada um era sentido como novo e misturava-se entre as definições aprendidas… O rosto envelhecido da minha mãe disse o que os seus lábios não tiveram coragem de admitir. Foi muito.
Tentava focar-me no que me era dito, relembrado, mas queria apenas ver B. diante de mim. Queria saber se tinha esperado por algo que era tudo menos certo. Sentia o reboliço de emoções sem nome dançar no meu interior, sentia os meus pensamentos como contraditórios. Se por um lado queria que estivesse feliz, por outro queria que estivesse à minha espera nesta espécie de eternidade.
- O D. partiu algumas costelas e estalou a coluna. Quase ficou paralítico… Mas agora está óptimo! – não queria continuar, por mais um segundo que fosse, na minha ignorância. Agora que penso nisso, protegido pela segurança dos anos que me separam desses momentos, percebo a confusão que sentia dentro de mim. Queria, não queria, sentia, não sentia, sabia, não sabia…
- Mãe, quando tempo estive em coma? – perguntei, tentando ser o mais sério e veemente possível. Enfrentei o seu olhar com o meu, prendendo a sua atenção e exigindo um número. Tinha de saber o mais cedo possível. Tivesse sido o tempo que tivesse sido, cada segundo agora era precioso, e o domínio do não-saber era um luxo a que não me podia dar.
- Sete. – ouvi a voz, à minha direita, dizer. Ao olhar para a sua face, não consegui distinguir anos ou expressões. Toda ela era as minhas lágrimas. Correu para mim e explodiu no meu peito, abraçando-me e chorando. A minha saudade era artificial. Como podia sentir a sua falta se apenas a tinha a uma noite de sono de distância. A minha memória estava confusa o suficiente para poder parecer que tinha adormecido a seu lado e que agora a via ao acordar. O vazio dos anos que sentia era para mim, tal como a saudade, artificial, algo que eu não sabia se sentia porque sentia, ou se sentiria algo completamente diferente se me dissessem que tinham sido sete dias.
A. beijou os meus lábios secos, chorou por eternos momentos e disse que me amava.

D

Algum tempo depois de tudo, A. falou-me da dificuldade que tem tanto treinar e imaginar reacções e posteriormente desempenhar esse papel… Hoje não me recordo do que lhe disse mas o que senti ainda hoje sinto vez por vez. Senti como completamente injustas e estúpidas as suas palavras… Estúpidas porque estar dentro de mim naqueles momentos foi das coisas mais difíceis que alguma vez tive de enfrentar. Ver C., o meu amigo de infância, sorrir, despertava uma alegria imensa… que rapidamente era manchada pela imagem quase satânica de ver A. do seu lado, a sorrir igualmente, feliz por ele estar de volta. Tremia, tinha medo de tudo o que pudesse dizer, de tudo o que pudesse fazer. Mas sabia que conseguiria esquecer o idílio que era ter A. para mim, que conseguiria abandonar uma ideia que nunca tinha tido nada para ser real, e que tudo voltaria ao normal.

três

A

Uma vezes desfeitos os sorrisos, veio o silêncio. Tinha diante de mim alguém que não conhecia. Como seria possível que tanto tivesse mudado se nada na verdade tinha acontecido? Como pode o nada ser tão forte a ponto de mudar tudo?
Depois de C. acordar, depois da surpresa deixar, lentamente, o meu corpo, vieram as obrigações. O constante cuidado, as viagens para a fisioterapia, as perguntas intermináveis acerca do que tinha acontecido… o tanto para dizer que se atropelava e não passava no final de um triste soluço. Acho que apenas contava com o sacrifício da espera, imaginando que tudo seria rosas daí em diante. Acho que talvez achasse que tinha sido castigada o suficiente, que ele, sem culpa nenhuma, tinha-me arrancado o passado… e sentia uma injustiça cruel ao ver o presente desaparecer dia após dia, juntando-se a essas memórias que fazia por esquecer…
Sentia-me cruel, sentia-me desprezível, e via o seu olhar de incompreensão como pesados fardos que tentava aguentar, numa tarefa impossível que era ser para ele tudo o que tinha já sido. Os meus últimos anos nada tinham a ver com o que ele era. Quem eu era, a pessoa em que me tinha transformado, susceptível à nem sempre triste erosão do tempo manifestava-se em desalinho com a pessoa que ele deixara no tempo.
As decisões acerca do que fazer foram tomadas por mãos que não as minhas. Mas não conseguia deixar de me ver nos bastidores, sem maldade mas com intenção, a manejar as minhas incontroláveis reacções, e acabar por ser eu a decidir, sem o fazer, o que fazer connosco.

B

Ver os olhos tristes dele era quase tão difícil e pesado como os ver fechados. Com o passar do tempo, face a dura realidade do que via, sentia nascer dentro de mim um ódio por A. que não conseguia compreender. Tentava ouvir a minha própria e suposta voz da razão. Tentava equilibrar o meu interior, procurando perceber o porquê do que via acontecer. Mas não conseguia, nunca consegui. Os olhos dele sempre falavam mais alto do que alguma coisa que eu conseguia ouvir. Os olhos dele sempre me mostravam o cinzento que ia dentro de si, as perguntas sem resposta, a espera…
Eventualmente, o que começou num acidente, acabou aparentemente acidentalmente.

C

O fim pode ser mais pesado que a terrível consciência do tempo. Não sei quanto tempo dura um fim. Se escassos milésimos de qualquer coisa, se dias, meses, sete anos… Hoje, não sei se tudo acabou no momento em que o carro embateu na minha alma, se quando os zangados olhos de A. massacravam a minha pele, se quando tudo se materializou numa palavra…
A paixão sentida no dia em que acordei abraçou-me de uma forma estranhamente reconfortante. Uma vez u… não. Ia dizer uma vez ultrapassado o choque… mas acho que nunca ultrapassei realmente o choque de ter perdido sete anos da minha VIDA, e com eles o meu primeiro amor. Passei, isso sim, por períodos. Tantos que já não lembro. Com o passar do tempo, sentia-me a alternar. Ora me sentia conformado e vazio, feliz por ter sobrevivido, desesperado com vontade de desaparecer…
Passados os primeiros momentos, em que os nossos olhares falavam por nós, as palavras revelavam-se arrastadas e forçadas. Eu tinha curiosidade acerca de tudo o que se tinha passado, e sentia a vontade de A. em me contar, mas a dificuldade em o fazer. No meu interior, muitas vezes sentia-me zangado, triste, revoltado… como seria possível que tanto tempo se tivesse passado, e por vezes me apetecesse perguntar-lhe se também tinha estado em coma…
O seu olhar castigava-me frequentemente. Sentia-me estranhamente culpado por ter estado tanto tempo distante. Sentia-me vulnerável e frágil, dependente de si, e sentia isso como injusto… sentia como injusto porque não queria pedir mais que os sete anos que me tinha dado, e sentia como injusto pois A. fazia, sem o querer, por mo recordar constantemente. Algo se tinha perdido, e os anos que desapareceram de mim acabavam por se revelar importantes apenas por significarem a perda de uma relação que em tempos julgara perfeita…
Como pode o tempo ser tão importante? Como pode algo tão relativo determinar termos tão absolutos? Se os sete anos passaram para mim como uma noite de mau sono, como podem ter passado como décadas para A.?... Estas questões inundavam qualquer pensamento que tinha, revelando-me algo que eu fazia por afastar, por negar.
As discussões, quando existiam, eram marcadas por tudo o que não era dito. Via as frases em todo o lado menos nos seus lábios. Queria ouvi-la dizer que estava farta, que tinha de seguir o seu caminho, mas nunca acontecia… As palavras ficavam suspensas no ar, apenas eu as via, apenas eu as sentia doer…

D

- Que foi? – perguntei, ao vê-la chorar. Abraçava-se a mim com força, e sentia o seu choro como exagerado. Não sei porquê, não conseguia imaginar o que quer que fosse que fosse justificativo…
- O C. acabou com tudo! Com tudo… – respondeu, entre soluços. A surpresa foi tanta que, recordo-me, não tive a certeza que tinha ouvido correctamente.
- Acabou?... com…
- Sim, disse para eu seguir o meu caminho… – não fazia a mínima ideia de como me sentir… Não me sentia feliz, porque dois amigos meus tinham acabado um relacionamento, não me sentia triste, porque dois amigos meus tinham acabado um relacionamento. Hoje percebo as suas razões, mas ao ouvir A., que entre lágrimas me contava o sucedido, uma onda de incompreensão tomava conta de mim e um ódio que não queria sentir toldava a minha visão. Só pensava na injustiça que era A. ter esperado tanto tempo por C., apenas para este, passado uns meses acabar com tudo, deixando-a de rastos…
Porém, como disse, hoje percebo. Não sei quando foi a última vez que vi o meu amigo. Talvez há quatro, cinco anos… Ainda vejo partes de si, apesar de que cada vez menos. Vejo partes de si em olhares esporádicos e perdidos de A., vejo partes de si no meu dia-a-dia que conta com a presença de alguém que foi, em tempos, eternamente sua. Hoje percebo o quanto lhe custava ver o olhar triste de alguém que já tinha abdicado de tanto, o quanto ele sentia que não lhe podia pedir para o continuar a fazer. Talvez simplesmente A. não pudesse colocar um final enquanto C. dormia, e talvez tenha tido a cobardia de o fazer quando este acordou, obrigando-o a oferecer-lhes as palavras que, sem querer, A. tanto queria…

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Ella

Glassjaw – Losten

Quando vi Ella à minha frente, fui instantaneamente transportado no tempo. Já não era eu, o eu dos últimos tempos, o eu que sempre receei e que tomou conta de mim. Já não era o eu que trabalha 12 hora por dia, que se aborrece todos os dias, que vive aborrecido, que castiga os outros pela suas frustrações. Que merda… no que me tornei. Incrível os milhares de quilómetros que sinto em relação ao que fui, ao que quis ser, ou continuar a ser, e no que me tornei… Penso no meu próprio pensamento, e dou-me esperanças, pensando que o facto de questionar e de ter esta noção possa ser um presságio de que ainda é possível voltar atrás. Iludo-me conscientemente, sendo que sei que é impossível. Se comecei por ver os meus deveres como meras responsabilidades a que não deveria falhar, agora vejo essas responsabilidades como uma terrível sina e castigo, de quem deixou o trabalho, o mundo, tomar conta de si… Sou apenas mais uma formiga nesta indústria que é a sociedade… Levanto-me da cama, enquanto penso no pedido de Ella, que me deixou estarrecido, e sento-me na secretária. Fim-de-semana, batalho contra a vontade de adiantar trabalho para a semana. É Sábado, foda-se! Recordando-me da existência cheia de VIDA que já tive, da pessoa que já fui e que a visão de Ella infiltrou na minha memória, abro uma gaveta. Retiro alguns dos meus escritos e percebo, tristemente, que a última vez que escrevi foi há anos… Retiro alguns dos mesmos e com dor leio os meus sonhos, as minhas perspectivas, que julgava eternas e deixei perecer com o Vento… Que merda… Penso que os deveria queimar… se por um lado servem para me recordar que já fui feliz, por outro lembram-me que já não o sou… Como é possível darmos tantos passos errados fazendo o que achamos estar certo? Penso no pedido de Ella… Penso em Ella…

A primeira vez que a vi, não a vi. Era apenas mais uma cara entre tantas outras, num mundo de rostos novos, aglomerados no meio dum ano completamente diferente que se avizinhava. Pisara o solo australiano pela primeira vez faziam duas semanas, quando realmente a vi. Pisara o solo australiano pela última vez, da última vez que a vi. De volta a casa, trazia comigo o melhor ano da minha VIDA, e a dor duma paixão, dum amor que conheci, que vivi, e que não mais poderia viver.
- Não percebo o que se está a passar, nem o que vai dentro de mim… vim para aqui à procura de tudo menos do que estou a sentir… – disse-lhe, daquela vez. Estávamos deitados na sua cama, depois de uma noite de sexo e de três horas de conversa – Mas… se estivermos conscientes da realidade… se percebermos que não vamos conseguir fazer durar a nossa relação comigo a viver na Noruega e contigo a viver na Croácia… se percebermos que tudo o que temos é o agora, acho que vamos viver cada segundo como se fosse o último, vamos amar como nunca mais… – as palavras custavam-me a sair, pois queria contrariar o idílio de pensar que poderia durar para sempre. Na ânsia de sentir tudo duma vez, pensava ter descoberto a solução para ter tudo de si e dar tudo de mim… Hoje em dia raramente sinto, quase sentindo que esgotei os sentimentos a que tinha direito com aquela relação, com a minha juventude fugaz e apaixonada.
Uma estúpida desculpa para justificar a ausência de vulcões dentro de mim. Contrariamente ao que pensava, ao que tantas vezes escrevi, descobri que é melhor não sentir, é melhor não pensar, que o fazer e questionar toda a nossa VIDA, sentirmo-nos uma merda e uma desilusão para connosco próprios. Eu devia-me muito mais que isto. Mas sinto-me sem forças para mudar. Sou forçado a olhar o futuro de frente, e não o consigo distinguir do presente. Se dantes vivia para o momento, não vivendo cada dia como se fosse o último (ninguém o faz), mas sentindo-o como se fosse, agora tudo é muito disperso e confuso. As linhas que regem a minha VIDA estão sempre no amanhã, na semana seguinte, no mês seguinte…

Mas ver Ella… Falar com Ella. Sinto a minha existência posta a nu, sinto tempestades de questões dentro de mim, sinto a necessidade perdida de me olhar no espelho e procurar, no meu olhar, quem sou. Apesar de serem tímidas imagens do que já fui, assustam-me, face a consciência de que me é impossível conciliar o que tenho com aquilo que na altura queria ser. Sou tudo menos livre, e faço tudo menos escolher o que mais me fará feliz. E, mais uma vez admito e me revolto… como é possível, se pensava estar a fazer o que era certo? No momento em que deixei de querer a minha felicidade no hoje, para estudar e garantir a felicidade do amanhã perdi tudo. Perdi tudo porque quando esse amanhã chega, não consigo nem posso apreciar a felicidade para que trabalhei, pois estou demasiado ocupado a pensar e a trabalhar na felicidade de… amanhã. Assim, sinto cada amanhã como um tiro que não mata, mas que adormece a minha VIDA, deixando-a numa interminável lista de espera…

Ainda não consegui assimilar este impacto que Ella teve em mim, tampouco o seu pedido. Combinamos encontrar-nos amanhã, e sinto um pânico terrível de a ver. Sinto um pânico terrível de ver a maneira como me vai ver. Ela foi o amor da minha VIDA, e sei que fui o dela. A última coisa que quero é ver a imagem intocável que tem de mim abalada, destruída. Acho que talvez Ella para mim seja, não só a pessoa que é e por quem daria tudo, mas também a prova que eu existi, que eu fui o que fui, que não sou louco… que é verdade a imagem que tenho de mim, que guardo com saudade, num infeliz canto qualquer da minha mente…

- Olá Magnus… – ouvi, ontem, ao sair do trabalho. A imagem que tinha diante de mim era nítida, um sonho a acontecer. Ao me aperceber de que era a VIDA a acontecer, e não uma qualquer alucinação, consegui apenas balbuciar o seu nome. Permanecia bonita, muito bonita, sobressaindo entre qualquer mulher em quem eu sequer tenha pousado a vista nos últimos tempos. Porém, algum do seu brilho parecia perdido, gasto. Ver o brilho da minha VIDA sem o seu próprio brilho foi um pouco assustador, na medida em que me senti, em parte, responsável… Disse-me que tinha tido de vir a Oslo para uma reunião e se lembrara de mim. Faziam doze anos desde que a vira pela última vez. Sugeri um café no Café Con Bar, para falarmos, pormos as coisas em dia, sei lá…
A caminhada foi desagradável. Acho que tínhamos tanto para dizer um ao outro que as palavras se atropelavam, criando um magistral engarrafamento, e impedindo a comunicação de existir. Não foi até uma boa meia hora depois que este engarrafamento deu de si, e nos demos um pouco a oportunidade de sermos nós próprios, de falarmos. Dei por mim num triste acto… Ouvia-me falar, e gostaria de me ouvir… fosse o que dizia verdade… Não mentia acerca do meu trabalho, dos meus hobbies, na verdade não mentia acerca de nada. Dizia a verdade, mas fazia-o duma maneira completamente enganadora, espalhando energia e felicidade, espalhando aquilo que queria ter, muito mais do que aquilo que tinha. As horas passaram, e com elas o meu coração lembrou-se que, algures no tempo, tinha já batido, e com esse bater veio o martelar na minha cabeça daquilo em que me tornei. Mantive o meu acto, mas muito mais custosamente, já com plena consciência do que se estava a passar.
- Sabes… tinhas toda a razão quando disseste, daquela vez, que deveríamos viver o nosso amor o mais intensamente possível… – diz, sem me olhar. O seu ar sugere-me que aparecerá, a qualquer momento, a verdadeira razão pela qual está em Oslo. Em três segundos imagino-a a dizer que se quer mudar para aqui e viver comigo – E… Bem, não sei se… bem, deves saber, mas foste o amor da minha VIDA – desta feita olha para mim a custo, e perturba-me. Perturba-me olhar para mim e não ver o mesmo eu, da mesma maneira que me perturba a mim próprio o fazer – Tive alguns relacionamentos, um ou dois até duraram mais de um ano… Mas havia sempre algo que corria mal, algo que… não sei, por mais feliz que estivesse… podia estar sem pensar em ti meses, mas uma vez que o fazia… era como que se entrasse numa guerra contra o meu próprio relacionamento… e quando dava por mim estava a sabotar uma relação que, na verdade, me estava a fazer feliz… – as suas palavras trazem consigo um misto de dor e arrependimento. Sinto-me ameaçado face a possibilidade do arrependimento se poder prender com o facto de nos termos conhecido – E… bem, e já desisti de lutar. Tive o que tive, tivemos o que tivemos, e foi bom, foi lindo, mas foi o que foi… – faz uma longa pausa – É por isso que… bem, já deves ter percebido que eu não vim aqui porque tinha uma reunião…
- Já…
- É por isso que… vim aqui para te pedir uma coisa… – estou completamente às cegas. Não quanto ao seu pedido, pois sei que quer vir para Oslo, mas quanto à minha resposta – E quero que tentes perceber, por favor… mesmo que o que queiras dizer seja não, dá a ti mesmo uns minutos. Não penses que é fácil para mim… Bem, como te disse, já percebi que não vou ter mais nenhum outro amor, e estou com 35 anos e… Magnus, eu queria ter um filho teu… – os seus olhos, perfuradores e húmidos, atravessam-me a direito, deixando-me sem saber respirar. Quer ter um filho meu? Mas… – Por favor, não digas já que não… Podemos fazê-lo da maneira que quiseres, e não tens responsabilidades nenhumas, eu juro-te. Eu volto para a Croácia e nunca mais me vês, se for isso que tu queres… mas entende-me, por favor…

Hoje, passado quase um dia, o pedido, estranhamente, faz-me sentido. Ou algum sentido. Não percebo como tal pode acontecer… penso que concerteza seja a única coisa a pensar quando se passaram as últimas 24 horas com a mente no mesmo sítio. Talvez seja a minha maneira de dizer: Eu desisto. Massacro-me com a vontade de a querer feliz, e com a evidente injustiça desse pedido, não sequer contemplando que nos reunamos. E… por outro lado, quem sou eu para questionar isto?... Eu que, desde o primeiro momento, carimbei o fim da nossa relação, quando esta aprendia ainda a ser… Não sei que lhe dizer. Na altura quis chamar-lhe nomes, perguntar se estava doida, mas, para meu agrado, algo que conservei com o passar dos anos, foi o intenso carinho por si, e a incapacidade de a magoar…

Combinamos encontrar-nos novamente no Café Con Bar. Quero dizer que sim, mas quero, ao mesmo tempo, dizer-lhe que não tem de ter um filho meu, mas podemos, ambos, ter um filho juntos. A perspectiva disso poder acontecer assusta-me. Assusta-me a gigantesca mudança que teria na minha VIDA sem ritmo nem cor. Assusta-me a ideia de poder descobrir que afinal não somos feitos um para o outro. Penso na infeliz estabilidade que tenho em eternalizá-la na e minha mente como o futuro que poderia ter sido, e penso no risco da instabilidade em poder perceber que não o é. Penso em tudo, em tudo o que me aproxima e distancia de si, e numa eventual tentativa de ser quem já fui, sou romântico, e penso que talvez nunca seja tarde demais…

- Olá… – o seu sorriso é triste. Creio que adivinha uma resposta negativa. Sento-me a seu lado e não devolvo o seu cumprimento. Estabeleço uma ponte sem qualquer interferência entre o que vai dentro de mim e os meus lábios, e ouço-me.
- O que há a criticar, ou apontar, ou seja o que for que de estranho tenha o teu pedido… tu sabe-lo, por isso não o vou dizer. Não vou dizer nada senão pedir-te que tenhamos, então, uns momentos como os que tivemos, e que… e que nos vamos embora. Agora. Para minha casa. Agora. – a avalanche que desaba sob os meus sentidos, sob o meu ser é de tal intensidade que quase não me consigo levantar. Ela olha para mim surpreendida, sorri abertamente. Eu levanto-me, finalmente. Vejo-a fazer o mesmo, e temos um metro entre nós, até que, impelidos por uma energia já desconhecida, colamo-nos instantaneamente, os nossos lábios num beijo tão agressivo que dói, mas que é infinitamente bom.
Se o caminho para o café, no dia anterior, foi desagradável por não saber o que se estava a passar, nem como reagir a isso, hoje, o caminho do café é desagradável apenas por saber o que se está a passar, e saber a vontade incrível de roubar a mim mesmo uns minutos da minha VIDA e estar já em minha casa com Ella, e quem sabe um futuro diferente.

Senti cada toque na sua pele como pequenos momentos de eterno êxtase. A violenta energia de anos acumulados de distância dissipava-se lentamente, e uma vez em completa harmonia e contacto, deixamos o amor que sentíamos um pelo outro fluir com mais calma, com mais de cada um de nós em cada segundo, agarrando os pedaços de tempo perdidos por uma má decisão ou um erro de julgamento… O seu cabelo dispersa-se na minha almofada, estou por cima. Aguento-me já a custo, até que vejo os seus olhos fecharem-se e um leve e sensual gemido soar algures no quarto, sendo para mim a mensagem de que poderia acontecer.
Tendo ambos recordado com exactidão os imensos momentos vividos doze anos antes, desabo ao seu lado e sinto algo estranho dentro de mim. Aquele sentimento que eu julgava perdido. Sinto-me feliz. Por uma vez tenho ao meu lado na cama alguém de quem realmente gosto, alguém por quem daria a minha VIDA… E connosco, um grande ponto de interrogação que me deixa a querer que simplesmente não parta, que Ella não parta.
- Sabes…
- Diz… – pede, girando um pouco, ficando de lado na cama.
- Este filho… não tem de ser só teu… Podes ficar aqui, comigo… – o seu olhar assume uma expressão estranha. Curiosamente, sou capaz de jurar que é a mesma expressão que me lançou quando, há muito tempo, lhe disse que não tínhamos futuro… – Que foi? – pergunto, sentindo o perdido sentimento voltar ao seu estado normal… Não diz nada. Não consegue dizer nada – Ouve… tu própria o disseste! Eu fui o amor da tua VIDA! E tu és o meu! Não temos de cometer os mesmos erros! Não temos, tu agora estás aqui! A única coisa que tens a fazer é deixar-te estar, Ella! – digo, tentando não deixar as minhas palavras levar consigo o desespero que sinto. Tive, deixei de ter, pensei que poderia voltar a ter, estava errado…
- Magnus… não… não posso simplesmente deixar tudo para trás – aguenta o choro – Não sei… Pelo menos não agora. Tenho o trabalho, tenho… – levanto-me da cama e deixo de a ouvir. Talvez queira que eu insista, mas não consigo fazê-lo. É demasiada dolorosa a imagem que tenho de si, como um espelho perdido de mim. Ambos desistimos de ser felizes. Talvez eu esperasse que me resgatasse do que me tornei, imaginando que ela permanecera com o brilho com que a conheci. Mas… da mesma forma, talvez seja impossível qualquer um de nós resgatar o outro se estamos ambos no fundo. Estamos ambos perdidos, e tudo porque um dia eu me permiti a perdê-la, e permiti que ela me perdesse…
Estou sentado no sofá na sala. A uns metros de distância, Ella veste-se, e prepara-se para me deixar novamente, desta vez, sinto-o, para sempre. Um vazio agoniante faz-se sentir dentro de mim, juntamente com a ameaça que não desaparecerá.
- Quando eu não tinha nada que deixar para trás… deixaria tudo por ti por mais que tivesse… – diz, perto da porta. Vejo pelo canto do olho que espera uma despedida, que espera algo. Não sei o que mais tenho, neste momento, para dar senão um silencioso adeus…

domingo, 26 de outubro de 2008

Vazio

A sedução funciona tão melhor quando não sabemos onde estamos… quando o que vemos de nós é nada mais que o reflexo dos olhares em rostos perdidos na multidão. Quando passeio, imersa em tudo o que não tenho, e busco por anónimos sorrisos, busco por partes de mim que um dia me fizeste perder.
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Carrego no meu pensamento o esforço duma expressão, que a custo sobrevive nos meus lábios, sorri dentro de mim e apaixona estranhos. Viajo pelas mentes dos transeuntes, vejo o que vêem de mim, procuro perceber porque me sinto tão perdida. Vejo o quão errada cada alma está nas ilações que retira acerca do que sou. Olho o espelho, cru, e reflecte-me pedaços de mentiras em que escolho acreditar dia após dia. Abraço as linhas e imagens que saltitam entre os olhos de quem me olho, tento concentrar-me em cada segundo, tento ser o sorriso que me devolvem.
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Perco-me nas palavras que ouço, nas poucas frases que solto. O mistério, pleno em confusão, que habilmente transmito, nada mais é que o materializar de todo o não-saber que explode no meu interior e que sai na mais estranha forma de sensualidade. Escolho, ou tento escolher, os trejeitos que me entregam, os adjectivos que me oferecem. Colo-os, um a um, no meu interior, e busco alguma identidade em frases sem sentido e parcas em verdade.
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É-me difícil este constante acto em que me encontro. Quero apenas ser eu, mas a estranheza desta estranha realidade que sinto deixa-me completamente perdida… olho a minha face e não encontro nada de mim senão o profundo olhar marcado pela tristeza da falta que alguém me faz. Da consciência que quero renegar… de que ninguém preencherá este vazio…

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Voltarei Para Ti

Beirut - Cherbourg
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Florbela,
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Ouço os meus colegas falar das suas namoradas de uma maneira que não consigo falar de ti… Talvez pensem que não tenho ninguém, que trago comigo apenas um nome inventado e uma descrição imaginada… Falam das namoradas de maneira que não consigo falar de ti. Descrevem as linhas dos seus corpos, a cor dos olhos, do cabelo, a tez da pele, e quando me perguntam, consigo apenas balbuciar alguns detalhes aos quais não presto tanta atenção. Isso deixa-me a pensar… Faz hoje dezanove meses desde que te vi pela última vez, com lágrimas a querer brotar, a incompreensão na expressão e a dor a todo o nosso redor. Lembro-me do que os meus olhos viram com exactidão, mas a razão pela qual não sei o que dizer aos meus colegas é que, mais que a cor dos teus olhos, mais do que qualquer bela característica que tenhas e os meus olhos alcancem, apenas consigo pensar na maneira como me fazes sentir, na maneira como és tudo para mim, nas coisas que sinto quando me sorris… Fico sem saber o que dizer, meu amor, pois creio não ser bom que chegue para definir com precisão o que, passado tanto tempo, ainda me fazes sentir.
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Vejo o declínio no olhar de toda a gente. Todos os dias perdemos um amigo qualquer, pensamos sempre que podemos ser o próximo. Cada dia tem sempre o potencial de ser o último, e vejo a desistência instalar-se em todas as almas que me rodeiam. Eu aguento-me com o meu sentimento por ti, e a esperança de poder passear de mão dada contigo mais uma vez, a esperança de poder amar os teus lábios novamente. Vejo, igualmente, o declínio no olhar de toda a gente da esperança de encontrar um par de braços abertos em casa… Quando me perguntam, poucos compreendem a fé que tenho de que ainda me amas, de que ainda me esperas.
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Sou teu como nunca fui de ninguém, sou teu como nunca mais vou ser de alguém. Sinto-te como minha, como o meu amor eterno que nunca quero perder, como a paixão juvenil que para sempre quero guardar.
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Assim me despeço, meu amor. Sabe que te amo e voltarei para ti.
Deste para sempre teu,
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Cesário

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

passado

PJ Harvey – One Line

Quero comer os teus olhos. Quero entrar dentro da tua alma e sentir como é ser tu por uma vez. Quero olhar para mim através de ti, quero sentir a minha própria pele com o delicado toque dos teus dedos. Quero-te ser tu para poder experienciar por uns segundos como sabe ser tão maravilhoso. Quero voar pelos teus neurónios, desaparecer e respirar o teu sangue. Quero abraçar os teus braços, quero alimentar a minha alma com a tua. Quero-te a ti em cada segundo, quero-me a mim desfeito em pedaços por uns breves instantes que me aproximam do sol. Quero elevar-me ao estado de espírito em que vives, sorrir abertamente e não me importar com nada mais a não ser o próprio segundo em que existes e esqueces tudo o que fui. Quero-te a ti.

Lembras-te como existíamos naqueles tempos? Lembras-te de como tudo o que conseguíamos ver era o olhar apaixonado no espelho da alma de cada um? Quero esses momentos, e destrói-me saber que eventualmente estão perdidos. Embarco nesta jornada de pensamentos e reflexões e a única coisa que quero é mais um segundo. Penso e peço a quem tenha de pedir, talvez ao diabo, para levar consigo a minha alma e me trazer de volta para os momentos em que acordava contigo. Abdico, sem pensar duas vezes, da minha alma, pois estando como estou já não a tenho. Se entregar o que resta a quem tenha de entregar, sei que posso viver mais feliz por uns momentos. Sei que trazes consigo a imagem e a distância do que fui, do que já senti. Por isso quero que voltes. A VIDA aconteceu demasiado rápido e os erros cometidos diluíram-se em promessas completamente sem sentido e impossíveis de alcançar. O arrependimento sabe bem, estupidamente, mas as memórias e o significado de não te ter têm o travo estranho de vinho estragado.

Tudo é bom enquanto é bom, e como foi maravilhoso…

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Silêncio

[PJ Harvey – When Under Ether]
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O silêncio vem devagarinho. Passeia, desliza pelas paredes, traz consigo a escuridão que instala no meu interior. Fecha-me os olhos por uns segundos, corta-me o ar por uns minutos. Ouço a calma que sinto, sinto o barulho silencioso como o peso das decisões tomadas. Imagens saltitam pomposamente na minha mente, espalham-se pelos meus pulmões, controlam os meus sentidos. Pestanejo algumas vezes, encosto-me para trás. Pestanejo lentamente, vejo a ausência de luz esporadicamente como o reflexo da falta de sentido que tenho. Encosto-me para trás e penso. Deixo a minha mente viajar para longe, deixo-a magoar-me com o peso de saber o que fiz. Procuro o esquecimento total, mas as imagens, as lágrimas, o vazio… tudo é demasiado esclarecedor e presente para enterrar algures no passado. O arrependimento abraça-me completamente, espalhando os seus tentáculos ao redor do meu coração, não o matando, mas permitindo apenas que bata muito devagar. Apenas o suficiente para não morrer, apenas o suficiente para me sentir completamente sem VIDA. O silêncio vem devagarinho. Com a descrição como característica terrivelmente vincada, vem tão devagarinho que apenas me apercebo da sua presença quando nada mais há para ver. As imagens que quero ver permanecem escondidas atrás das memórias, funciono como um robô, agindo apenas respondendo a estímulos, com a minha mente em conflito com a realidade desta espécie de presente.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Rita [Poesia]

Sigur Rós – Gong

Sentir o teu coração bater acelerado contra o meu peito dá-me VIDA. Arranca-me de tudo onde existo e puxa-me para ti, para o significado de ter e ser. Deitamo-nos e a nossa pele desaparece, os nossos músculos deixam de acontecer, somos duas almas que se fundem e incendeiam. Descansas em mim e eu desapareço em ti. Não sei onde estou, com a única certeza de saber que nada disto pode ser real. Dás-me momentos da tua VIDA e esticas os meus sentidos, penetrando no meu olhar como uma flecha num coração saudoso. Agarro-te e tento sentir os cantos da tua música, que me embala em suaves murmúrios. Tenho tudo num segundo, e tenho o nada a quatro instantes. À beira do abismo agarro-te com força, sentes o meu toque e beijas-me violentamente, despedaçando a minha energia e construindo tudo o que tens no meu interior. Toda eu sou tua, toda eu voo, lado a lado contigo e com o que me fazes sentir. Viajo loucamente, de olhos fechados, completamente entregue ao doce sabor de desaparecer sem nada fazer, de existir sem nada temer.

O meu mundo é teu.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Movimentos

XX
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Dançamos. Suavemente. As palavras saem do meu corpo e tocam nos teus cabelos. O teu ritmo embala o meu e o meu ama o teu. Peço ajuda às minhas emoções, para se guardarem mais um pouco e não estalarem a minha passividade. Os teus braços são fortes mas o teu toque é delicado. Não vejo o teu olhar mas sinto-me pacificamente invadida. Viajas pelas minhas linhas com a ponta dos teus dedos, aproximas os teus lábios dos meus. Sinto a tua respiração quente misturar-se com a minha e o meu beijo pede para nascer.
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Afasto-me. Vejo-te no meio da pista de dança, imponente e solitário, a pedir, sem o fazer, a minha companhia. Óculos escuros, não sei porquê. O misterioso ar de quem apenas veio para estar sozinho, mas que me quer do seu lado. Negligencio a minha companhia inicial, quero estar contigo. A tua força impele-me a te tocar. Danças agora sozinho, vejo que olham para ti. Sinto-me ameaçada. Desespero com a demora da bebida que não vem.
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XY
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Sinto o teu cheiro passar por mim. Diferente, agrada-me. Sinto a tua energia rondar-me, os teus aromas flutuarem pelo ar, misturando-se com um pouco de tudo que não é já teu. Sinto o teu toque. Quero estar sozinho, mas o teu toque traz consigo a delicadeza e paz. Respondo ao teu toque, simplesmente por não o afastar. O teu corpo aproxima-se uns centímetros e sinto o teu calor. Tocas na minha mão, e permito que os meus dedos se entrelacem nos teus. A outra mão, invejosa, não desiste enquanto não toca na tua cinta, firme e sensual. A música, sem o fazer, baixa de tom, e puxo-te suavemente para mim. Aproximas os teus lábios dos meus, e dançamos o nosso próximo ritmo, independentes de tudo o que se faz ouvir ao nosso redor. Afastas-te. Não sei se voltas, mas quero que sim. Vim para estar sozinho, mas agora que te conheço, quero-te perto de mim.
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XX
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Vejo na bebida que aguento na mão nada mais que uma autorização para voltar para a tua beira. Gosto da maneira como me tocas, gosto da maneira como me sentes e olhas para mim, ainda que o teu olhar permaneça um mistérios, escondido atrás duma máscara que não sei porquê usas. A fluidez dos teus movimentos altera-se ligeiramente quando me vês novamente, entramos novamente na nossa própria dança. Tento adiar os segundos em que te vou beijar, vivendo um pouco mais estes momentos em que te quero conquistar, em que não sei se serás meu.
.
XY
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Quando te vejo voltar, o prazer que sinto revela-se estranho, quem sabe a falta de treino em ter alguém tão belo como tu nos meus braços. Com o tempo deixei de procurar contacto, e viver a minha VIDA isolado, longe de tentativas de sedução que caiam na frustração. Vejo-te como um presente do destino, face a minha prolongada ausência das estúpidas competições sexuais… Não estou nervoso, controlo os meus sentimentos, com a absoluta certeza que, a qualquer altura, nesta noite, vais-me deixar, envergonhada, e não te voltarei a ver. Aprendi a usar cada segundo de prazer e bem estar como algo divino, que tenho agora e não sei quando voltarei a ter. Dás-me um pouco da tua bebida, e sinto o ácido cítrico da tua caipirinha prazeirosamente irritar as minhas papilas gustativas. Sinto os minúsculos cubos de açúcar dissolverem-se na minha boca, e espero um beijo teu.
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XX
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O tempo passa duma forma impossível de acompanhar. Deixo-me levar pela magia em que me envolves, e apenas por vezes tomo consciência do sítio onde estou, com quem vim, a que hora ir. Pensando que quero que vás comigo, que não me quero despedir, percebo que não posso adiar por muito mais tempo o beijo que, triste, continua esperando nos cantos dos meus lábios. As tuas mãos, comandando o meu movimento, apoiam-se nas minhas ancas. Subo-as um pouco, e toco-te, com as minhas no teu queixo. Os nossos lábios apaixonam-se por uns momentos, beijamo-nos, as línguas, tímidas, percorrem cada canto uma da outra. Gosto.
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XY
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Sinto o sabor da tua bebida na tua boca. Beijo-te, percebendo que não me esquecera, nem me esquecerei, passe o tempo que passar, e sinto as nossas bocas assumir o ritmo dos nossos corpos, dançando sem medo, entregando-se. Estranho a ligação estabelecida, penso nas poucas palavras ditas, penso se sentirás o mesmo. Penso se haverá algo de diferente neste duo, ou se estarei completamente enganado e tudo não passa de uma ilusão prestes a ser descortinada. Quando os nossos lábios se descolam, elevas-te um pouco e sussurras ao meu ouvido, pedindo para irmos embora, juntos. “Vem o momento” – penso, prestes a encarar a dura realidade. Aceno timidamente, dizendo que sim, que quero ir embora contigo. Dás-me a mão, quero imaginar que com medo de me perder, e saímos da pista, deixando a música mais longe. Paro. Estamos próximos da saída. Sinto a tensão na tua mão, ao não encontrar fluidez nos meus movimentos para te acompanhar. Viras-te para mim.
- Há algo que não percebeste, talvez… e tenho de te dizer… – digo-te, não precisando já de aproximar os meus lábios dos teus ouvidos. Aproximas-te.
- Que foi? – perguntas, intrigada.
- Eu sou cego. – respondo, com a frase que geralmente não preciso de dizer. A frase que as pessoas fazem por evitar ouvir, mantendo a distância, mantendo o frio. Fazes uma pausa e dou-te tempo para assimilar a surpresa e a desilusão. Sinto-te aproximar mais um pouco.
- Eu sei. Vamos?

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Hoje

- A VIDA são 3 dias pá, ouve o que eu te digo! E eu simplesmente decidi quando a minha vai acabar! – dizia-me Rui, todas as vezes em que as cervejas começavam a não caber na mesa. Nesse dia, a última vez que o ouvi dizer isso, estávamos no Académico. Era Quarta-Feira, lembro-me como se fosse hoje… Não se passava grande coisa em Coimbra, mas uma noite de conversa com Rui era sempre uma noite bem passada.
- ‘Tá bem, ‘tá bem… deixa-te de tretas! – eu despachava, entre cigarros cravados e goles de cerveja. Desde há alguns anos que Rui dizia ter decidido que ia viver a VIDA ao máximo e que se ia suicidar no dia antes de fazer 30 anos. Eu nunca acreditara. Hoje está morto.
- ‘Tou-te a dizer, pá! E já te disse mil vezes! Não vai ser um suicídio daqueles de pessoal deprimido! Vai ser o suicídio de alguém que viveu ao máximo, e apenas quis ter algo a dizer quanto à maneira, e à altura em que ia!... – debrucei-me na mesa e, com um sorriso, olhei-o nos olhos.
- Ok, vamos supor que não estavas na tanga… Não achas que 30 é muito cedo? – perguntei, curioso.
- Não, pá! Ouve lá, o que é cedo? 30 anos são 1560 semanas de VIDA! Vou em grande, e não vou ver o meu próprio declínio. E posso dizer que a minha VIDA foi feliz, sempre! Tu, por outro lado, vais envelhecer, vais perceber que já não consegues fazer as coisas que gostavas de fazer, vais tornar-te num adulto cínico, como até já te estás a tornar – diz, gracejando – E vais morrer com a ideia que não foste tão feliz como realmente foste. Só porque os teus últimos anos não o foram! – a maneira como me dizia isto era sempre cheia duma certeza impressionante. Agora que penso nisso, sentado ao lado da sua campa, no 13º aniversário do seu suicídio, quase não acredito como na altura não me acreditei! Talvez em algum momento tenha percebido que poderia ser verdade, e tenha dado um instantâneo salto do “não acreditar” para o “não querer acreditar”…
- Mas ouve lá, ó Rui… que é que tu sabes? Já pensaste que podes ‘tar enganado? E que… sei lá a VIDA comece aos 40?
- Acreditas mesmo nisso?
- Não, mas isso não interessa! – rimo-nos. Na verdade não acreditava, e os seus argumentos, ainda que aparentemente estúpidos, sempre me assustavam, talvez por, ainda que eu não o quisesse admitir, achar que, no fundo, faziam sentido…
- Claro que interessa! Pá… Zé, eu já percebi que não vou lidar bem com o declínio…
- Mas não tem de ser um declínio! – interrompo, efusivamente.
- ‘Tá bem, chama-lhe o que quiseres! Eu chamo-lhe declínio. Eu já percebi que não vou lidar bem com o declínio, e por isso prefiro ir em beleza, do que ir indo em tristeza.
- Ok, ok… – geralmente era assim que acabavam as nossas conversas. Eu não o conseguia convencer de nada, e ele não me conseguia convencer de nada… Ou melhor, eu dava sempre a entender, tanto para ele como para mim… que ele não me conseguia convencer de nada. Foi das últimas vezes que o vi. Que saudades tenho…

Acho que não reagi com muito choque. Apesar de não querer acreditar, talvez uma parte de mim soubesse que aquilo ia acontecer. As pessoas estranharam o facto de eu não me sentir devastado… Senti-me mal, mas como quando um grande amigo vai de viagem e não sabemos quando o vamos ver. Só isso. Talvez por me ter pedido, milhares de vezes, para eu não ficar triste, e para saber que tinha sido a sua decisão, e que tinha ido bem. Mas foda-se Rui, podias estar aqui ainda…

Sentado ao lado da sua campa penso neste meu amigo. Ensinou-me o que é viver. É irónico, mas a maneira apaixonada como deixou a VIDA, levou-me a querer aproveitá-la ao máximo. Realmente não sei quando o meu corpo vai começar a falhar, quando a minha mente vai desistir de algumas actividades que tanto prazer me dão. Não decido acabar com a minha própria VIDA, para não sentir esse declínio… Mas decidi, no dia do seu funeral… não adiar. Adiar sempre é o pior que podemos fazer. Hoje é hoje, e quando quero fazer alguma coisa, faço. Hoje… é hoje.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Como Me Sinto

A

Como me sinto… Dizem-me ter dado um passo importante, fulcral, vital na minha VIDA, mas o que mais quero, a cada segundo que passa, é ter o que tinha semanas antes. O que me dizem agarra-se aos meus ouvidos com toda a força pedindo, ora com jeitinho, ora violentamente, para entrar. Quero deixar entrar, e puxo a porta com toda a força que tenho, mas sinto cada esforço como um movimento em vão. Cansa-me, como me cansa. A porta que quero abrir é pesada e está enferrujada, mexendo-se apenas uns centímetros quando a queria escancarada. Desistir do que desisti manifesta-se tão difícil como nadar com um colete de ferro. Sinto no corpo o pedido das benzodiazepinas, e resisto contra a vontade de ceder pela enésima vez. Vou tentando nadar, mas as braçadas são pesadas, e a necessidade de, com um aceno, ao mesmo tempo pedir ajuda torna tudo complicado e inconsequente. Desistir desistindo é difícil. Ter a ajuda que vou tendo a cada dia ajuda, mas ao mesmo tempo deixa-me a sentir-me como um extraterrestre no meio dos restantes residentes… que batalham com os seus problemas psicológicos, quando eu apenas os tenho em lista de espera. Vejo B, minha “irmã mais velha” cheia de força, de energia e boa disposição e, mais uma vez, os sentimentos contraditórios me recordam da sua existência… vejo-a como o personificar duma meta, duma possibilidade, um olhar para algo em que me posso tornar… mas ao mesmo tempo sinto a distância galáctica entre os nossos estados tão assustadoramente grande… grande demais, de tal forma que penso ser, para mim, simplesmente impossível…

B

Como me sinto…ou como me sentia, já que neste momento não faço ideia. Ou não quero fazer ideia, face à notória evidência de que agora me sinto pior que há pouco tempo atrás. Toda a gente gabava o meu progresso, e eu sorria, por dentro e por fora, contente com a constatação daquilo que sentia mudar em mim. Hoje, toda a gente continua a gabar o meu progresso, e eu continuo a sorrir, mas apenas o faço por fora. Esta mudança, que no fundo nada mais foi, quem sabe, que um neutralizar da errónea ideia antes tida, passou-se nas últimas semanas, a uma velocidade que, não sei se lenta, se veloz, sei apenas que sub-reptícia. A verdade é que, quando vi A entrar na Comunidade Terapêutica, vi-me a mim mesma, meses antes… vi aquela imagem de mim que julgava esquecida e que sufoquei num qualquer canto da minha memória… Magra, muito magra, os olhos a querer fechar a toda a hora, o silêncio como carrasco e o nulo como constante. O corpo já a não necessitar de substâncias mas ainda assim a pedi-las. A mente, pobre mente, completamente às escuras, sem saber o que fazer. Falo com A, vezes sem conta tentando incentivá-la e ajudá-la a abandonar esse funcionamento. Quem sabe mais para me ajudar a mim, mas o seu olhar vazio não me escuta, e só me apetece gritar-lhe aos ouvidos, garantindo assim a sua atenção. Ou tentando, já que não consigo ter garantias de si. Porém, não deixo transparecer, não sei porquê, esta súbita fraqueza e vulnerabilidade recentemente adquiridas. Talvez admitir, ou falar disto num grupo ou em aconselhamento, seja dar ainda mais um passo atrás… Ouço os meus próprios pensamentos e penso que eles sim representam, não um passo atrás, mas que a realidade é que não dei tantos em frente.

C

Depois do almoço, como todos os dias, retiramo-nos para fumar um cigarro. Com a Primavera ao virar da esquina e o Inverno esquecido, os sorrisos são mais abertos e as gargalhadas mais sonoras. Mas esta é estranhamente sonora. Não sei se é o nível, o tom, o que é… mas apenas confirma o que já há algum tempo imaginava. Quinze anos de toxicodependência, mais outros quinze, já livre, de trabalho com toxicodependentes, acabam por nos dotar com algumas características não raramente infalíveis. Os residentes voltam para dentro, e B, já com o olhar descansado, e por isso mesmo reflexivo e distante, deixa-se ficar, iniciando o seu segundo cigarro, sentada a admirar a sua caneca de café.

- Podes baixar a guarda agora…. – digo, sentando-me a seu lado. O seu olhar é de surpresa, e nasce um sorriso amarelo.

- Como? – pergunta.

- Sei como te sentes. Já passei por isso, não precisas de esconder. Nem de mim, nem de ninguém, e muito especialmente, de ti – tenta interromper, imagino para dizer que não sabe do que estou a falar, mas o meu olhar pede mais um minuto de antena – Sabes… não foste a única a perceber as semelhanças entre ti e A. Assusta, não assusta? – volta a assumir a postura que assumira quando se julgara sozinha. O seu verdadeiro eu tem permissão para respirara uns minutos.

- O que é que faço? – pergunta, perdida.

- O que é que tens feito?

- Nada. não percebo isto que se está a passar. É frustrante! Pensava que estava num lugar comigo completamente diferente! E agora parece que me vejo… ao espelho, de cada vez que olho para A. e… sinto-me a regredir.

- Pois eu sinto-te progredir…

- Como assim? – pergunta-me, notoriamente sem saber o que quero dizer.

- Se aprendi alguma coisa, em 30 anos a lidar com drogas, é que simplesmente não existe algo como um percurso perfeito em recuperação… e quando tudo corre bem, sem mácula, com um desempenho notável… acho que quer dizer que tudo vai mal. Porque se estás aqui, é porque há merda aí dentro… merda de que precisas de falar, de deitar cá para fora! E a razão pela qual digo que acho que estás a progredir é que começaste a sentir, começaste… a ver-te na minha perspectiva…

B

Ficamos a falar mais uns minutos, até que tive de ir lavar o chão dos corredores. C. surpreendera-me duma maneira que não achava possível. Como é possível sermos tão transparentes quando julgamos que estamos a ludibriar toda a gente?... Odiei-o por me ver tão bem, mas a verdade… disse-me o que eu já sabia, e fez-me ver que o progresso, a minha recuperação, não está em querer tudo perfeito dentro de mim, mas aceitar o que não está… tentar melhorar e conseguir… falhar e aprender a lidar com isso…

Como me sinto. Triste. Triste pelo tempo perdido a tentar mostrar aos outros uma imagem minha que não era real. Mas fe… mas contente por o ter percebido a tempo. E feliz por estar agora numa posição tão melhor para ajudar A., mostrando-lhe que o meu percurso também é difícil. Mas juntas, todos juntos, chegaremos a bom porto…

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Vivo!

Sigur Rós - Gong

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Mysen. No meio do nada, comigo mesmo como companhia, a alma que me habita ao meu lado e a música de Sigur Rós dentro de mim. Sento-me na sebe branca de madeira e a música cresce. Cresce. Cresce e sinto-a entrar dentro de mim. Fecho os olhos e um arrepio imenso e interminável entra dentro de mim. Quero sair! Quero sair e correr e nunca mais parar. Quero ficar aqui e apreciar o céu azul às onze da noite. Quero voar e quero parar. Quero sair. Sinto os pelos dos meus braços eriçarem-se e sinto-me plenamente vivo. Quero sair do meu corpo e voar, e beijar, e abraçar. Quero fazer tudo o que posso num momento, quero ficar parado a sentir a VIDA lamber as minhas veias. O coração não acelera mas a mente dispersa-se. Sinto-me plenamente vivo. Como uma pequena partícula dum organismo infinitamente maior, que quer elevar-se, experenciar cada detalhe da existência fugaz e injusta a que temos direito. Quero viver! Quero chorar, sorrir, quero sentir! Estou sozinho, mas não estou sozinho. Um oceano de questões, sensações, medos e sentimentos habitam-me e quero dar atenção a cada um, amá-los, tê-los como meus e agradecer-lhes por me darem VIDA.

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Quero viver! E vivo, plenamente dentro de mim aceito tudo o que tenho para me dar, satisfeito por tudo o que sinto… Se sinto amor não sinto ódio, se sinto saudade não sinto a satisfação da presença, se sinto paz não sinto fúria. Não me interessa, quero sentir, seja o que for, quero sentir. E sinto-o. Sinto tudo, sinto a satisfação de olhar para dentro de mim, a insatisfação de não ter tudo o que quero e a satisfação de possuir o que tenho. Sinto-me plenamente vivo!

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Positivo [Estória Experimental]

Um dia, o Positivo matou-se.

- É um dia triste para todos nós – anunciou a jornalista – Foi encontrado morto em sua casa… Paulo Olívio Soares Ilha, mais conhecido pelo povo português como o Positivo. Tudo indica que terá cometido suicídio…

- Profissão? – perguntou a senhora do ginásio, ao preencher a ficha de inscrição de Positivo.

- Técnico de Vibrações Positivas. – respondeu o mesmo. A empregada olhou para si com cara de não-sei-o-que-é-isso-mas-deve-ser-uma-engenharia-qualquer, e acabou de preencher a ficha uns minutos depois. E o que era, na verdade, isso de Técnico de Vibrações Positivas?...

- Então e que fazes? – perguntou a senhora, enquanto fazia o gelo rodar e se diluir no Martini Rosso, visivelmente interessada em Positivo.

- Sou Técnico de Vibrações Positivas! – respondeu o personagem desta estória, à espera que a sua companhia lhe perguntasse o que isso era.

- E isso é o quê?

- Basicamente, espalho energia positiva… Trabalho para o governo. Este recebe pedidos de instituições sociais, como orfanatos, comunidades terapêuticas, hospitais, entre outros, para eu passar uma ou duas semanas a trabalhar com eles… o governo envia alguém para aferir a situação e ver quem mais precisa de mim, e eu vou… – respondeu… pela milésima vez na sua VIDA… a cara que recebeu como resposta à sua resposta foi a mesma que já recebera no passado, não mil vezes, mas muitas mais – Não, não sou nenhum bruxo, nem nada do género. Sou normal. Quer dizer, não sei se será bem isso, mas simplesmente sou bom em pôr as pessoas… numa boa onda. E passo uma ou duas semanas (três, em casos excepcionais) em instituições cujo ambiente esteja, ou à beira de rotura, ou com muitos mal entendidos, entre outras coisas, e geralmente consigo aligeirar um pouco, algumas vezes muito e outras completamente, o ambiente… Não faço nada de especial, nem sei porque se passa isto…

Nessa noite, o Positivo levou a sua companhia para casa, e ambos libertaram muita energia. Nessa noite, o Positivo explicou a sua profissão uma das últimas vezes. Não porque foi antes de se suicidar, não foi isso. Mas porque foi pouco depois do governo ter reconhecido, pela primeira vez na história do mundo, a profissão de Técnico de Vibrações Positivas. Após muita resistência por parte deste organismo, e de muita insistência, não de Positivo, que não se importava do nome que lhe davam, mas das instituições que reconheciam o seu trabalho, o governo cedeu, e criou esta profissão, que não só não existia, como dito, em mais nenhum país, bem como era a única profissão no mundo apenas com um profissional. E realmente é estranho… Técnico de Vibrações Positivas…

Tudo começou muito cedo. Não a sua profissão, claro, mas o facto das pessoas perceberem que havia algo de diferente com Paulo. Sempre fora uma criança muito simpática, sabia dizer a palavra certa no momento certo e até as suas palavras erradas era no mesmo momento, o certo. Contudo, talvez o seu maior trunfo fosse esse sorriso. Tinha um rasgado sorriso que irradiava alegria e bem-estar. Claro que apesar de tudo começar muito cedo, ninguém adivinharia que ele, um dia, faria disso uma profissão. Apenas o viam como alguém muito simpático e divertido. Não era melhor, nem pior, que os outros, não era muito mais inteligente, simplesmente era mais… qualquer coisa… qualquer palavra que quem sabe não exista, assim como a sua profissão não existia. Se bem que… positivo, sim, é simples e existe. Fiquemos com positivo. Simplesmente era mais positivo.

Chateava os seus pais, como qualquer pré-adolescente o faz, chateava-se com os seus amigos, como qualquer adolescente o faz, e cometia estupidezes com as suas namoradas, como qualquer jovem adulto o faz. Mas, de uma maneira ou de outra, tudo sempre se recompunha, e nunca quebrava relações com ninguém, a menos que estas se desvanecessem lentamente com o tempo e distância. Mas nunca com uma ruptura. Porque não o queria, e porque, sem o saber, fazia com que os outros também não o quisessem. Costumava dizer aos seus amigos, nos últimos tempos da sua VIDA, em que beijava sorrateiramente a ternura dos quarenta, que talvez tenha ficado pela fase de jovem adulto, e fosse isso que o fazia tão… positivo.

Claro que todas as qualidades são fruto de inveja. Todas. Não por toda a gente, mas haverá sempre alguém que inveja a beleza da Joana, a inteligência do Joaquim ou o dinheiro do Júlio… e, para dizer a verdade, toda a gente invejava esta influência positiva que Positivo tinha com as pessoas. O que é mais curioso é que invejavam a qualidade, mas ficavam por aí, não conseguindo sentir algum tipo de sentimento negativo pelo personagem. Havia quem o quisesse odiar, mas quando na sua presença, duas palavras e três sorrisos subitamente pareciam relativizar as coisas e tornar o ar mais fácil de ser respirado…

Mas um dia, o Positivo matou-se…

Vamos sabendo, ainda que com breves frases (pois isto será uma estória e não um romance) como começou a sua estória. Mas como continuou a mesma?

Sendo que as pessoas tão bem se sentiam na presença de Positivo, este não teve grandes dúvidas acerca do seu futuro. Faria isto de profissão. Seria um psicólogo. Os seus pais torceram o nariz. Tinham outros planos para si, mas a sua mente estava decidida. O seu percurso na universidade foi o dum típico estudante. Ia passando, por vezes boas notas, outras vezes nem por isso, uma queca aqui, uma queca ali, e quando deu por si, tinham passado cinco anos e na sua mão pousava um canudo… que não era um canudo, mas uma folha normal… canudo soa sempre melhor, ainda que o escritor esteja a estragar tudo referindo-o… “Txi, foda-se, para onde foram estes anos todos?...” – perguntava-se Positivo, sem saber o que responder a si mesmo. Era tempo de procurar por emprego, e enfrentava tal empreitada com dificuldade. Não o dizia a ninguém, pois sabia que ninguém compreenderia mas na verdade, sabia que seria favorecido por ter esse… talento. Efectivamente, custara-lhe admitir de si para si, que tinha um jeito especial com as pessoas, mas uma vez que o fez, prometeu a si mesmo que não o utilizaria para benefício próprio. Se algum tempo demorou a aceitar a sua qualidade, muito menos tempo tardou em perceber que o que prometera a si mesmo era impossível de cumprir. Percebeu-o certa noite, no Porto, em que tentava seduzir uma rapariga aparentemente inacessível, mas que eventualmente… aconteceu. E isto deixa-nos na posição ideal para explicar um pormenor acerca do falecido. O seu talento não era o de seduzir. Não era um sedutor. As pessoas sentiam-se bem quando consigo, apenas isso. Os sedutores fazem com que as pessoas se sintam, muitas vezes, algo que não são. Um pouquinho mais bonita, muito mais inteligente, etc. Positivo apenas fazia com que as pessoas se sentissem bem. É simples, não há, na verdade, muito mais a explicar. Pois estava o personagem com esta rapariga, chamemos-lhe, Júlia, e ao sentir a resistência da mesma baixar, pensou se estaria a “usar” o seu talento para a conquistar… estaria? Não sabia. Portanto, qual a única coisa que poderia fazer? Ir embora. Claro que não o fez, e nessa noite houve muita energia de cada um para o outro…

Continuando, não foi difícil encontrar emprego pois acabou por ser convidado para trabalhar no sítio onde tinha estagiado. Um orfanato, para ser mais preciso.

- Pá, isto já não era o mesmo sem ti…

Passou-se um ano, passaram-se dois, e quis o destino… ou melhor. Quis a inevitabilidade das coisas, já que teria de acontecer mais cedo ou mais tarde, que alguém de fora reparasse no talento de Positivo.

- Ele é tão simpático! Mas não é graxa, percebes?

- Sim, sim Julieta! E então?

- Olha, fofa, e então – respondeu Jacinta, sacudindo a farinha do seu pastel de feijão. Estavam sentadas na sala de chá da primeira, envergando os seus vestidos aos quadrados que, em conluio com o penteado, presenteavam quem tal teatro observasse, o cliché do que é ter irmãos com filhos – acho que ele é a pessoa ideal para discursar na nossa festa de angariação de fundos! – podíamo-nos questionar se foi aqui que alguém colocou um revolver na mão de Positivo, e o disparou, à Kurt Cobain, debaixo do queixo… mas não terá sido… Aconteceria mais cedo ou mais tarde. Quis isso a inevitabilidade.

Escusado seria dizer, foi um sucesso. Claro que este talento de Positivo não era algo que se espalhasse às massas, portanto os seus ouvintes, apesar de gostarem do personagem, não se sentiram de imediato completamente cativados. Isto, claro, até que o foram cumprimentar, e por uns largos minutos não conseguiam sair da sua beira…

- Foda-se ó pá, ‘tás popular! – disse Jaime, num dia de Outono. Positivo estava no quarto-de-banho a defecar, e por isso o seu amigo e companheiro de trabalho teve de gritar.

- O quê?

- ‘Tava a dizer que ‘tás popular! – repetiu Jaime, quando Positivo voltou da casinha.

- Então?

- Nesta semana chegaram duas propostas para duas palestras e uma outra para visitares um orfanato em Vale de Cambra.

- Vale de Câmara?

- Cambra!

- Isso é onde? – perguntou Positivo, realmente curioso.

- Sei lá ou o caralho… Ah, espera, diz aqui que pertence a Aveiro…

Positivo percebia, e não percebia o porquê destas chamadas, que rapidamente se tornaram numa constante. Percebia, pois conhecia a sua arte, mas não percebia… bem, porque talvez não quisesse perceber… Tentava ir sempre, pois era algo que o apaixonava, poder contribuir para o bem-estar de crianças que tinham tido menos sorte que os demais.

Dividir o seu percurso em passos torna-se complicado, pois pode ser difícil escolher que acções terão sido passos ou não. Mas se trabalhar foi o primeiro, ser convidado para a primeira palestra, o segundo e convidado para visitar outras instituições, o terceiro… o quarto terá sido quando Positivo foi convidado, pela primeira vez, para passar três dias numa instituição que não um orfanato.

- Orientação de estagiários no Apoio à Vítima?? Que caralho é que tens a ver com isso? – perguntou Jaime, a rir. Jaime abria sempre o correio de Positivo, que não se importava. Jaime era assim.

- Sei lá pá… – mas sabia… “Começou…”, pensou, no mesmo instante. Não sabia se estava contente ou triste. Sentia a pressão em si, e não sabia se tudo aquilo fazia muito sentido. Colocava a si mesmo a questão que, alguns anos mais tarde, muita gente viria a colocar. “Sou um bruxo ou quê?...”. Foi lesto, feliz, ou infelizmente, em descartar esta hipótese. Pois facto é que não disse que não àquele convite, tampouco aos outros que começaram a chover, já não apenas no seu consultório, nas mãos de Jaime, mas também na caixa de correio de sua casa. Sentia cada argumento como uma desculpa reles. Sabia a verdadeira razão por detrás de tudo, mas admiti-lo, ou sugeri-lo… tinha medo da maneira como o poderiam julgar. “Quem é que tu pensas que és?” ouvia os seus ouvidos dizer para bem dentro da sua mente.

Assim, semanas eram planeadas em que Positivo, tentando fazer o máximo que podia sem faltar ao seu trabalho no orfanato, encetava tarefas como orientação de estagiários, sessões de esclarecimento de relações interpessoais (umas das célebres desculpas), supervisão, entre muitas outras. Como dito, permanecia no orfanato, e isso obrigava-o a fazer todo este trabalho extra em horário pós-laboral, nos fins-de-semana ou então, porque tinha de ser, faltando…

Eis que o quinto e penúltimo passo… não… se pintar o tecto do seu quarto de vermelho-sangue foi o último, este quinto passo terá sido o antepenúltimo… eis que o quinto e antepenúltimo passo da sua VIDA nos termos em que está a ser contada se aproximava gigantemente, até que o abraçou, e fê-lo duma maneira tão forte, que Positivo não teve como dizer adeus. Nem quis. Recebeu uma carta do Ministério da Saúde a pedir uma audiência. Dessa vez não penso “Começou”, por duas razões. A primeira, prende-se com o facto de que tudo tinha já começado e a segunda com o facto de nunca ter antecipado o que lhe ia ser proposto. Daí ter ficado quase tão surpreso como ficou quando, alguns anos mais tarde, lhe propuseram a atribuição do estatuto de Técnico de Vibrações Positivas.

- Gostaríamos que abandonasse o seu posto no orfanato e trabalhasse directamente para o Ministério da Saúde. – propôs o engravatado.

- Hã? Como? A fazer o quê? – perguntou Positivo, que estava de ressaca, por acaso.

- Como Supervisor de Rendimento. Todos os meses vai estar em sítios diferentes, sem fugir muito à sua zona de residência. Isto é, viajará por toda a Delegação Regional do Centro. Quero dizer, todos os meses damos-lhe o seu plano, consoante o sítio onde achemos que seja necessário intervir. Que diz?

- Hum… não sei… nem sabia que isso existia…

- Mas existe…

- Então… mas seria mais ou menos o que já estou a fazer, mas a tempo inteiro, certo?

- Mais ou menos…

- Então… porque é que me estão a pagar três vezes mais? – perguntou Positivo, olhando para o contracto que aguardava, impacientemente, a sua assinatura. Os engravatados riram entre si e tentaram partilhar o mesmo riso com o personagem, que lhes devolveu uma pergunta muda.

- Bem… – começaram, percebendo que estava a ser genuíno – Você está, para todos os efeitos, a subir na carreira.

Positivo começou então esta nova etapa na sua VIDA. Todos os meses davam-lhe um novo roteiro, de todos os sítios que teria de visitar. As desculpas, ou pretextos, para a sua visita apresentavam-se de todas as formas. Seminários, orientação, supervisão, entre muitos outros, e o nosso amigo fazia das tripas coração para dar o melhor de si, e isso, felizmente, funcionava. Porém, é justo dizer que não eram raros os dias em que chegava a casa completamente esgotado. Por vezes chegava ao seu apartamento nos arredores de Lisboa, por volta das 20h, e ia directamente para a cama, sem sequer jantar. A sua conta bancária, satisfeita, dava a ilusão que tudo corria bem, apesar de Positivo raramente ter oportunidades de gastar o imenso dinheiro que ganhava. Estava a ficar rico, mas o dinheiro sentava-se, imóvel, pedindo um pouco de contacto, que o personagem não tinha oportunidade de dar. Assim andou por uns três ou quatro anos, até que as diversas instituições que visitava, cansadas das desculpas que tinham de inventar, e cansadas da maneira como poderiam rentabilizar tão mais a presença de Positivo se este não tivesse de se ocupar com actividades fachada propostas pelas mesmas, começaram a pressionar o Ministério para a atribuição de um novo estatuto para Positivo. Inicialmente, pediam apenas para que trabalhasse como um agente livre, que fizesse o que, na hora, achasse mais conveniente junto de cada instituição. O governo, obviamente, não queria dar esta liberdade. Muito a explicar a muita gente, não se poderia simplesmente ter alguém como agente livre, era necessário um monte de papelada a explicar as funções deste indivíduo.

Certo dia, os pássaros preparavam-se para abandonar Portugal, com suas malas feitas e despedidas agendadas, João, director dum CAT em Torres Vedras, enquanto tomava uma Água Castelo com gelo e uma rodela de limão, teve a ideia que nós conheceremos como o penúltimo passo na VIDA de Positivo.

- Técnico de Vibrações Positivas? Você está a brincar connosco? – perguntaram os engravatados. Eram uns cinco ou seis, sentados em fila, cada um com a sua pasta a seu lado, como o estereótipo assim ordena.

- Não estou a brincar – retorquiu João – Toda a gente sabe que é isso que ele faz! Ele tem uma técnica qualquer que ainda ninguém conseguiu descortinar e que deixa, simplesmente um melhor ambiente onde quer que vá! – e pronto, foi o início desse longo processo que, após um ano e meio se deu mais ou menos por concluído. Mais ou menos pois durante outro meio ano seria uma experiência. Mas “first things first”, como diriam os nossos amigos ingleses. Não soa tão bem em português… as primeiras coisas primeiro…

- Técnico de quê?? – perguntou, abismado, Positivo, naquela noite. Estava sentado em sua casa a ver televisão, e tinha acabado de receber a visita de João, alguém com quem trabalhava frequentemente, mas de quem não era, propriamente, amigo. Daí que tenha estranhado o convite que João fez a si mesmo de aparecer. Tinham passado seis meses desde a visita deste aos engravatados. Apesar de, como sabemos, ainda terem mais doze meses pela frente antes da aceitação, esta pessoa empreendedora começava a perceber que era uma possibilidade, e só aí contactou Positivo, que permanecera, até então, na mais escura sombra no que a este assunto diz respeito.

- Sim! Vá, você sabe que é verdade, por isso não se faça de surpreendido! Ouça, eu ando em negociações com aqueles gajos há meses, e hoje demos um passo gigante pá, eles ‘tão a pensar avançar com isto… – disparava, entusiasmado, João. Positivo, sentado no seu sofá, num dos poucos momentos que tinha livres, bebia uma cerveja, comida tremoços, e via o Benfica-Estrela. Via, pois deixou de ver. Mesmo depois de João ter abandonado o seu apartamento, os olhos do personagem continuaram pregados ao pequeno ecrã, mas a sua mente apalpava terreno um pouco por todo o lado, digerindo a novidade. “Técnico de Vibrações Positivas… foda-se…”, pensava, incrédulo. Estava contente, mas estava renitente. Tinha medo. sentia-se bem em ajudar, mas nos últimos tempos chegava a casa um pouco cansado de dar o melhor de si. Pois afinal de contas, e não obstante o seu talento, também se sentia triste, por vezes. E quem é que uma pessoa triste anima? Ninguém, a menos que falemos daquele grupo de pessoas cuja maneira de se animar é sabendo que há alguém numa pior situação… E como, para a maioria das pessoas, uma pessoa triste não é muito animadora, Positivo dava o melhor de si para contrariar os seus próprios sentimentos, encenando sorrisos, encenando a sua própria realidade interna.

À medida que o tempo passava, Positivo sentia a energia crescer ao seu redor. Não a energia que ele, ok, espalhava, mas a energia, o fulgor de todos com quem trabalhava que, conscientes do processo por que Positivo passava, não podiam esperar pelo novo estatuto. Se nesses momentos sentiam a ajuda incrível do nosso amigo, ainda que “desperdiçando” o seu tempo com meros… ensinamentos, a ideia do que poderia acontecer, do que poderiam receber uma vez que a sua única função fosse melhorar o ambiente estava para lá dos seus sonhos…

Assim, uma belo dia, em que os pássaros permaneciam calados, Positivo, ao chegar a Santarém, onde daria uma acção de formação sobre ética do trabalho, vê, na instituição que visitaria, um número anormal de carros. Mais, muitos mais. Entra, não vê ninguém… sobe a escadas, respira fundo e, ao abrir a porta, vê largas dezenas de pessoas, que desatam a gritar “parabéns”! Tinha acontecido. Ele percebeu de imediato, questionando-se como o Ministério poderia alinhar em algo assim, e deixou-se levar pela euforia que via ao seu redor, festejando… sem perceber que as pessoas ao seu redor muito mais alegres estavam com a novidade do que o próprio Positivo.

- Como é que foi isto tudo, pá? – pergunta Positivo a João. Estavam na varanda do Centro de Saúde de Santarém a fumar um charuto trazido pelo amigo.

- Olhe…

- Olha… já é alturinha de nos tratarmos por tu, não achas? – interrompe Positivo, com um sorriso.

- Ok, ok. Pá é o seguintecomo te fui dizendo, fomos batalhando com o Ministério para que te libertasse de todas essas tretas que andavas a fazer… ok, ok, eram, e são importantes – corrige João, devido ao olhar de Positivo – mas a questão é que qualquer pessoa as pode fazer… Sendo assim marcamos várias sessões com os gajos, em que vinha sempre alguém diferente, duma instituição diferente, servir, vá lá, como uma testemunha do teu desempenho… Eles aceitaram, mas estamos com rédea curta…

- Como assim?

- Todos os sítios onde fores vão ser alvo de monitorização… vão passar testes de rendimento antes e depois das tuas visitas, fazer entrevistas, visitas surpresas, etc… Isto porque os primeiros seis meses serão um período experimental… Ah, e os gajos da televisão querem falar contigo! – alertou.

- O quê? ‘Tás a gozar! Para quê?? – perguntou, incrédulo, o nosso amigo a poucos minutos da fama…

- Que é que achavas? Que o Ministério cria uma posição que não existe em mais lado nenhum no Mundo e ninguém vinha fazer perguntas? Não marquei nada por ti, mas não estranhes se amanhã fores interpelado por eles no Ministério.

- Que é que eu vou fazer ao Ministério? – perguntou o personagem.

- Foda-se pá, parece que andas na lua. A partir da próxima semana tens uma profissão nova! Não sei quanto vais ganhar, mas tenho a certeza que vão ser balúrdios, cabrão… Mas isto para dizer que o resto desta semana tens não sei quantas reuniões no Ministério… – largou João. Positivo não conseguia perceber como tudo isto acontecera à sua margem… Nem imaginava que tal fosse possível. O que é certo era que, se dependesse de si, manter-se-ia como Supervisor de Rendimento, ou mesmo “mero” psicólogo. Afinal de contas, quem era ele para se achar digno da posição de Técnico de Vibrações Positivas?... São tempos estranhos…

Esses 6 meses de experiência acabaram por se resumir a 4 até que a nova posição de T.V.P. foi oficialmente admitida. Facto é que os dados obtidos através do inúmeros testes foram muitos reveladores do desempenho de Positivo. Tanto que muita gente no Ministério chegou a pensar que se tratava de resultados arranjados, pelo que convocaram inúmeras reuniões e entrevistas com as pessoas com quem Positivo trabalhava, como forma de averiguar a veracidade dos resultados obtidos. Reuniram-se também várias vezes com o personagem, factor que muito influenciou para o aceleramento de todo o processo.

Tudo isto resultou numa mediatização que nunca esperou acontecer. Era convidado várias vezes para falar na televisão, tinha uma rubrica semanal numa estação de rádio e os convites para visitas a instituições inundavam a sua caixa de correio. Tinha acordado que apenas seguiria aqueles que o Ministério encaminhasse, pelo que lhe custava ter de dizer que não a alguns. Porém, sem muita gente saber, lia todos, e por vezes não conseguia resistir a aceitar. Era um erro, era sempre um erro, mas um erro que ele cometia várias vezes. Era um erro pois havia sempre alguém que sabia, e quando confrontado com uma rejeição, trazia ao assunto a visita não oficial de Positivo a determinado sítio… Além de toda esta comoção tinha, quase todos os dias, ao chegar a casa, pessoas à sua espera, que queriam tomar café consigo, conversar, muitas vezes entrar… A sua VIDA estava a acontecer a uma velocidade impressionante, e quando deu por si, estava a trabalhar uma média de 14h por dia… Isto pois, como não podia estar com toda a gente a toda hora, decidiu abrir um consultório. Recebia grupos de pessoas não muito grandes em blocos de 45 minutos, quinzenalmente, e cobrava cerca de um terço do que outro psicólogo cobraria. Mas era demasiado.

Dava o máximo que podia de si, tinha sucesso, todo o sucesso que alguém pode desejar, e pelas melhores razões, pois este advinha do simples facto de tornar as pessoas ao seu redor mais felizes, a sentirem-se melhor. Contudo, sentia que nunca era o suficiente. A cada dia tinha mais pessoas a pedirem a sua presença, pedidos esses a que Positivo continuava a aceder muito mais do que deveria… Por isso, ia deixando de viver a sua alegria que tanto o caracterizava, de si para si, vivendo com um sentimento latente e constante de um cansaço perturbador e pesado. Passava os seus dias esquecendo a dor e ausência de prazer que sentir dentro de si, empurrando para o fundo estes sentimentos, para que pudesse assim ser o melhor, apesar de único, a fazer o que fazia… Progressivamente ia deixando de sentir prazer em ajudar as pessoas, em fazê-las felizes, pois a cada vez que observava um resultado do seu trabalho, os pedidos multiplicavam-se e a constatação da miséria que existia ao seu redor e que, nem ele nem provavelmente ninguém, conseguiriam concertar era demasiado massacrador. Não se permitia sonhar, pois a realidade das coisas era demasiado óbvia…

Por isso um dia, o Positivo matou-se.

Abandonou o Hospital de Setúbal nessa tarde… o sentimento de dever cumprido era algo que já não conhecia muito bem. Da viagem de 4 minutos até ao seu carro, 3 pessoas o interpelaram. Não conseguia, não tinha tempo. Tinha, a começar no espaço de uma hora, em Lisboa, sessões de terapia de grupo que se arrastariam até às 21h.

Quando saiu do seu consultório, a ideia de que não teria ninguém à sua espera em casa seria, por um lado, perfeita, e por outra a constatação da VIDA horrível que vivia… por um lado, pensava em não ter ninguém à sua porta de casa a pedir minutos do seu tempo, o que seria bom e relaxante, uma vez que fosse… por outro lado, pensava em não ter ninguém à sua espera dentro de casa, apenas o pesado vazio, o pesado sentimento de solidão que preenchia os poucos momentos em que estava sozinho. A VIDA que levava não lhe permitia manter uma relação. Sem o saber, Positivo tinha optado, fazia muito tempo, em fazer as pessoas ao seu redor felizes, antes de se fazer a si mesmo. Pensou, ingenuamente, que tudo seria possível, mas não foi.

Assim, chegou a casa nessa noite, e as paredes relembravam-no constantemente que mais ninguém ali esperava por ele. O pensamento bailava na sua mente, como tantas vezes antes o tinha feito. Em tantas vezes antes, Positivo fez tudo menos puxar o gatilho. Os rostos dos seus colegas, das crianças com quem trabalhava costumavam fazê-lo parar. Ninguém sabe, nem saberá o porquê de, naquela vez, não o terem feito. Positivo chorava, sentado na sua cama, com o cano encostado à sua pele. A dor era demasiado forte, e sentia-se esgotado, sem forças, sem Energia…

No dia seguinte ao anúncio que chocou Portugal, a mesma jornalista, anunciando o funeral duma das pessoas mais queridas do povo português, concluiu a notícia que tinha dado no dia anterior.

- Confirma-se que Positivo, Paulo Olívio Soares Ilha, cometeu suicídio. As autoridades não quiseram adiantar mais quanto ao método, mas vizinhos falam de terem ouvido um disparo. Podemos ainda dizer que… – voz treme e esforça-se por não chorar. A mesma jornalista tinha, certa vez, entrevistado a fantástica pessoa que fora Positivo… – Junto do corpo de Positivo foi encontrado um bilhete dizendo apenas… “Sempre tentei dar tudo o que podia. Mas devia ter dado apenas tudo o que podia”.

FIM