domingo, 27 de janeiro de 2008

16

Passou uma semana. Chego a duvidar se percebeu a genialidade da minha mensagem. O ambiente em casa, esse, permanece o mesmo. Uma mistura de sorrisos mal disfarçados e de caretas genuínas. O que estranho… temos tido mais sexo do que o costume, bastante mais. O processo tem o seu quê de belo. Deito-me, sempre mais tarde que ela e muitas vezes “torcido”, tento dormir. Ela acotovela-me para eu me chegar mais para o meu lado, mas deixa o cotovelo permanecer em cima da minha bacia. Suave e gentilmente, pego na sua mão e faço-a deslizar até os meus abdominais. Ela abre a mão. Sinto que sente as linhas que sulcam a minha barriga, e faço sua mão descer um pouco. A partir daqui, é mais ou menos seguindo a lei do improviso. Por vezes roda rapidamente e ataca-me, outras vezes masturba-me, apenas, outras vezes fá-lo um pouco e puxa-me titubeantemente para si, outras vezes sou eu, outras vezes…

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O mais estranho, mas que nem estranho, é o facto de, ao acabar, tudo volta ao normal. No dia seguinte acordamos e conversamos o indispensável, não há sorrisos, não há merda nenhuma. Tenho reparado, contudo, na sua expressão cada vez mais triste. Em pensamentos mais mórbidos e radicais imagino como seria se se suicidasse. O quão esmagado pela culpa eu me sentiria. Claro que no momento seguinte afasto para longe estes pensamentos ridículos, convencendo-me do quão impossível isso é de acontecer.

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Quando acabamos de fazer amor, ou sexo, ou seja o que for, permaneço, muitas vezes, e contrariando o estereótipo acerca dos homens na cama, a olhar o tecto, reflectindo. A minha mente leva-me para sítios que me fazem gostar menos da minha mulher, pela sua hipocrisia. Suponho que esses sítios para onde a minha mente me leva sejam ela própria, onde a lei é minha e sou senhor. Penso que é hipócrita, talvez até falsa, pois é capaz de passar o dia todo sem me falar, mas ao fim da noite, vem ter comigo, ou eu vou ter com ela e esta não recusa, cedendo ao instinto que temos dentro de nós. Sinto isto como uma VIDA dupla de posições. E sinto-me, especialmente, nestes momentos, feliz comigo e com a decisão que tomei, ou fui tomando, de ser eu mesmo. Levanto-me, acendo um cigarro. Penso se tive azar de, sendo eu mesmo, levar uma VIDA que pode não agradar a tanta gente, mas penso que, não só não temos o dever de agradar a todos através da infidelidade a nós próprios, como não é uma questão de sorte ou azar ser quem somos. Somos o que somos, ponto final. Não é uma questão de sorte, mas, creio, de natureza.

Acompanhante de Luxo

Acompanhante de luxo. Prostituta. Puta… Acompanhante de luxo? Não sei, já nada sei. No início pesava saber, e pensava que o sabia com precisão. Acompanhante de luxo… “Só vais com eles a algumas festas e tal, tomar um copo, etc, nada de mais” – diziam-me. Eu acreditava piamente. E de facto era verdade, não tinha de fazer mais nada. Não se ganhava mal, mas continuava a ter de pedir dinheiro aos meus pais que, pobres, faziam das tripas coração, para conseguir manter-me a mim e ao meu irmão. Nunca vivêramos bem, e sempre tivera de trabalhar, ajudando assim aos gastos. Mas estudando longe da Guarda como estudava, nem sequer podia ir a casa tantas vezes como queria, pois o preço das viagens assim não o permitia. Pelo que enveredei por este caminho que me parecia, que sempre me pareceu, como um caminho com retorno, um caminho suave com bons ordenados.
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Tudo começou com um senhor muito simpático, dos seus 60 anos, com quem fui sair certa vez.
- Sabes, estou hospedado no Astoria.
- Ah… Disseram-me que aquilo é giro!... – respondo eu na minha mais pura inocência.
- Podes vir comigo, se quiseres. – aqui, claro, percebo o que quer de mim. Mais do que mera companhia para dizer umas piadas. Mais do que eu queria dar. A minha expressão tem de ter sido de extrema surpresa, pois apressou-se a pedir desculpa pela brusquidão, dizendo de seguida que realmente gostava muito de mim, e que até me podia ajudar… e nesta altura tira da sua carteira um cheque.
- Não leves a mal. É só uma maneira de nos ajudar-mos mutuamente… O que quiseres… – diz-me, com a caneta na mão, pronta a atacar o papel. Digo que não quero nada, mas ele escreve qualquer coisa. Levanta o cheque e vejo a quantia de 600 euros. As minhas emoções entram em revolução. Não sei o que sentir. Sei que não é nenhuma riqueza, mas penso no quanto poderei ganhar numa hora, ou menos… penso nos meus pais, em casa, a tentar aquecer-se na lareira por não terem dinheiro para comprar um sistema de aquecimento. Penso, penso…
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Na manhã seguinte, lembro-me de acordar, já na minha cama, com uma estranha sensação de sujidade. O senhor não foi bruto, estúpido, não foi nada, mas recordo-me do seu corpo nu e engelhado em cima do meu, a entrar e a sair em mim, e lembro-me de fechar os olhos, não por prazer, como provavelmente pensou, mas para tentar fugir dali o mais rápido possível. Acordei com a sensação de ter perdido algum amor-próprio. Acordei.
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A partir daí as coisas sucederam-se a um ritmo estranho. Começava a receber chamadas directamente de pessoas interessadas, não da empresa, começava a receber cada vez mais e mais propostas, cada vez mais chorudas, propostas que não conseguia recusar. Com racionalizações constantes, com desculpas estúpidas e esfarrapadas entregava-me por uma hora a troco de quantias nunca sonhadas. Agia como um robot. Rir aqui, ser sensual ali, ser inteligente acolá.
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Acompanhante de luxo… Prostituta… Puta… Volto a pensar nisso. Estou deitada na minha cama de hotel, olho o tecto que, parado, me devolve uma imagem fria, inerte, como se de um espelho se tratasse. É Sábado. Penso que comecei nesta VIDA há dois meses, e fruto da minha crescente “fama”, ainda nem fui a casa visitar os meus pais. Que desculpa dou a mim mesma agora? Ainda que chegasse, e desse todo o dinheiro aos meus pais, teria sido digno? Não sei, especialmente porque não sei se a razão pela qual comecei era a razão que contava a mim mesma, ou outras que desconheço. Terá sido um gosto aparentemente desconhecido pelo novo, pela aventura?... Terá sido um desejo de me sentir como um pedaço de carne, como um camaleão constante, adaptando-se a cada cliente. Como uma mulher atraente e cativante.
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As perguntas bailam em minha cabeça. As respostas não as sei.

sábado, 26 de janeiro de 2008

BorderLine

Estou em desalinho com o resto do mundo. Sinto-me inadaptado a tudo o que me rodeia, e a tudo o que tento rodear. Ela começou por me rodear, elas vão começando por me rodear, eu vou-me apaixonando. Depois começo por querer rodeá-las. Depois apenas as rodeio e apenas são rodeadas por mim. Não quero, mas é mais forte que eu, e faz com que todas se afastem de mim mais tarde ou mais cedo.
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No café, peço uma água das pedras e penso nestas merdas. No porquê de ser como sou, no porquê de ter esta obsessão fácil de conquistar, e no porquê deste medo que me consome, o medo da solidão e traição, o medo… elas percebem rapidamente, quando passamos a fase da sedução, e começo a querê-las só para mim. Umas perdoam e compreendem, outras não, mas vão todas embora.
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Penso na relação que tenho com Catarina. Talvez seja normal que, mais cedo ou mais tarde, duas pessoas iguais se juntem, e tudo façam para se destruir uma à outra. Quando olho para ela, quando a ouço berrar comigo, algo mais forte que eu vem ao de cima, algo primário, quase animal. Quero berrar mais alto, quero-lhe bater, quero ameaçá-la. Poucas vezes me controlo. Quando está tudo bem, não está tudo bem. Quando está tudo bem, é uma espécie de pausa, de tempo à espera do próximo problema. E vivemos assim, constantemente a arranjar merda para dizer, constantemente a fazer o outro sentir-se da pior maneira possível.
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Uma vez disseram-me que eu tinha um perturbação. Borderline, disse-me.
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- Vou-me embora e nunca mais fales comigo, borderline do caralho! – disse a Marta, segundos antes de sair de minha casa, batendo com a porta. Recordo-me de permanecer em pé, a olhar a porta de madeira branca, a pensar nas suas palavras, e nas minhas próprias palavras que originaram essa discussão.
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- Vais sair com essa saia?
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Bordeline. Borderline?
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Fui pesquisar. Vi-me retratado em alguns aspectos, e tentei negar os restantes. Não sei se consegui.
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O que sinto? O que sinto, realmente, é esse medo que me acompanha dia após dia, que é o medo de acordar e não ver ninguém ao lado. Agora estou com Catarina, mas porque estou? Estou porque tenho alguém que alimente uma espécie de solidão conjunta, alguém a quem destruir, alguém que me destrua. Porquê? Quero paz, como quero paz. Mas apenas tenho paz quando faço o que faço desde criança de vez em quando, e que escandalizou os meus pais. Nesses momentos, a minha mente voa, e foca-se apenas num sítio, abandonando todos os pensamentos que tenho e não quero ter, que não devo nem posso ter.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Liverpool

Amigos, apenas proximo Sabado aparecera uma estoria por estas bandas. Estou em Liverpool, e sem o meu pc. Entretanto podem ir visitando o meu outro blog:
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quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

15

Boa merda. Não acredito que foi capaz de me fazer isto… [Soa, algures, Silj Nergaard]. Tenho, diante de mim, o quadro, com a mensagem que me faz sentir algo cujo significado não me apetece definir. A um metro, entre mim e o mesmo quadro, uma mesa, onde conversam dois bêbedos com aspecto de revolucionários da treta. Não vale a pena referir o tema. Os revolucionários da treta de Hetwestenland falam de política e de putas. Os revolucionários não falam. Dou um passo, sem nunca largar, com o olhar, a merda do quadro, e sento-me numa cadeira, entre os dois revolucionários da treta. Deixo de os ouvir falar, e reparo, pelo canto do olho, que olham para mim. “Puta do caralho, cobarde do caralho” – penso, enquanto penso, claro no quão astuta a gaja consegue ser. Que faço agora, se prometi a mim mesmo que não deixava nenhum recado para Godelieve?

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- Nós estávamos a conversar! – atira o gorila da direita. Chega até mim o forte odor a Mestiba, a bebida nacional.

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- Pois continuem, estou-me a cagar para a política. – digo, sem muito pensar, e sem largar os olhos da caligrafia da medusa. Sorrio para comigo ao pensar que se já deitei a perder promessas feitas a outras pessoas, não sou eu mesmo que me vou impedir neste caso.

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- Estás-te a rir? – diz-me. Quer problemas. Isto é tudo menos o que preciso. Pela primeira vez arranco os olhos do pequeno pedaço de folha branca. Levanto-me, sem nada dizer, viro-me de costas. – Como é que dizes que te estás a cagar para a política, temos de lutar!! – bem, este “temos de lutar” foi um pouco demais. Vejamos… sei bem quem é a pessoa que está diante de mim. Não quem ele é, mas o que ele representa. E não quero saber se estou a seguir estereótipos. Este é daqueles que adoram demonstrar insurgir-se contra o ditador, adora falar, adora ameaçar a revolução, mas, no final, nada faz, e certamente ainda é pago pelo governo para não agitar as marés mais do que realmente o faz. Estava em andamento em direcção ao bar, encetando a saga do pedido de mais um whiskey, mas volto-me de novo. Dou um passo, decidido, e apoio-me com os dois braços na mesa, olhando, com meus olhos a menos de um palmo dos seus. A sua expressão combina a surpresa com a raiva duma maneira quase harmoniosa.

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- Ouve… eu estou-me a cagar para a política, e se queres lutar, levanta o cu e organiza-te. Eu estou-me a cagar para a política e, julgando pelo teu cheiro, tenho a certeza que a política também se está a cagar para ti! – belo! O lugar que a surpresa ocupava na sua expressão rapidamente é totalmente preenchido pela raiva, levanta-se de rompante, levanta o braço, mas o seu companheiro, que ao mesmo tempo se ergue, aguenta-o. Sinto alguns olhares mexerem no meu perfil, e quando me volto, percebo serem solidários. Estereótipos? Chego ao bar em 3 segundos, e a cada passada sinto injecções de adrenalina que chegam tardias ao meu peito. Chegassem mais cedo e, quem sabe, nada teria dito. A adrenalina mexe-me as emoções e sinto uma alegria enorme, sinto-me a sentir, sinto-me bem vivo dentro de mim, não mais adormecido. O “eu” antigo nunca teria feito algo assim. O “eu” de agora tem razão? Nenhuma, fui eu que fui ter com eles, não o contrário. Interessa? A mim não interessa nada. Fui espontâneo, fui eu, sem os invencíveis trâmites da reflexão em exagero que marcou toda a minha VIDA. Curioso como, nestes momentos em que faço coisas mais estúpidas, tenho mais respeito por mim. Não sei se dantes tinha ou não respeito por mim. Caso não tivesse, não seria de estranhar, não tinha respeito porque não era eu próprio, era uma cópia de algo desconhecido. Caso tivesse, não era por mim que tinha esse respeito, mas por essa cópia.

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Com o whiskey vem a base de cartão beje, que brevemente levará consigo uma mensagem. Peço uma caneta, que deixa parte do seu sangue na base já marcada. Bebo o que falta de uma vez, levanto-me dos altos bancos, e volto a encaminhar-me para o quadro. Os revolucionários da treta voltam a parar de falar e desta feita são ambos que me miram ferozmente. Lanço um sorriso irónico, ao mesmo tempo que levanto a mão, mostrando a base que estava prestes a alcançar aquela espécie de hall of fame da memória. Debruço-me sob a mesa, quase cheiro, desta vez não o suor e lixo entranhados na pele, mas a animosidade dos meus caros amigos.

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Estou fora do bar. A mensagem ficou. Acendo um cigarro, sigo caminho.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

The O.C.

Vivo com uma maldição que me atormenta dia após dia. Cada frase destas que escrevo foi escrita três ou quatro vezes, para ter a certeza que fica bem. Quando saio de casa, caminho uns passos, o coração bate acelerado. Chamo-me à razão, não consigo. A cada passo que dou sinto-me mais nervoso e inquietante. Nervoso. Quando consigo caminhar mais que 20 metros, o bater desenfreado do coração é acompanhado por umas gotas de suor na testa. Tenho de voltar para trás, e confirmar se realmente a porta ficou bem fechada.

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Não tenho quem me consiga ajudar. Esqueci psiquiatras, psicólogos, esqueci tudo, pois de tudo já tentei, sem qualquer resultado. Os meus pais começaram a perceber quando, era eu criança, não conseguia comer nenhum prato que não estivesse devidamente organizado. Se uma ervilha tocava no arroz, era para mim impossível comer aquilo. O meu pai batia-me, como me batia, não percebendo algo que eu próprio não percebia. Em dias em que estava mais irritado, enfiava-me a comida na boca, acabando por me ver vomitar mesmo à sua frente. A minha mãe percebeu mais rápido que era algo que não mudaria, e fazia por me deixar tudo separado. Apesar de tudo, foi a altura em que fui mais feliz, já que se manifestava apenas em momentos que não influenciavam a minha VIDA. Apenas nas refeições. Quando comecei a não conseguir comer com os talheres comuns da casa, e quando descobriu na minha mesinha de cabeceira um par de talheres que levava para a cantina da escola, começou a preocupar-se mais. Levou-me a uma série de terapeutas, e quando viu que, com o passar do tempo, eu apenas piorava. Levou-me a um… bruxo. Nada.

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Isso fez com que tenha muitos poucos amigos, nunca tenha conseguido ter uma relação íntima com ninguém, e com que nunca tenha beijado ninguém. A medicação ajuda, mas não muda. Ajuda, mas não muda. Nada me muda.

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As obsessões são tantas, e estúpidas, girando a maior parte acerca duma incerteza constante que se abate sobre mim. “Terei fechado bem a porta? Estará tudo limpo e imaculado como preciso que esteja? Está qualquer coisa que eu faça bem feito?”. O resultado destas estúpidas obsessões leva-me a confirmar tudo um sem número de vezes. Não o faço sempre em números ímpares, ou um número certo de vezes, como tantas vezes se vê nos filmes, faço apenas o número de vezes que acho necessário para confirmar realmente algo que podia ser confirmado à primeira.

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Tudo isto leva-me a evitar todos os locais públicos onde possa ser humilhado, onde possam reparar que não sou… normal. Algo com que os especialistas me ajudaram foi na escolha de uma profissão que se coadunasse com o meu problema. Isto é, algo em que estas obsessões se diluíssem um pouco, e 8h por dia me fizessem sentir como uma pessoa entre tantas outras, com os mesmos problemas das outras, e não com um problema que me põe na margem de toda a gente.

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Mas 8h por dia são apenas 8h por dia. O que é o resto? O que é sentir que não tenho VIDA própria e que os receios infindáveis me levam a não me envolver com quase ninguém? O que é sentir que é como se outra pessoa habitasse dentro de mim e me dissesse constantemente o que tenho de fazer?...

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

parte 14

Paatos - Happiness

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Vejo Godelieve ao fundo, está com outro homem, a beijá-lo fortemente. Aproximo-me e fico em pé, diante de ambos, a fumar um cigarro e a observá-los.

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Seria assim que reagiria caso isto fosse verdade? Acho que não. Da maneira como tenho andado, o mais certo seria… não sei. Não sei mesmo. Entro no café. O som é agradável. Há um cheiro a coco no ar, não sei de onde vem. O ar, como sempre, apresenta-se carregado, vejo nuvens de fumo a vaguear de canto para canto. Penduro a minha gabardina no canto. Escuto o que se passa ao meu redor, e tento sentir as coisas com mais intensidade. Estabeleço a comparação na minha mente. Se estivesse em casa estaria a ver televisão, muito provavelmente. Que vale isso? Mesmo que estivesse a ver algo útil, como… as notícias, de que vale, realmente, estar a par do que se passa no país, se o que se passará no futuro, a nível político, será o mesmo?

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Vejo, ao fundo, o quadro. Incrível a centena de notas, bilhetes, mensagens que vejo pendurados. Num momento penso que me será impossível descobrir um eventual bilhete. Segundos depois lembro-me do local onde disse que o poria. Sento-me no balcão, peço um whiskey.

- Algum em especial? – curioso. A primeira vez que me fazem tal pergunta.

- Hum… pode ser um Jack Daniels… – servem-me e dou um gole. Saio de mim e observo-me. O “eu” do passado veria alguém como o “eu” do presente, alguém, sozinho, num balcão, a beber whiskey, e considerá-lo-ia um falhado, um fracasso, um nada. O “eu” do presente considera o “eu” do passado um iludido. Qual está certo? Não faço a mínima ideia. Por um lado odeio Godelieve por ter agitado toda a minha estrutura, por outro lado amo-a, morro por ela, pois mostrou-me o verdadeiro “eu”, sem passado, presente ou futuro.

Incrível como sinto as minhas opiniões acerca de tanta cosia variarem a cada segundo. Gera-se um misto de pena e raiva por quem tem certezas acerca das coisas, e sobretudo, acerca de si, pois sei que isso é algo impossível. Penso na frase que soa invariavelmente corriqueira “a única certeza é não haver certezas” e sorrio, ao dar um gole, com a verdade arrebatadora que representa, como se a VIDA e a condição humana não pudesse ser melhor explicada. Não sei que rumo tenho, mas isso agrada-me.

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Penso no que prometera a mim próprio. “Não deixo nenhum bilhete”. Não deixarei. Levanto-me do alto banco onde descansava e, lentamente, caminho em direcção ao quadro. A pilha de bilhetes é interessante. Sei o local onde eventualmente estará uma mensagem para mim. Como que numa espécie de masoquismo, faço por dar uma olhada a todos os bilhetes ao redor do nosso local, e apenas no final, depois de algumas gargalhadas e sorrisos, olho para onde quero olhar. Tenho de procurar bem. Nem faço ideia de como será. Não vejo nenhum bilhete com o meu nome e isso faz-me pensar que não me deixou nada. Todavia, pensando bem, recordo-me de como, talvez na realidade me chamo. Theodoor. Procuro este nome, ou o seu nome, na nossa realidade, entre o amontoado de bilhetes.

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Theodoor, deixa-me uma mensagem. Godelieve.”

Parte 13

The Cinematic Orchestra - Evolution

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“Caso continuasse nessa estrada… caso continuasse nesta estrada…” – não me saía da cabeça este pensamento. Via diante de mim uma série de destinos, de futuros possíveis, e não conseguia deixar de pensar no hipócrita que estava a ser ao recusar seguir determinado caminho, baseado no medo que tinha de como poderia mudar. O que sou, então? Apenas me conheço, apenas estou em contacto comigo mesmo, com o que sou realmente, se tiver passado pela maior variedade de situações possível. Se as evito com medo do que me possa tornar, posso estar a negar o que, talvez, realmente seja. Se passar por essas situações e me mantiver o mesmo, aí sim, sei que é o que sou. Caso contrário…

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Chego a casa.

- Querida, desculpa estes últimos momentos. Quando falei em marasmo, falava no aborrecimento em que muita gente pode cair, não me estava a colocar como mais aborrecido que qualquer outra pessoa, e não estava, sobretudo, a deixar as culpas cair em ti…

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- Não faz mal amor, eu percebo-te perfeitamente! – responde, e damos um longo e apaixonado beijo.

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Chego a casa. Desta feita na realidade. Penduro a minha gabardina no bengaleiro, juntamente com o chapéu. Vou ao quarto do Arjan, pergunto-lhe como vai a escola, converso um pouco com ele, ajudo-o a fazer os deveres. Ouço a minha mulher pelo resto da casa.

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- O jantar está pronto. – diz, para quem quer ouvir. Penso na conversa da manhã. Não quero de maneira nenhuma uma conversa repetida, e não me apetece repetir a ensaiada frente ao espelho do elevador. Entro na cozinha. Nem levanta os olhos.

- Olá! – digo, meio em tom de brincadeira, com uma cara de podes-olhar-para-mim-vamos-fingir-que-não-se-passou-nada.

- Olá. – responde, em tom baixo. Mal olha para mim, mas quando o faz, sinto-me incomodado. Lembro-me daquele olhar. Ou melhor, lembro-me da força e expressão que aqueles olhos podem ter, mas aquele olhar é novo para mim. Lembro-me da força dos olhos que me apaixonaram, muitos anos antes, e vejo diante de mim um olhar que nunca imaginei ver. Sento-me. Ao longo do jantar vou tentando fazer conversa, através de coisas circunstanciais, imaginado, talvez, que tudo pudesse ficar bem sem sequer mencionar o que se estava a passar. Bem, o que se estava realmente a passar, isso, nunca seria mencionado. Refiro-me ao que ela estava a ver, as reacções que eu tinha vindo a ter. Como as minhas tentativas iam caindo sucessivamente no vazio, ia sentindo crescer dentro de mim uma certa irritação, como que um menino na esperança de agradar que não recebe resposta. Vai respondendo com leves sons, e isto quando o faz.

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No final do jantar, dou um beijo a Arjan, levanto-me, e vou para a varanda fumar um cigarro, depois de me ter servido um whiskey.

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“Ela tem de suspeitar! Ando para aqui feito parvo com reacções de merda, nem sequer estou a disfarçar um caralho! Será que sou demasiado genuíno e não consigo agir normalmente sabendo o que ando a fazer? Oh, o melhor é deixar-me de merdas, porque é o que sou, realmente. Genuíno o caralho, sou é um merdas…” – vou pensando, na varanda. Apesar do conteúdo não o ser, os pensamentos surgem calmamente, e vagueiam pelos cantos da minha mente sem fazer mossa, quase como se esta já os esperasse, e quase como se eu, realmente, estivesse contente por ser um merdas.
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Volto a entrar na sala, sento-me a ver televisão. Ela vai fazendo não sei bem o quê, e acaba por ir para a cama, pouco passa das onze. O que tenho diante de mim é o aborrecimento num quadro. Do quadro faço parte eu, sentado num sofá, na mão esquerda um copo, na direita um comando de televisão, uma televisão na outra ponta e uma mesa a dividir. Estarei viciado em excitação, com uma tolerância abaixo de zero para o aborrecimento? E, pensando bem, não deveríamos todos estar assim?

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Aconteceu. Não penso nela. Ou melhor, não penso cem por cento nela. Penso mais na curiosidade que tenho em saber se ela deixou algum bilhete no café. Vou, apenas, ver. Não deixo bilhete nenhum. Verdade. Acima de tudo, vou dar uma volta, sentir o Vento na face, fumar uns cigarros, beber uns copos, falar com pessoas. Sentir.

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Levanto-me, visto a gabardina, ponho o chapéu na cabeça, e meto-me no elevador. Olho para o espelho.

- Como correu a conversa? – pergunta-me.

- Não me fodas… – atiro, enquanto acendo um cigarro, ignorando os sinais proibitivos bem visíveis.

- Não, a sério, diz-me lá, como correu? – o tom é sarcástico – Estou curioso. Temos-te de volta ou quê? Tens-te de volta, ou quê?

- Ter-me-ás de volta mais logo, quando eu for dormir. Não há grande diferença entre os estados de viver nessa altura. Apenas os olhos estão fechados… – digo, com irritação. Acabo por dizer, talvez, mais do que sinto, magoando-me, neste diálogo interno.

- Vais?

- A tua VIDA está lá em cima à espera, sabes bem onde… Podes ir… – respondo, deixando tudo dentro daquele elevador, deixando o espelho sem ninguém a o habitar. O porteiro cumprimenta-me, quase me pergunta onde vou a estas horas, mas o meu cumprimento segue-se de passadas decididas em direcção ao exterior, que atiram por terra a sua oportunidade. A cidade está agitada, muito se passa nas ruas. O Vento sopra forte, o céu está carregado. Chamo um táxi. É o mesmo taxista que me levou para o hotel com Godelieve.

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“Este tipo de sinais não existem. Pura coincidência, sê racional.”

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Entro no café.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Tal - Parte XII

Crawling up the Hills – Katie Melua

Learnin’ the Blues - Katie Melua

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Acordo. Segunda-Feira. Trabalho, trabalho, e essas coisas me esperam. A minha cabeça lateja um pouco. Olho ao longo do meu corpo e percebo que, não só estou vestido, como estou na sala. Claro. Levanto-me, dispo-me, deixo a roupa no sofá. De boxers, vou até ao canto da sala, onde ligo aparelhagem. Vamos ver… Katie Melua, sim. Soa Crawling up a Hill. Vou à varanda, acendo um cigarro. Penso se deixarei alguém bilhete no café. Penso se me deixará a mim ela algum bilhete. “Bem, acabou, é oficial” – penso, descontraidamente. Sinto alguma adrenalina fervilhar, como o meu lado mais louco a morrer lentamente dentro de mim. Não me tira um certo sorriso malandro dos lábios, apesar de me fazer duvidar. Volto costas, vejo minha mulher. Que cara, meu deus…

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- Que foi? – pergunto, ao vê-la olhar para mim como se não me conhecesse.

- Que foi? Isso pergunto eu a ti! – hei – Chegas ontem às horas que chegas, nem dizes nada, dormes na sala, acordas, roupa por todo o lado, acordas-me com a música nestas alturas… Por isso eu é que pergunto, o que é que se passa! – o tom dela não me agrada de maneira nenhuma. Imagino Godelieve a acordar agora, mandar um sorriso para qualquer lado ao pensar em mim.

- Tem calma querida… - digo, descontraidamente – Temos de fazer coisas que não estão previstas de vez em quando… senão a VIDA torna-se um marasmo total… - não me acredito que esta desculpa esfarrapada acabou de sair dos meus lábios…

- E tu ainda me dizes para ter calma! Marasmo? A tua VIDA aqui, então, dizes tu, dá-te marasmo?? – ia continuar a falar, num tom de voz crescente, mas interrompo-a.

- Olha sabes que mais, esqueci-me que preciso de fazer uma chamada! – E deixo-a a falar sozinha na sala, fechando eu a porta da varanda atrás de mim. Escusado será dizer que apenas tinha comigo o maço de tabaco e um isqueiro. Pelo que acho que deve ter ficado ainda mais chateada ao ver que simplesmente não a queria ouvir. Sorrio, sarcasticamente, ao ouvi-la barafustar sozinha. Incrível como tenho consciência da merda que estou a fazer, mas não me importo e continuo-o, qual menino rebelde. Não consigo descrever o gosto estranho que aquilo me dá. Como se Godelieve me tivesse vindo acordar de um sono, dum sonho, que era a minha VIDA, rotineira, sem altos e baixos, mas apenas um longo período de algo que eu pensava ser um alto…

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Entro na sala, toca Learnin’ the Blues. Sirvo-me de um whiskey, sento-me no sofá, e vejo as notícias. “A beber de manhã” – ouço, lá longe. Passado meia hora, visto-me, vou para o trabalho. Gosto da descontracção com que acordei neste dia. Especialmente a liberdade de fazer o que me apetece.

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O dia passa-se bem, e ao voltar, penso em ir ao café. Afasto esse pensamento, mas sinto uma ansiedade estranha ao o fazer. “E se ela me deixou alguma mensagem?” – penso. Mas penso de novo, e penso que se tudo o pouco que se passou me fez mudar de perspectiva, duma maneira que me agrada, mas que também me assusta, o que poderia acontecer, caso continuasse nesta estrada?...

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Mendigo

Oceansize – The Frame

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Está um frio impressionante. Fui-me habituando a muitas temperaturas ao longo da minha VIDA, mas… ou está cada vez mais frio (não sei se será isso), ou a idade começa a não perdoar. Durante o dia caminho por Londres, caminho todo o dia, vou pedindo esmola a este e àquele, mas é rara a pessoa que me dá alguma coisa. Caminho todo o dia para não sentir o frio, mas as pernas eventualmente fraquejam, e vejo com medo a altura em que tenho de parar. Caminho tanto que conheço toda e qualquer parte da cidade. Quando tenho de parar, vou para o metro. Viver num metropolitano não é das coisas mais saudáveis que se pode fazer, tenho perfeita consciência disso, mas prefiro viver respirando todos esses gases nocivos do que não viver de todo. São 5 da tarde, o sol já se pôs há muito tempo. Sento-me no chão, olho para as pessoas que passam, com os olhos colados no chão, com cara de cansaço, não vejo sorrisos. De vez em quando estico o braço. Quando o olhar abandona a monotonia constante em que vive, olha para mim, mas sinto-me invisível. O olhar atravessa-me ao meio, espalha-se na parede atrás de mim. Isto é quando corre bem. Das outras vezes em que olham para mim, as sobracelhas carregam-se, abanam ligeiramente a cabeça, e seguem sempre. Sou parte desta sociedade, mas não vivo nela. Vêem-me como um vírus. E será que sou?... Tomei muitas decisões erradas nesta VIDA, como tomei… mas será que tenho que pagar por elas para sempre? Será uma espécie de destino do qual não posso fugir? E devo fugir? Ou devo baixar os braços e deixar de tentar?... Em que é que estou a pensar?... Já os baixei há tanto tempo…

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Por vezes, atrevo-me a sonhar. Estou sentado no metro, vejo turistas, esses os únicos que sorriem, retirando a monotonia dos lábios de toda a gente. Londres como a segunda cidade europeia mais visitada tem turistas o ano todo. Eu conheço Londres de ponta a ponta. A matemática é simples, sonho que poderia ser um simpático e barato guia turístico. O sonho não passa ao acto, pois já tentei, e fracassei, como fracassei. O pior é a humilhação. Certa vez fui esperar à estação de autocarro e ofereci-me a um sem número de grupos para ser o seu guia turístico. Um simples “não” seria suficiente. Mas… quando esse não vem com uma gargalhada, quando se afastam a gozar-me, continuando a olhar para trás… quando o não vem acompanhado de um sinal facial que me diz que só se fossem doidos aceitariam… aí dói-me, como dói… Foi só um dia. Bastou para arrasar esse meu modesto sonho, lançando-me numa visão explícita de como nunca vou conseguir fazer parte de nada.

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O metro tem de fechar. Saio, está tanto frio. Apanho uns jornais e enfio-os por entre a roupa, tentando isolar-me mais um pouco. Vagueio entre a noite procurando alguma coisa. Alguma coisa para comer, para me aquecer, alguma coisa para alguma coisa. Toda a gente pensa, eu sei, que o que nós, mendigos procuramos, cinge-se a um par de coisas, comer, beber, drogas, seja o que for. Na verdade procuramos, ou pelo menos eu procuro, muito mais. Em cada passo que dou procuro algo. Uma espécie de futuro diferente, já ali ao virar da esquina, um futuro que nunca está lá. Terá fugido para a próxima? Claro que não, nunca existiu. Mas eu vou procurar, e procuro sempre, alimentando, a cada segundo que passa, um vazio enorme dentro de mim.

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Quando me sinto mais uma vez cansado de tanto caminhar, aninho-me num canto, perto dum banco. Encolho-me o máximo que posso, tentando assim tremer menos. Passam pessoas na rua e alguns comentam que estou a ressacar. Quase sorrio, pela primeira vez em dias, ao pensar os anos que passaram desde que deixei a heroína. Mas é assim. Onde quer que vá, o que quer que faça, levo atrás de mim uma etiqueta enorme, faço parte dum estereótipo que nunca me vai deixar fazer mais nada na VIDA.

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Começo a sentir-me sonolento e muito fraco. Já ignorei a vontade do estômago há muitas horas. É quando aparece um grupo de 3 turistas. Abro um pouco os olhos e vejo 3 jovens com os seus 22 anos, de aspecto do sul da Europa. Chama-me e dão-me uma sanduíche, dizem que lhe ofereceram muitas e que eu posso ficar com aquela. Quero agradecer mas as palavras não saem. Quero comer, mas mexo-me com muita dificuldade. Deixei de tremer há meia hora. Avisto ao longe um relógio digital, que aponta, além das horas, uma temperatura de menos 10 graus. Penso em dormir um pouco, e em comer a sanduíche depois.

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Fecho os olhos. Não volto a abrir.