sábado, 24 de maio de 2008

Experimenting

Não é uma "Estória em Vão", mas apenas uma estória experimental feita para a realização de uma curta-metragem de terror (psicológico... claro)

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Ligo a torneira. Permaneço com o olhar pregado à porcelana beje. Vejo gostas de suor misturando-se com a água fria e revolta. Sei de onde vêm mas não entendo porquê, sendo que… estou no mesmo sítio há 1h. Apoiado com ambos os braços no lavatório, penso no que se passou, no que se está a passar. Levanto a cabeça e vejo-me do outro lado do espelho. Hoje acordei como se fosse um dia qualquer… um dia qualquer… Não mais bem disposto que o normal, não menos bem disposto que o normal… Porém, a imagem que chega aos meus olhos, a imagem reflectida no espelho mostra-me alguém pálido, transpirado, com umas olheiras que sugerem 2 semanas sem dormir.

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Foda-se, tinha-me esquecido completamente que eles precisavam da farinha o mais cedo possível!...” – pensava Tom enquanto, nervoso, abria a porta do seu prédio. Subiu as escadas em dois passos de cada vez, e abriu a porta de madeira escura, entrando e atirando o casaco, de que se libertara em menos de 2 segundos, para o canto. Não via ninguém, a sala estava deserta. Sem estranhar, seguiu a luz que o levava à cozinha, onde esperava ver a sua mãe a fazer o que podia das doçarias sem a farinha que pedira ao filho. E por isso mesmo, não só Tom esperava ver a sua mãe como, e especialmente, a esperava ouvir alto e bom som, protestando com a demora. Ao entrar na cozinha, Tom viu sua mãe voltada para o lava-loiças, talvez aproveitando o tempo enquanto por ele esperava para ir lavando alguma coisa... Todavia, não se mexia.

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- Mãe? – chamou Tom, estranhando a situação… Não sabia bem porquê, sentiu-se com medo. Sua mãe permanecia no mesmo sítio, completamente estática, sem se mexer, e isso assustava Tom, pressentindo que algo havia de errado. Com medo, antecipando uma partida, talvez como castigo pelo seu atraso, Tom, deu 3 passos em direcção à progenitora, tocando-lhe ao de leve no ombro direito. Nada. Voltou a chamá-la, e nada. Reparou no quão fria sentia a sua pele e, preocupado, prostrou-se frente a si. O que via era assustador. Impossível de descrever com precisão, Tom via sua mãe, ainda sem mexer um músculo, com os olhos fechados e a mão direita sob a boca. O coração batia acelerado e preparava-se para constatar o que receava, ao mesmo tempo esperando, a qualquer segundo, acordar desse estranho sonho. Juntou o indicador com o anelar e, lentamente, colocou ambos sob o frio pescoço da mulher… do corpo que tinha diante de si. Do corpo, apenas corpo. Não sentia nada. Nenhuma batida, nenhum som, nenhum movimento. O pânico tomava conta de si e não sabia o que fazer. Tinha dificuldade em controlar a respiração e queria sentar-se, mas precisava de perceber o que se estava a passar. Sem nada dizer, saiu da cozinha, à espera de encontrar alguém que lhe pudesse explicar… algo. Abandonando esta divisão e entrando na sala, deu dois passos direcção ao sofá, onde via seu pai. A confusão que habitava dentro de si tornava-se demasiado incómoda, e vomitou no chão, ao ver seu pai com a mão direita sob a boca, os olhos fechados, completamente imóvel.

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- Pai?... – chamava, sabendo que não obteria resposta… Deu a volta ao sofá e, a medo, tocou na face tão ou mais fria que a da mãe. Reparando que a mão esquerda do pai ainda agarrava o comando da televisão, Tom voltou-se, para ver esta se ligar sozinha, automaticamente. Via apenas o formigueiro usual de faltas de transmissão até que… se viu a si mesmo, a abrir a porta do prédio, com um cara de preocupado, a subir apressadamente as escadas, a entrar em casa… horrorizado, olhou à sua volta, procurando um ponto inexistente, procurando alguém que o tivesse filmado, alguém que estivesse ali, alguém que lhe explicasse… Na ânsia de procurar ajuda, correu em direcção à varanda para chamar alguém. As ruas estavam desertas, nada se ouvia, o sol não se mostrava, apenas a lua brilhava alta, ao fundo… Como era possível, se tinha acabado de chegar e eram 3 da tarde?... Completamente confuso, olhou para o relógio. 15h. Voltou a entrar em casa, e via pela janela a luz do quente sol de Junho. Espreitava pela janela, gritava, mas as pessoas lá fora não ouviam, ninguém podia ajudar… Mais uma vez… saiu à varanda, nada… escuro. Saiu do apartamento, saiu do prédio, nada, escuro. Voltou a entrar, vendo a luz brilhante pelas janelas, correu em direcção aos quartos.

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No quarto da irmã, via a mesma deitada na cama, na mesma posição que seu pai e sua mãe. Voltou-se para o quarto do irmão, a mesma coisa imagem diante dos seus olhos desfilava, desafiadora. Era demasiado. Cansado, fechou a porta com força, numa tentativa de acordar, de arrumar os pensamentos, de acordar.

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Tenho de estar a delirar, tenho de estar a sonhar… tenho de estar a fazer algo que não seja a viver a realidade… Sinto o frio da água espalhar-se pelo meu rosto, enquanto tento esfriar as ideias, os sentimentos que percorrem todo o meu corpo e não me deixam voltar à realidade. Tenho demasiado medo que a realidade seja mesmo esta… Esfrego os olhos com força, e quando os abro, vejo-me a mim próprio, espelhado num inexistente plano, do meu lado direito… Quero cair, quero desaparecer, quero morrer… Fecho os olhos com força… mas quando os abro, não só me volto a ver, como vejo uma sombra atrás de mim…

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Tom ficou no nada, subitamente. Algo tomou conta de si. A sombra, com o indicador sob os lábios, pediu para Tom não fazer barulho, e tomou conta de si. Os movimentos de Tom fizeram seu braço direito subir ligeiramente, seu cotovelo dobrar-se. Tom via o seu corpo agir sozinho, incapaz de contrariar qualquer movimento. Nada sentia, permanecia apenas como um espectador das suas próprias acções. Via a palma da sua mão direita aproximar-se da sua face, cada vez mais parto, até que nada mais viu. Nunca mais.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Caminho

XX

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- Mas… não queres saber o nome dela? – pergunta-me ele… estamos deitados na cama, em Oslo, no quarto do hotel. A janela, à nossa direita, dá para o parque, onde, imagino, crianças brincam, atirando bolas de neve, vivendo a melhor altura da VIDA, em que tudo é tão simples e fácil…

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- Sabes que não quero… porque é que de vez em quando me perguntas isso?... – respondo, apresentando uma nova questão. Irrita-me!

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- Não sei… acho estranho… eu sei o nome do teu marido… porque é que não queres saber o nome dela? – porque será? Porque será, Alf, porque será?

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- Tu não percebes mesmo, pois não? – pergunto, manifestando a minha irritação – Será tão complicado de entrar nessa tua cabeça a realidade que quero viver dentro deste quarto, para lá das portas deste hotel?? – a minha voz sobe de tom e esforço-me por não chorar. Se nuns momentos tudo é mágico, e vivo o que realmente quereria viver… ele tem de chamar tudo aquilo que me esforço por deixar na rua, nos momentos em que o vejo, nos momentos em que estou com ele…

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- Mas… – não sabe o que dizer, nota-se – desculpa… É que não me parece justo. Eu sei o nome dele, até já via fotografia dele! – está irritado? Com que direito, se ele é que começou? – E estou contigo, só contigo, mas queria estar contigo como estás comigo! – não percebo - Não percebes que tu é que estás aqui a viver um sonho? Eu vivo esse sonho constantemente agarrado à realidade, e tu vives o sonho, o nosso sonho, que acaba por ser só teu! Foda-se! – não percebo o que quer dizer. Levanto-me. Vejo que respira com força. Nunca falamos nas coisas desta forma… sonho? Olho para ele e vejo que evita olhar para mim. Entro no quarto de banho. Baixo o tampo da sanita e sento-me. Como é possível que esteja ali, mesmo ali, a uns metros de mim, e estejamos tão longe?... Porque é que se arrasta tudo isto? Porque é que nos permitimos a este massacre constante que é… o de sentir a felicidade, o de sentir tal sentimento de pertença e paixão, mas vê-lo morrer, ou adormecer, de cada vez que nos despedimos, prometendo um próximo encontro… nos próximos meses… Apoio os cotovelos nos joelhos, estou nua. Com as mãos tapo a cara, e sinto as lágrimas, bravas, irromperem por entre os dedos. Com o passar dos anos, a frustração de ambos… a frustração de ele querer mais… a frustração de imaginarmos que podemos ter cometido um erro no passado, que eu posso ter cometido um erro no passado… é demasiado pesada. Mas o que é mais pesado que deixar de o ver para sempre?...

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XY

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- Mas… não queres saber o nome dela? – pergunto. Olho para ela, que descansa ao meu lado, bela. Os anos não passaram por si. Continua a mesma pessoa por quem me apaixonei há tantos anos. Por dentro a mesma liberdade e originalidade… pela imagem que vejo, apesar dos anos se fazerem notar, fazem-no muito discretamente, acrescentando apenas 3 ou 4… Tantos anos…15? 17, sim… Será assim tanto? Lembro-me como se tivesse sido agora. Destacados para trabalhar no mesmo sítio, vindos cada um duma ponta da Noruega… Ela de Trondheim, eu de Frederikstad… Ela tinha acabado de se casar, e eu tinha uma relação sem qualquer faísca. Eu caí primeiro. Ela resistiu muito mais tempo. Não aos meus encantos, ou às minhas investidas, pois era algo que eu tentava não fazer, ainda que tantas vezes… fosse tão difícil… Ela resistiu mais tempo, não às minhas investidas, mas à constatação de que tínhamos algo ali, entre nós, que era mais forte do que aquilo que podíamos controlar… A trabalhar em Oslo, longe de tudo e de todos, durante alguns tempos vivíamos um romance cujos sentimentos que nos imprimia oscilavam entre a paixão extrema… e a culpa extrema. Bem, falo mais de si, pois, como disse… eu tinha caído primeiro… e caí redondo…

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- Sabes que não quero… porque é que de vez em quando me perguntas isso?... – irrita-se. Porque é que, sabendo que se vai irritar, que não vai gostar da questão, a faço… sempre? Custa-me. Quanto mais o tempo passa, menos consigo, como nos primeiros tempos, estar apenas consigo… Geralmente estou consigo, mas repousa ao meu lado a consciência que, no dia-a-dia, nenhum de nós está com quem deveria estar… Eu estou casado com alguém que, apesar de tanto apreciar… não amo, nem estou apaixonado. E o que mais me dói… saber que ela, que se irrita neste preciso instante comigo, e se prepara para se levantar da cama, me ama e, mais importante até, sente paixão por mim… mas também pelo seu marido! Como me dói… Como me dói saber que os meus sentimentos por si são correspondidos, mas que não os sente apenas por mim...

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- Não sei… acho estranho… eu sei o nome do teu marido… porque é que não queres saber o nome dela? – E como a invejo… como invejo o seu sorriso, quando me vê. Morro por si, mas não morre por mim, e isso mata-me. O seu sorriso quando me vê é puro, e nenhuma consciência estranha o habita… O meu sorriso quando a vejo é pleno… É cheio, mas atrás do que se vê nos meus lábios, e ainda que estes estejam a ser tão sinceros quanto possam, há uma dor, de sentir que… agora estou contigo… agora não…

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- Tu não percebes mesmo, pois não? Será tão complicado de entrar nessa tua cabeça a realidade que quero viver dentro deste quarto, para lá das portas deste hotel?? – percebo. Como percebo. Percebo, mas não quero perceber. Não posso aceitar que ela jogue, ainda que sem intenção, com esta relação do modo que lhe apetece… Detesto sentir-me, ainda que saiba que tal não é verdade, como um extra… o extra…

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- Mas… – não sei o que dizer – desculpa… – não sei por que me desculpo – É que não me parece justo. Eu sei o nome dele, até já via fotografia dele! E estou contigo, só contigo, mas queria estar contigo como estás comigo! Não percebes que tu é que estás aqui a viver um sonho? Eu vivo esse sonho constantemente agarrado à realidade, e tu vives o sonho, o nosso sonho, que acaba por ser só teu! Foda-se! – irrito-me! Não sinto como justo esta diferença. O mais estúpido é que, se ela me dissesse para dizer o nome da minha mulher… eu não o diria. Porque apesar de tanto invejar essa sua ignorância, não lha quero roubar… Mas talvez apenas saber que ela estava disposta a estar no mesmo lugar que eu. Levanta-se da cama e, numa, entra no quarto de banho. Fecha a porta com força. Sinto-me o maior cabrão da cidade… e odeio-me por sentir isso, quando apenas fui sincero consigo. Mas odeio-me por a fazer sentir o que deve sentir agora.

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XX

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Não percebo… não percebo porque tem de arruinar momentos assim. Tem a palavra errada, no momento errado, em tantas ocasiões… Não percebo, mas percebo… Encosto-me para trás. Já não choro, mas penso nele. Penso na maneira como sei que se eu quisesse, nos casávamos amanhã… Sei que ele sabe que eu sei isto… Mas o que ele não sabe á a confusão que vai em mim, que sempre tive dentro de mim… Se ele não se sente seguro em relação a querer um futuro comigo, ainda que passados 17 anos, e tendo nós já 40… Eu não me sinto tão segura em continuar o meu casamento… mas sei que o vou fazer… amo o meu marido, mas o que sinto por ele é inexplicável, que merda… E se acabasse o casamento para viver com ele, como me sentiria, sabendo que, tendo sido mais forte, poderíamos estar juntos há tanto tempo?... Talvez seja por isso que não o faça, e veja então cada dia que passa como uma razão para não o fazer… se em tempos pareceu romântico, agora, apesar de o continuar a ser, é desesperante quando o deixo… e odeio que ele não perceba isso, e que pense que gosta mais de mim do que eu dele. Odeio, e odeio-o por isso. É como sei que o amo… o facto de o odiar por pensar que gosta mais de mim que eu dele…

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Hoje

- A VIDA são 3 dias pá, ouve o que eu te digo! E eu simplesmente decidi quando a minha vai acabar! – dizia-me Rui, todas as vezes em que as cervejas começavam a não caber na mesa. Nesse dia, a última vez que o ouvi dizer isso, estávamos no Académico. Era Quarta-Feira, lembro-me como se fosse hoje… Não se passava grande coisa em Coimbra, mas uma noite de conversa com Rui era sempre uma noite bem passada.

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- ‘Tá bem, ‘tá bem… deixa-te de tretas! – eu despachava, entre cigarros cravados e goles de cerveja. Desde há alguns anos que Rui dizia ter decidido que ia viver a VIDA ao máximo e que se ia suicidar no dia antes de fazer 30 anos. Eu nunca acreditara. Hoje está morto.

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- ‘Tou-te a dizer, pá! E já te disse mil vezes! Não vai ser um suicídio daqueles de pessoal deprimido! Vai ser o suicídio de alguém que viveu ao máximo, e apenas quis ter algo a dizer quanto à maneira, e à altura em que ia!... – debrucei-me na mesa e, com um sorriso, olhei-o nos olhos.

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- Ok, vamos supor que não estavas na tanga… Não achas que 30 é muito cedo? – perguntei, curioso.

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- Não, pá! Ouve lá, o que é cedo? 30 anos são 1560 semanas de VIDA! Vou em grande, e não vou ver o meu próprio declínio. E posso dizer que a minha VIDA foi feliz, sempre! Tu, por outro lado, vais envelhecer, vais perceber que já não consegues fazer as coisas que gostavas de fazer, vais tornar-te num adulto cínico, como até já te estás a tornar – diz, gracejando – E vais morrer com a ideia que não foste tão feliz como realmente foste. Só porque os teus últimos anos não o foram! – a maneira como me dizia isto era sempre cheia duma certeza impressionante. Agora que penso nisso, sentado ao lado da sua campa, no 13º aniversário do seu suicídio, quase não acredito como na altura não me acreditei! Talvez em algum momento tenha percebido que poderia ser verdade, e tenha dado um instantâneo salto do “não acreditar” para o “não querer acreditar”…

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- Mas ouve lá, ó Rui… que é que tu sabes? Já pensaste que podes ‘tar enganado? E que… sei lá a VIDA comece aos 40?

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- Acreditas mesmo nisso?

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- Não, mas isso não interessa! – rimo-nos. Na verdade não acreditava, e os seus argumentos, ainda que aparentemente estúpidos, sempre me assustavam, talvez por, ainda que eu não o quisesse admitir, achar que, no fundo, faziam sentido…

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- Claro que interessa! Pá… Zé, eu já percebi que não vou lidar bem com o declínio…

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- Mas não tem de ser um declínio! – interrompo, efusivamente.

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- ‘Tá bem, chama-lhe o que quiseres! Eu chamo-lhe declínio. Eu já percebi que não vou lidar bem com o declínio, e por isso prefiro ir em beleza, do que ir indo em tristeza.

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- Ok, ok… – geralmente era assim que acabavam as nossas conversas. Eu não o conseguia convencer de nada, e ele não me conseguia convencer de nada… Ou melhor, eu dava sempre a entender, tanto para ele como para mim… que ele não me conseguia convencer de nada. Foi das últimas vezes que o vi. Que saudades tenho…

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Acho que não reagi com muito choque. Apesar de não querer acreditar, talvez uma parte de mim soubesse que aquilo ia acontecer. As pessoas estranharam o facto de eu não me sentir devastado… Senti-me mal, mas como quando um grande amigo vai de viagem e não sabemos quando o vamos ver. Só isso. Talvez por me ter pedido, milhares de vezes, para eu não ficar triste, e para saber que tinha sido a sua decisão, e que tinha ido bem. Mas foda-se Rui, podias estar aqui ainda…

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Sentado ao lado da sua campa penso neste meu amigo. Ensinou-me o que é viver. É irónico, mas a maneira apaixonada como deixou a VIDA, levou-me a querer aproveitá-la ao máximo. Realmente não sei quando o meu corpo vai começar a falhar, quando a minha mente vai desistir de algumas actividades que tanto prazer me dão. Não decido acabar com a minha própria VIDA, para não sentir esse declínio… Mas decidi, no dia do seu funeral… não adiar. Adiar sempre é o pior que podemos fazer. Hoje é hoje, e quando quero fazer alguma coisa, faço. Hoje… é hoje.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Provocativa

Banho tomado, apetece-me mexer-me um pouco. Ligo a aparelhagem, e passeiam pelo ar as palavras de Dave Matthews. Reparo que a cortina está recolhida, e o meu olhar alcança uma imensidão para lá da janela, que aberta me permite sentir um pouco da brisa marítima de Quarteira. Visto apenas as calças de pijama, deixo a música entrar dentro de mim e mover o meu corpo. Quando abro os olhos, vejo-o. Está, como em tantas outras noites, na sua varanda, a fumar um cigarro. Sei quem ele é, sei como é, e uma parte de mim gostava de o ter aqui neste mesmo segundo. Gosto de dançar para ele. Apesar da distância, e de não ver bem a sua cara, levanto o braço direito e chamo-o, lentamente, com o meu dedo gesticulando e pedindo a sua presença. Ele deixa cair o cigarro e vai para dentro. Não vem. Não sei como eu reagiria se viesse, mas só de pensar sinto nascer em mim uma agradável adrenalina. Danço mais um par de músicas, e sento-me no sofá. A noite está quente e agradável, e sento-me no sofá, à procura da lua.

A pequena porção de adrenalina que sentia apenas em pensar como seria caso ele viesse ter comigo multiplica-se exponencialmente em menos de um segundo. O barulho da campainha deixa-me em pânico. Os próximos 7 segundos passam como 7 minutos. Levanto-me, espreito… e vejo-o. Abro a porta? A mão está na maçaneta e quero abri-a, tal como estou. Mas o pânico leva a melhor, rodo e agarro a camisola do pijama, que enfio rapidamente no tronco. Mexo no cabelo e abro a porta, tentando fazer-me de ensonada. Sinto-me ridícula, porque estou a fingir que estava a dormir quando ele sabe perfeitamente o que eu fazia minutos antes. Completamente ridícula me sinto. A cara dele é de algum espanto, mas sinto-me incrivelmente atraída. Quero que entre, quero pedir-lhe para entrar.

Desculpa... Sou o vizinho da frente, há muito tempo que me chamas… – diz, um pouco sem jeito.

Desculpe, não o conheço, e não sei a que se refere. – Respondo. E fecho a porta. Fico no mesmo sítio, observando a madeira escura, e vendo que permanece, igualmente estático, do outro lado. Se dantes me sentia ridícula, agora sinto-me também cruel. Tantas vezes o chamei… ele veio, e fui incapaz de o deixar entrar. O mais estúpido é que eu queria tanto como ele, tê-lo ali. Volto a sentar-me no sofá, pensando na minha reacção.

O antes… a fase que precede uma relação sempre foi o mais importante para mim… Desde sempre que a fase de sedução me seduziu completamente. Duas pessoas a desejarem-se mutuamente, a jogarem as cartas com cuidado, com bluffs, com jogadas arriscadas… Mas acho que a qualquer altura comecei a ficar completamente viciada neste “antes”, que tantas vezes faz com que não possa ter um “agora”. Que merda! A adrenalina que sentia ao pensar o que passaria caso ele viesse fazia-me sentir bem. Como se de uma droga se tratasse, gostava de a sentir, de a alimentar com provocações todos os dias, sempre com a ideia que um dia ele apareceria, mas com a incerteza de como eu reagiria. Tê-lo ali transformou esse sentimento agradável numa tempestade de certezas misturadas com dúvidas, que simplesmente me fizeram optar por esquecer tudo.