domingo, 16 de março de 2008

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Trail of LIFE - Oceansize

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Dizem que a minha reacção não é normal. Que estou em profunda fase de negação. Que outras fases virão, como a raiva, e outras coisas assim que não me recordo muito bem. A primeira pessoa que me falou nisto foi o meu médico, com um profundo olhar de consternação. Depois a minha família, tendo ouvido o meu filho, que é psicólogo. Quando digo que está tudo bem, olham para mim com um sorriso triste. Ai sim, por vezes entro em raiva, não pela minha condição, mas pela falta de compreensão. Como se eu fosse obrigado a sentir-me miserável por saber que morrerei no prazo de um ano.

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Pois vejamos…

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Tenho 62 anos. Um cancro. Não há grande volta a dar. Querem que entre em tratamentos, que me podem prolongar a VIDA até mais um ano, ano e meio, mas que me obrigarão a passar a maior parte desse tempo em hospitais. Vejamos… tenho 62 anos, 3 filhos que tenho a grande sorte de terem saído à mãe (fantásticos), 4 netos brilhantes. Um deles sai ao avô, mas isso, claro, também me deixa contente, pois o Mundo precisa de pessoas que o abanem de vez em quando. Tive a sorte de passar a VIDA profissional num emprego que me permitia estar com pessoas, sorrir para elas, receber sorrisos em troca. Essa sorte que me permitiu chegar a casa dia após dias com um sorriso nos lábios, salvo as raras excepções a que a condição humana está sujeita, de dias menos bons. Tenho um leque de amigos enorme. Conheço meio mundo. Fiz porcaria que chegue na VIDA que me permitiu aprender com cada erro, mas que também me permitiu sentir-me vivo… Mais importante, deixarei todos em boas condições, a minha mulher com a estabilidade que precisa, e com a beleza dos seus 55 anos num ponto glorioso. Não me posso queixar. Nada. Daí que…

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- Não sei como lhe dizer isto. O seu cancro foi descoberto muito tarde, e agora não há como reverter a situação.

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- Como assim?

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- Podemos, com tratamentos, prolongar um pouco o seu tempo de VIDA, caso contrário, é possível que faleça num ano.

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- E com os tratamentos?

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- 2 anos, 2 anos e meio. Mas são um pouco custosos, e tem de passar muito tempo no hospital. De qualquer modo, recomendo vivamente que os faça. – sorrio.

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- Doutor, não se preocupe. Não precisa de se sentir triste por mim, nem de usar termos como “falecer” em vez de “morrer”. A verdade é que vivi uma VIDA que muita gente desejaria ter vivido. E agora que sei quando vou morrer, posso dizer, com toda a certeza, que partirei feliz e satisfeito. – levanto-me.

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- Sr. Rodrigues, espere, temos de falar dos tratamentos.

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- Porquê, está doente? – pergunto, com um sorriso. O seu olhar adquire o estatuto de incompreensão – Estou a brincar consigo. Sabe, acho que prefiro continuar o pouco tempo que me resta a viver como sempre vivi, do que agarrado com todas as forças a uma corda que sei que vai partir mais dia menos dia. Muito obrigado por tudo.

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