quinta-feira, 17 de julho de 2008

Godelieve 4-9

Os meus olhos apontam para um qualquer ponto no universo, em sintonia com a minha mente, que voa dispersa, sem rédeas nem controlo. Os segundos atropelam-se, desaparecem, e o tempo funde-se num momento, de maneira a que um terço de garrafa de Mestiba depois, sinto o carro parar. Não sei se devo esperar que me abram a porta, ou se o devo fazer de imediato. Espero quatro piscar de olhos, e saio, para encontrar o meu condutor diante de mim que se preparava, imagino, para me abrir a porta.

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Dou um último gole de Mestiba, pouso o copo no tecto do carro, ajeito o meu colarinho. Vislumbro a minha imagem no tímido reflexo que a janela me lança, e percebo como o smoking me assenta bem. Sem dar por isso, o condutor desaparecera para dentro da limusina, e a mesma abandonou-me de seguida. Sou forçado a arrancar um sorriso quando ouço, segundos depois, o copo que largara rebentar no chão, a alguns metros de distância. Tiro um Dunhill. Estou no meio de uma estrada estranhamente limpa. De cada lado da mesma, dois prédios aparentemente abandonados, A iluminação que me chega deve-se à colaboração entre a lua e um velho poste de electricidade à minha direita.

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Diante de mim, uma casa velha, muito velha, guardada por uns velhos portões enferrujados e abertos. Não percebo nenhuma luz dentro da habitação, não percebo nenhuma actividade ao meu redor. Dou uma olhada no telemóvel, que me pede paciência… Lentamente caminho em direcção à casa… número 39, até que paro, ao ouvir uns passos ecoar algures perto de mim. Estranho o medo que sinto, apesar de achar que se apropria, uma vez que não sei onde estou, e o cenário não é propriamente agradável… O som aproxima-se, e consigo perceber que vem da escuridão entre a casa número 39 e o prédio à minha direita. Estou parado quase no mesmo sítio onde acendera o cigarro momentos antes, vejo a escuridão dissolver-se e uma silhueta masculina desenhar-se. A cada segundo a sua imagem se torna mais nítida, até que vejo perfeitamente os seus traços indianos, o seu fato impecável e a sua boa imagem diante de mim.

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- Boa noite. – diz-me, com um cordial sorriso.

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- Boa noite. – devolvo, menos cordial, imagino. Algo é bastante estranho. Permanece diante de mim, olhando-me nos olhos como se meu amigo fosse, por prolongados e extensos segundos. Quando percebe que não percebo o que quer, atreve-se a perguntar.

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- É a primeira vez que nos visita?

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- Isso é certo… – respondo, com um sorriso divertido, enquanto esmago a beata com o meu calcanhar.

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- Tudo bem. Tem o código, então? – pergunta, com um olhar afirmativo.

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- Que código?

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- Não tem nenhum código consigo? – volta a perguntar, com um tom de secretismo.

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- Se me dissesse que código era, eu podia dizer-lhe se o tinha ou não… – respondo, arrogantemente. Começa a irritar-me, o indiano… Não sei se por perceber esta irritação, o homem faz uma pequena vénia, pede desculpa, dá meia volta e começa a afastar-se. Não percebo. Que código?

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Vejo as horas no telemóvel. 21h08. O meu olhar não abandona o dispositivo. Ouço os passos a afastarem-se, a misturarem-se na escuridão, e finalmente percebo.

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- Espere! – ordeno. O homem para mas, não sei porquê, permanece de costas. Tiro a minha carteira e da mesma vejo o bilhete lilás. 371293. Aproximo-me do indiano e solto o número. Ele volta-se, olha-me nos olhos por um segundo, e no instante seguinte o seu olhar adquire um rosto pensador.

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- Queira acompanhar-me, por favor. – pede, mantendo a sua cordialidade enjoativa. Di-lo sem se voltar e começa a caminhar em direcção à escuridão. Quando os meus olhos se habituam ao negro em que imergiram, vejo mais um portão pertencente à propriedade da casa número 39, na parte lateral, este já em melhor estado. Para minha surpresa, o indiano abre o mesmo portão e entra. Não faço a mínima ideia do que se está a passar, e chego a duvidar que Godelieve tenha algo a ver com tudo o que vejo. Hesito. Ele pára e parece-me um pouco irritado. Sem falar, suplica com o olhar que continue a acompanhá-lo, ao que acedo. Percorremos um caminho de azulejos partidos, dividindo um jardim notoriamente desconsiderado, de onde nada me surpreenderia ver um qualquer felino aparecer, até que estamos perante uma escadaria que nos transporta para uns quantos níveis abaixo.

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Ao descermos o lance de escadas, vejo diante de mim uma porta de madeira. O estado é tão lastimável que não compreendo como Godelieve escolheu este sítio para o nosso encontro…

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Porém… Por mais que treine a minha mente para estar preparada para o inimaginável, tenho estes esporádicos deslizes que apenas me fazem rejubilar com a surpresa materializada. O indiano tira uma enorme chave do bolso, que usa para abrir a porta e me apresentar o brilhante cenário.

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Foi algo estranho, dado o contraste entre tudo o que poderia (não) imaginar e o que realmente vi. Diante de mim vi um surpreendentemente amplo salão a meia luz, carregado de fumo e leve música, e um sem número de estranhos compartimentos, divididos por biombos de pano púrpura. Estando ainda uns degraus acima do nível do salão, tinha uma visão abrangente da estranha sala. No meio um estreito corredor, de cada lado duas filas de compartimentos com cerca de 3 por 3 metros, e cuja porta parecia ser uma mera cortina de tecido. Ao contrário do pano que revestia cada compartimento, as cores das cortinas variavam imensamente, mas escorregando com o olhar até ao fundo, e vendo uma cortina lilás, algo que disse que me levariam até ali.

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Sem saber para onde desaparecera o indiano, tenho outro diante de mim que, da mesma, forma, não sei de onde apareceu. Tem um sorriso simpático e pergunta-me o código. Volto a retirar o pequeno papel do bolso, e lanço, mais uma vez, o número de seis dígitos que até ali me trouxera. O olhar da pessoa que tinha à minha frente adquire uma efémera expressão de pensamento, até que solta um “concerteza” e me pede para o seguir. Não me tinha enganado, e dirigíamo-nos para o compartimento de cortina lilás, cujo número era… 13. Pelo caminho tentei, discretamente, ultrapassar os finos tecidos com o olhar, mas o que via eram apenas vultos, aparentemente sentados. Confesso que me passara pela cabeça cenas escaldantes de sexo, numa espécie de orgia à distância… Cada compartimento parecia ter um casal, até que, ao chegar ao compartimento número 13, descubro o primeiro onde apenas uma pessoa existia…

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O indiano limitou-se a guiar-me até à porta do mesmo, desaparecendo sorrateiramente de seguida. Sem saber o que me preparava para ver, respirei fundo, e mergulhei os meus dedos no desconhecido. Vi Godelieve que, com um vestido preto, um marcado mas ainda assim subtil risco da mesma cor nos olhos e com seu cabelo impecavelmente amarrado, me esperava. Estava a uns metros de mim, chamando-me com o seu sorriso. Estava sentada a uma mesa vestida com uma toalha branca e adornada por uma vela ardente, da mesma cor do seu vestido, e isso deixava-me a pensar se estaria num clube, num estranho bar, num restaurante, ou ainda num outro qualquer local cuja categoria me escapava… O som que me chegava era sedutor e situava-se algures entre a estranha fronteira entre o Jazz e Blues, como não podia deixar de ser.

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- Boa noite! – cumprimenta-me Godelieve, quando me aproximo da mesa. Reparo que me sinto constrangido com a maneira como a cumprimentar, algo em que não tinha pensado. Tendo passado aquela cortina, por um lado sentia-me a milhares de quilómetros de todas as outras pessoas que habitavam o mesmo salão, mas por outro lado o suave murmúrio das suas vozes actuavam como o constante relembrar da ameaça que era um olhar atrevido… Todavia, após me sentar, Godelieve levanta-se, dá um passo na minha direcção, senta-se no meu colo. Cruza as pernas, e a sua saia abre-se de maneira que me permite vislumbrar as suas magníficas linhas quase até à cinta. Sinto-me repentinamente quente por dentro, e quero tocar-lhe. Eventualmente entretida com os meus conflitos, a minha diva pega, com a sua mão esquerda, na minha mão direita, e assenta-a sobre a sua coxa, carimbando o momento com um longo beijo nos meus lábios.

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- Já te explico onde estás, meu querido… – solta, finalmente, trazendo alguma luz sob todo o mistério que toldava a minha mente. Sorrio inocentemente, manifestando o quão perdido me encontrava. Godelieve volta a sentar-se, e aponta com o olhar para o meu maço de tabaco, de onde tiro um cigarro para cada um de nós.

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- Sempre é uma boa alternativa ao Vrijheid, diz lá… – sugere, após a sua primeira e longa passa no cigarro.

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- Parece-me ser. Se ao menos soubesse onde estou… – confesso.

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- Não sabias deste sítio, pois não Theodoor? – a pergunta é retórica – Diz-me tu onde estás… Não reparas em nada no ambiente, no que te rodeia?... – pergunta, desta feita visando uma resposta. Com dificuldade, o meu olhar abandona a sua figura crava-se nas frágeis paredes que nos rodeiam, atravessando as mesmas e atrevendo-se a imaginar.

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- Vejamos… imagino que apenas casais aqui estão… imagino que esses casais estão estranhamente compenetrados um no outro… vejo… – estranho – vejo que os empregados… são todos indianos?!

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- Exactamente. E que te diz isso? – pergunta.

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- Que estamos na Índia?... – respondo, sarcástico e divertido.

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- Tudo bem. Já foste perspicaz o suficiente… – parece-me ver alguma desilusão. Mas que quer, como posso fazer ideia de onde estou?

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- Tu estás no… chamemos-lhe assim… tu estás no antro dos infiéis de Westland… – solta, entre mais uma passa do cigarro, com um sorriso que anseia descortinar o meu…

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