segunda-feira, 21 de julho de 2008

Viver

Vejo o espanto nos olhos da pessoas ao meu redor como o meu motor, aquilo que me dá energia para continuar… é-me difícil, por vezes… tantas vezes… acompanhar as expectativas que deixam em mim, e isso materializa-se numa vontade cruel de dar dois passos e comprar um grama. Incrível como aquilo que funciona como motor também, ao mesmo tempo, tanto nos pode desacelerar…

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Sento-me no sofá, vejo as pequenas nuvens provenientes do chá, que arrefece, e penso nisso. Sei que não o vou fazer, mas, não sei porquê, quero imaginar que sim. Vejo-me a sair, olhar à volta para ter a certeza que não sou seguido, chegar à estação central, e apenas pedir meio grama a Magnus. Não preciso de dizer mais nada. Não preciso de lhe dizer que tipo de droga quero, não preciso de lhe dizer para não me enganar, não preciso de mais nada senão a mera frase e um par de notas… Vejo-me a sentir a adrenalina expectante, pelo que se avizinha a um par de minutos, nascer dentro de mim, proporcionando-me um prazer quase tão gratificante como o efeito da droga propriamente dito. Entro na estação, deixo 5 coroas na máquina, e vejo as portas do quarto de banho a abrirem-se. Vejo-me a pensar no quão quero usufruir o momento, e volto para o exterior, onde fumo um cigarro, para que tudo esteja como deve estar, e para poder ficar no quarto de banho o tempo que me apetecer. Vejo-me a voltar a entrar, a ignorar a cara que o porteiro faz, fechar a porta, arregaçar as mangas. Tiro o cinto, aperto-o no braço, até ao ponto em que dói e fica roxo. Pouso os óculos no chão, num sítio que não me faça, daí a uns minutos com o equilíbrio a menos de 100%, os pisar. Tiro a agulha do invólucro, faço a sopa, e vejo-me a entrar naquele pico que me deixa num outro lugar, num outro lugar onde… tudo não é melhor, mas tudo não é o que é aqui. Aquele lugar que dura apenas um determinado período de tempo. Vejo-me a encostar-me para trás e a entrar em prazer indescritível. Vejo o tempo passar, e vejo-me sair do quarto de banho. A cara do porteiro… não a consigo ignorar... vejo-me a pensar no quão filho da puta que ele é, e apetece-me matá-lo. Saio, vejo o sorriso de Magnus e apetece-me atirá-lo para a frente do metro, por ter agitado diante do meu nariz o produto! Mas então?... Vejo-me a pensar nos últimos dois anos… na última vez que consumi, uma semana antes de ir para a desintoxicação, um mês e qualquer coisa antes de ir para a Comunidade Terapêutica. Vejo a cara dos meus colegas de recuperação, dos que tiveram sucesso e dos que não tiveram, e vejo o seu olhar de desilusão, que compete com o meu inexpressivo, em completo desalinho com a miséria e vontade de desaparecer que vai dentro de mim. Estupidamente, vejo-me a querer consumir, comprar mais, apenas para que não sinta esta vergonha que se abate sobre mim. Vejo-me a ligar aos meus pais, perguntar como vão as coisas, e dizer que gosto deles… apenas numa tentativa completamente frustrada de me mostrar que sou um bom filho, que me preocupo, e que nada muda apenas com um consumo. Vejo-me a, antes de ir para casa, comprar uma garrafa de vodka, que sei que vai acabar nessa mesma noite. Vejo-me a pensar que não tem mal algum, pois é o que toda a gente faz de vez em quando, beber um copo… vejo os dias passar e não sei se me vejo no dia seguinte a ir outra vez ter com Magnus, se a beber uma garrafa de vodka todos os dias, se a ter uma overdose, se a me suicidar mais tarde, se a entrar em outro tratamento onde terei, mais uma vez, de conviver com os erros que cometi e nunca deveria ter cometido… quando tudo estava na minha mão, quando não podia já culpar a minha má infância, os meus momentos difíceis… consegui falhar de novo… vejo o peso desse falhanço ser demasiado pesado para ter de o enfrentar todos os dias, e vejo-me a desaparecer, um dia, do tratamento, acabando a dormir, completamente pedrado, num passeio de Oslo. Vejo-me a acordar e não conseguir lidar com a cara das pessoas que passam que, não conseguindo mentir, me mostram o lixo em que estou… vejo tudo isto e muito mais, num ciclo vicioso de falsas razões, pretextos e antecedentes que acabam por ser consequentes, consequentes que antecedentes acabam por ser, tudo num circulo interminável que me leva à morte, destruição… ver a minha VIDA passar ao meu lado sem que eu faça algo…

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Dou um gole no chá preto, e sinto a vontade de viver isso tudo. Penso na razão por que o sinto, e não consigo, como nunca consegui, encontrá-la. Apesar de tudo, penso na maneira como aprendi a viver com esta grande questão e escolho… viver…

2 comentários:

Jacinta. disse...

"Dou um gole no chá preto, e sinto a vontade de viver isso tudo. Penso na razão por que o sinto, e não consigo, como nunca consegui, encontrá-la. Apesar de tudo, penso na maneira como aprendi a viver com esta grande questão e escolho… viver…"

Escolho viver, por muito que custe :)
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Anónimo disse...

É sempre bom viver. Ou melhor...nem sempre, mas tentamos, por muito que (ás vezes) custe.
Grande abraço