quinta-feira, 17 de julho de 2008

50 Godelieves, 100 Estórias

O antro dos infiéis? Como assim? Onde? Os meus pensamentos oscilavam a cada décimo de segundo. Se inicialmente me atrevi a soltar um sorriso com a brincadeira de Godelieve, ver o seu próprio sorriso desaparecer, para me mostrar a seriedade do que me dizia fez-me pensar que, quem sabe, o que me dizia era verdade… Antro dos infiéis?

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- Como assim? Antro dos infiéis? – pergunto, sem me preocupar em esconder a minha confusão. Neste momento ouço alguém, do outro lado da cortina, tossir, como que pedindo permissão para entrar. Godelieve acede e um empregado aproxima-se, perguntando se já temos alguma decisão. Suponho que seja acerca da refeição, apesar de não ver nas mãos de Godelieve nenhum menu.

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- Sim… Para já, como aperitivo, queremos dois Portos. Depois como entrada queremos queijo queimado com açucar e como prato principal frango cortês – ouço Godelieve e percebo que tenho fome. A visualização, na minha mente, dos pratos típicos que pede deixa-me a salivar ligeiramente.

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- E para beber?

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- Don Perignon, muito frio.

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- Concerteza. – e afasta-se. Godelieve olha para mim e, com o seu expressivo olhar pergunta-se se concordo. Num instante percebo que me esqueci, por uns segundos, que ainda não faço ideia de onde me encontro, apesar da sugestão ser evidente.

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- Óptimo, parece-me óptimo. Mas… estavas a dizer-me onde estamos…

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- Bem, é o seguinte… – adquire uma postura mais séria e inclina-se ligeiramente sob a mesa – claro que o nome não é o antro dos infiéis, apesar de ser isso mesmo… Todas as pessoas que vês, ou imaginas, aqui são provavelmente casadas ou têm algum tipo de relacionamento a que precisam de fugir. Este lugar existe há anos e anos… Nunca teve nome, e nunca teve uma única fuga de informação. As pessoas que vês aqui a trabalhar rodam anualmente e são muito bem pagas para manter o segredo…

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- Mas… isso não faz sentido. E as outras pessoas que aqui estão? – pergunto, confuso com a estranha realidade que tenho diante de mim.

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- As pessoas que aqui estão não têm cara. O segredo de cada um é suficiente… além do mais, está tudo muito bem controlado, de uma forma que ninguém percebe, mas que ninguém quer perceber.

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- Como assim?

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- Por exemplo, ninguém sabe quem é o dono deste lugar. Nem mesmo os empregados. No entanto é um sistema que vai desde dezenas de quartos de hotel na cidade até este mesmo restaurante, passando, como deves ter percebido, pelos meios como se chega até aqui. É perfeito, muito bom. Claro que é caríssimo, mas quem pode pagar tem condições que não tem em mais nenhum lugar. – a informação que desfila diante da minha pessoa é estranha, e Godelieve faz por a partilhar de uma forma, por um lado sedutora, mas por outro lado como se fosse algo banal. Passam pela minha cabeça imagens de filmes que vi, de coisas que imaginei, e tento conciliar tudo, sem ter grande sucesso. Entrego-me, finalmente, e limito-me a oferecer um sorriso. Só em Westland…

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- Mas porquê esta necessidade de trair? Porque não saltar e desaparecer?... – pergunto. Estamos a meio da refeição. Do meu lado direito jaz uma garrafa vazia de champanhe, ao seu lado a sua sucessora, beijando a mortalidade. Os olhos negros de Godelieve espetam-se nos meus, e as suas sobrancelhas surpreendem-se.

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- Desaparecer para onde, Theodoor?

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- Desaparecer para vinte e quatro horas por dia. Será assim tão doido e arriscado? – pausa – Sim, é, mas vivemos em tempos em que isso não é assim tão impossível, em que essa decisão não tem de trazer consigo um desenvolvimento assim tão pesado… - espero que acabe de mastigar. Dá um gole do champanhe e os segundos que espera para falar entram dentro de mim.

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- Achas que é isso que queres?

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- É isso que queres?

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- Sabes… por vezes não te percebo, meu querido. Por vezes todo tu vives nos segundos em que estás comigo, mas doutras vezes sinto que vives noutro lugar qualquer, na certeza de me querer sempre do teu lado… – aponta, revelando-me da minha eventual ineficácia em permanecer impassível e misterioso. Ainda assim, não cedo. Tiro um cigarro, sem me importar que nenhum de nós acabou de comer.

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- E seria isso assim tão terrível?

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- O que seria terrível era aventurarmo-nos à procura do conhecido e perdermos tudo…

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- À procura do conhecido?

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- Sim… sempre que estamos juntos, e sempre, ou especialmente, quando não estamos juntos, vivemos sempre no desconhecido… E isso é fantástico… – ouço as suas palavras como se fossem os meus pensamentos – Se nos aventurássemos à procura de estabilidade e certezas íamos ceder, íamo-nos tornar em apenas mais um casal, onde tudo é o que se espera… é isso que queres? – a beleza e sentido dos seus argumentos deixa-me numa posição desconfortável. Não quero, não sei porquê, ceder, admitir que eventualmente esteja errado, pois apesar de sentir que estou, não quero estar.

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- Mas não achas que isso é… cobarde? – pergunto, apagando o cigarro, que ainda tinha algo para me dar. O champanhe sabe-me incrivelmente bem, e bebo uma taça duma só vez. Sinto que quer sorrir mas contraria tal movimento. É cansativo, ainda que prazeiroso, tentar adivinhar o que vai dentro de si.

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- Talvez sim, talvez não, não sei. Mas acho que ao perguntares isso, estás a fazer exactamente o mesmo… a querer o conhecido… a querer catalogar coisas com palavras, a querer ter controlo. Que interessa se é cobarde ou não? Porque tem de ser importante saber o que é

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- Se podemos apenas apreciar o que temos… – interrompo-a, baixinho, mais para mim que para si, acabando a sua frase.

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- Precisamente…

- Quando estou contigo sinto sempre que é a primeira vez… – digo, abrindo-me mais do que desejaria – As palavras têm de ser escolhidas – olho de soslaio para as duas garrafas vazias e percebo que talvez me tenham apanhado desprevenido, não quero dizer estas coisas – e questiono-me se o que sinto quando não estou contigo vale a pena pelos segundos em que estou…

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- E a que conclusão chegas?

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- Diz-me tu. Porque tenho de ser apenas eu a falar da confusão? – sugiro, interessado e de volta à postura sedutora. Desta feita percebo nitidamente o seu sorriso que me devolve um ar encantado. Godelieve levanta-se, dá um toque nos seus lábios, talvez corrigindo algum deslize do batom que até então passara despercebido. No seu trono invisível, olha-me de cima para baixo, mas não sinto tal situação como metafórica. Ainda assim, levanto-me. Dá um passo para mim.

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- Eu conto os segundos para estar contigo, meu amor. – a sua voz é ameaçadoramente macia – E sinto cada ocasião contigo passar como efémero e irreal. Custa-me e por vezes quase sufoco, mas quando te tenho para mim e te posso beijar, vivo nesses poucos momentos tudo o que não vivi em semanas… guardo tudo o que sou para ti…

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Foi o beijo mais real que demos. Não sei ao certo o que define um beijo como real, mas sei apenas que o foi. Os nossos lábios abraçaram-se e as nossas línguas embalaram-se como centenas de vezes antes, mas a fragilidade da sua frase, que apenas a trouxera, por uns breves segundos, ao mundo dos humanos, dizia-me que estava a beijar alguém que efectivamente existia. O conforto de a ter no mesmo nível em que eu sempre me encontrei, em saber que o meu desespero era partilhado, foi apenas por três instantes ameaçados pelo quanto não a queria junto de mim com o resto dos mortais. Foi apenas por três instantes ameaçados, tranquilizando-me de seguida, com a certeza de que certas pessoas simplesmente não sabem como não ser musas…

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