sábado, 16 de fevereiro de 2008

Godelieve 24

A viagem revela-se demorada, e quando dou por mim, estamos a sair da cidade. Vejo os prédios desaparecerem, sendo substituídos por casas, que aparecem esporadicamente, cada vez menos. Estas são substituídas por densos arvoredos, isentos de luz. Olho para a frente e vejo o calado condutor, seguindo o seu aparente único objectivo de me conduzir. Não fala, nem quero que fale.

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Não sei quanto tempo mais tenho de viajar, mas sinto que o que vinha a sentir estes dias vai ficando um pouco agarrado à estrada. A ambivalência de sentimentos que me fazem estremecer deixa-me confuso. O cansaço vai desaparecendo lentamente, e sinto uma tímida imagem do que já sentira nos momentos que precediam os nossos encontros, nascer dentro de mim. Quero agarrá-la com todas as forças, abraça-la e fazê-la crescer. Mas revela-se difícil, e quando mais me esforço por o fazer, mais escorregadio sinto esse sentimento.

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Começo a perceber onde estou, e não quero estar onde estou. Sinto-me confundido, pois não creio possível que ela me tenha feito vir até ali, não é possível. O condutor faz o carro abrandar subitamente a sua velocidade, que me diz que afinal o que parece… é. O carro pára, e a luz dos faróis projecta-se nuns longos e sumptuosos portões de barras verdes. Ao redor dos mesmos estendem-se metros de um alto muro, a perder de vista. Não posso estar ali. Ele nada diz, tampouco o vejo a accionar qualquer botão, mas os portões abrem-se, desejando-me as boas vindas. A estrada deixa de ser de terra, e viajamos sob um tapete de paralelos perfeitamente alinhados que nos deixam a ideia de deslizar sob o mais fino alcatrão. A curta estrada abre caminho entre um vasto jardim, povoado por várias árvores altas e assustadoras ao luar, e acaba numa rotunda à volta do mais sublime chafariz. O carro pára, e vejo à minha direita, através da janela entreaberta, a mansão onde algumas vezes já estive. Volto a entrar dentro de mim, e entrego-me às evidências. Não estou confundido, não estou a sonhar. Estou mesmo ali. Saio do carro, e admiro a casa de aspecto antigo, apesar de impecavelmente restaurada. Ouço um barulho atrás de mim, volto-me, e vejo o carro desaparecer, mergulhando na escuridão segundos depois. Nada a fazer agora. Claro que não voltaria atrás agora, mas sentia-me bem com a segurança de que o podia fazer a qualquer momento…

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Acendo um cigarro, e fumo metade cá fora, pensando no que me esperará lá dentro. Sem pensar, lanço-o para o chafariz atrás de mim, e decido-me a entrar. Subo as escadas. Não bato à porta, limito-me a abrir. Vejo o imenso hall que noutras vezes já me recebera.

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- Olá! Estava a ver que não vinha!

- É verdade, tive umas reuniões de última hora, mas felizmente tudo correu bem e consegui articular. De qualquer maneira, não perdia esta festa por nada! – digo, hipocritamente, vendo-o diante de mim, sorrindo abertamente e acreditando nas estupidez que sai da minha boca.

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- Sim, porque é um grande feito! Festejar a reeleição em eleições completamente manipuladas… – diz-me, baixinho e ao ouvido, a minha mulher. Concordava, mas estava a tentar não pensar nisso, para não me oferecer uma razão para ir embora nesse mesmo momento.

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Deveria ter ido embora? Acho que se fosse hoje, nem teria aparecido, pois o facto de ter ido ia contra toda a minha filosofia recentemente adquirida. Honestidade comigo próprio. Mas… deveria ter ido embora, sabendo o que sei hoje? Não. Pois se tivesse ido embora não estava hoje onde estou, a escassos momentos de a encontrar.

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Ele volta a abordar-me, e trás à baila assuntos que preferia não discutir. Apesar da minha importante posição, orgulho-me de permanecer tão neutro quanto possível. Não faço parte da lista que está no poder, mas não faço também parte de qualquer ideologia da oposição, pelo que consigo serpentear amigavelmente entre os dois lados, esquivando-me tanto quanto possível. Contudo, as abordagens e convites são cada vez mais frequentes…

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- Digo-lhe, aqui ente nós que ninguém nos ouve… isto está de uma maneira que não se aguenta! A oposição não se cala, não pára de inventar falsa informação – esforço-me por não me rir. Essa falsa informação não só não é falsa, como se prende, na sua grande maioria, precisamente com a pessoa com quem falo neste preciso instante. O movimento da minha cabeça sugere, imagino, que até estou a compreender o que quer dizer – e nós, por mais que tentemos, estamos a ver como complicada a tarefa de trazer a verdade junto da opinião pública! Por isso é que uma pessoa com tão boa reputação como o meu caro seria uma excelente mais valia para o nosso partido, pois poderia trazer um pouco de bom senso para esta gente toda…

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- Sim, percebo, mas… – não consigo acabar a frase, pois sou interrompido.

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- Ouça, não tem que dizer nem que sim nem que não agora, só gostava que conhecesse o nosso director de controlo de informação – hã? - e ouça o que ele tem para dizer… vai ver que vai ficar a ver as coisas duma outra perspectiva! – afirma, tocando-me gentilmente no braço, sugerindo que o acompanhasse. Finjo que não percebo a mensagem indirecta, e afasto-me lentamente, circulando pela sala, com o olhar a poisar de canto em canto, e a ser constantemente puxado, como se dum íman se tratasse, para o mesmo sítio, puxando-me e deixando a minha concentração em fosse o que fosse ser abalada. Ele volta à carga, e diz que encontrou o director.

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- Venha comigo, se faz favor. Fazia-me mesmo muito gosto se o conhecesse…

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Pelo caminho passa um empregado com uma bandeja cheia de copos duma qualquer bebida. Agarro uma, dou um gole, e tenho a agradável surpresa de descobrir ser Licor Beirão. Chegamos ao encontro do director. Era o que me faltava… Director de Controlo de Informação… como quem diz a pessoa que decide o que passa e não passa nos meios de informação do estado. Em outros países isto tem outro nome…

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O director começa a falar sobre a necessidade dum controlo rigoroso para evitar a disseminação de notícias “completamente ridículas” que já existe noutros meios “menos oficiais”, falando duma qualquer conspiração ardilosa para derrubar o governo. O que diz faz-me tão pouco sentido que não tenho dificuldade alguma em me distrair, entretendo-me a olhar à volta, talvez num esforço inconsciente de encontrar mais uma vez esse vórtex que sugava toda a minha atenção. É quando estou a tentar olhar para o meu interlocutor, fingindo algum interesse…

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Parece que foi ontem. O sítio é o mesmo, mas sinto-o hoje como completamente deslocado de si mesmo, talvez como eu próprio, que nessa noite comecei a sair de mim, para me ir buscar e trazer de volta o verdadeiro eu. Parece que foi ontem.

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