sábado, 16 de fevereiro de 2008

Godelieve Vinte e 5

Ao fundo do hall, uma porta sedutoramente convidativa fala comigo. A ideia do que verei ao entrar anima-me. Tento apreciar este preciso instante. Mais uma vez. Tento apreciar o instante que antecede qualquer momento fantástico. Com Godelieve, ao contrário de com tantas outras pessoas ou eventos, a expectativa não era melhor que o acontecimento assim. Todavia, era delicioso aquele sentimento de se saber estar à beira de algo fantástico. Mas consome. Passa do agradável ao desagradável rapidamente, pelo que a gestão torna-se difícil e compele-me a dar uns ligeiros passos. Estou diante da porta. Pela frecha viaja alguma luz nervosa. Dou um subtil toque na madeira branca e vejo, não o salão onde a encontrei a primeira vez (a mente prega partidas, e aquela divisão era, no fundo, tudo o que conhecia desta casa), mas uma sala, impecavelmente decorada, nem por isso muito grande.

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Entro. Chega-me uma temperatura um pouco mais elevada, explicada por uma lareira, ao fundo, na minha esquerda. Duas poltronas esperam-nos, imagino, para mais tarde, diante da mesma. À minha frente uma longa mesa, com dois pratos preparados, lado a lado. Apesar da luz se apresentar, como disse, frágil, não necessitava das duas velas que tentam ajudar a uns centímetros dos pratos. Godelieve está em frente a uma janela, à direita. Está de costas. Vejo o seu longo vestido vermelho, acompanhado das luvas até ao cotovelo que combinam de uma forma sublime. Percebo que está vestida exactamente com a mesma roupa daquela outra noite. O cabelo, como sempre, impecavelmente arranjado, como se conhecesse apenas duas posições… ou apoiando seus delicados ombros, ou espalhado no colchão, emoldurando a sua exótica face. O som que chega aos meus sentidos é o mesmo que ouvia no carro. Confirmo o que tinha pensado. Godelieve não deixa nada ao acaso.

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Não se vira. O meu coração acelera, à medida a que caminho na sua direcção. É o toque. Toco-lhe num ombro. A sua mão esquerda sobre, pega no meu braço, e faz-me abraçá-la. Ainda não vi o seu olhar. Mas o toque. No momento em que lhe toco, todos os sentimentos devastadores que ainda tentavam resistir são esquecidos duma maneira que me deixa a saber… a pensar, que nunca mais virão. Sai tudo de mim. Como se uma droga se tratasse, tudo o que sentia quando longe de si é esquecido e desvalorizado nos momentos em que lhe toco, em que a sinto. Abraço-a com força, fecho os olhos. Tento concentrar-me. Tento encontrar-me. Sinto-me feliz.

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- Vamos continuar e encontrar-nos assim? – não me vê, mas imagino que adivinhe o meu sorriso. Ela volta-se, e o seu olhar agarra-me.

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- Não fales… – ordena, gentilmente, colando o seu indicador aos meus lábios. O beijo. O beijo é sempre melhor do que alguma vez damos, entrando numa escalada aparentemente sem fim. Tudo passa. O que sinto naquele momento é que, apesar de saber que tudo passa, momentos como estes ficaram sempre. Mas… não falo, não penso. Pensar na sua presença por vezes confunde-me. Como um esforço inglório de equilibrar a reflexão com os sentidos, que exaltados voam.

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Ela sorri, com um sorriso estranhamente mais puro que o normal, e diz-me que a comida está a arrefecer.

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- Cozinhaste? – pergunto. Não sei porquê, não a imagino a fazê-lo. Penso neste meu pensamento, ao caminhar em direcção à mesa, e reparo na percepção tão distorcida que terei dela. Sinto-a, parece-me, não como um ser humano, mas como uma espécie de deusa, boa demais para realizar as tarefas mais mundanas e normais.

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- Depende… se gostares, sim… – responde, divertida.

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Por momentos esquecera-me de onde estava. Acabamos de comer, algo delicioso cujo nome não sei nem perguntei. Estamos sentados nas poltronas, conversando pouco. O silêncio nunca é desconfortável, pois é substituído por olhares e sorrisos que me fazem sentir noutro lugar. Por momentos esquecera-me de onde estava.

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- Como é que te lembraste de nos encontrarmos aqui? – a minha expressão completa a minha pergunta. Ela levanta-se, e senta-se no meu colo.

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- Querido, não te preocupes. Sabes que nunca te poria em perigo. – sei? – E queria estar contigo no sítio onde nos conhecemos. Não reparaste em mais nada?...

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- Reparei. Estás fantástica. Godelieve…

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- Theodoor… – sussurra, antes de me beijar, acariciando com os seus finos dedos a minha face.

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