quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Godelieve - ")

O caminho não é convidativo, e penso que pode começar a chover a qualquer momento, e a ideia não me agrada. Estou a caminhar há cerca de uma hora, quem sabe 6 ou 7 quilómetros, e vejo um bravo traço, indicador de rede, aparecer no meu telemóvel. Ligo imediatamente, sem mexer um músculo, tentando assim evitar a perda de rede, e é com satisfação que ouço uma voz, de alguém que está, nitidamente, a ter um mau dia, do outro lado.

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Sento-me no chão, encostado a uma árvore, enquanto espero a minha boleia. O meu temor confirma-se, e começa a chover. Inicialmente sinto umas gotas pequenas massajarem-me o rosto, mas segundos depois as suas amigas aparecer, e fazem-se sentir, frias, colando-se à minha pele. Estou feliz. Sei que não precisarei de caminhar horas a fio à chuva, por isso o temor que senti torna-se em algo de bom, que me faz, mais uma vez, sentir. Sentir, simplesmente. Fecho os olhos, e sinto o céu, desabando, pouco a pouco, oferecendo-me sensações várias. Por vezes junta-se o Vento, que aparece inesperado. Faz os meus pelos arrepiarem-se, e um tremor atravessa-me a direito. Estou bem.

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Chego a casa e encontro-a, como sempre, vazia. Todavia, este vazio não é mais aquele vazio que entrava dentro de mim e me deixava desamparado. Penso que, curiosamente, desta vez vou estar ainda mais tempo sem ver Godelieve que da anterior, mas, curiosamente, isso não me perturba. Questiono se será o facto de a sentir, cada vez mais, como minha, como parte de mim, e isso me transferir a segurança que preciso, ou se será o facto de desta vez as cartas estarem na minha mão… não chego a nenhuma conclusão.

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Passo o resto do dia numa estranha e nova paz, que me invade e me diz que afinal tudo valera a pena. Evito alguns pensamentos, a custo, como o facto de não ver o meu filho há algum tempo, e tenho algum sucesso, manipulando a minha própria vontade, e pensando apenas no que quero. Dura pouco. Ao pensar que não estou a pensar, estou logo, no mesmo momento, obviamente… a pensar. Pego no telefone, ligo para casa dela. Demora a atender, e estou pronto a desligar, quando ouço, do outro lado, a voz infantil da pessoa de quem tanto gosto… me perguntar: “Quem fala?”

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- É o pai! – ele dá um salto na voz, e sinto-o contente. Sinto-o a milhares de quilómetros de distância, talvez o sentimento de culpa que tento afogar a fazer das suas, mas sinto-o, por outro lado, chegar até mim. Há um momento de silêncio, e ouço uma voz masculina, por trás, perguntar quem é. Estou confuso. Tenho a certeza que é Y, o meu amigo de longa data. – Quem está aí, filho? – pergunto, na busca de uma confirmação.

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- Quem fala? – ouço-o.

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- Y? Que estás aí a fazer?

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- Ah, olá!... – sinto-o surpreendido.

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- Olha… eu sei de tudo o que se está a passar… e sei que estás bem… e que estás a atravessar o que estás a atravessar – a entoação sugere que se refere a Godelieve – Mas também sei que H – a minha… mulher… – não está na mesma situação que tu, e só liguei p’ra ver como estava, e acabei por aparecer para ver se estava tudo bem…

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- Estou a ver… Podes passar ao Arjan?... – converso um pouco com ele, combinamos que o vou buscar à escola no dia seguinte… mas não me sai da cabeça o facto de Y estar ali. Tento não dar importância, e pensar que está apenas com puras e boas intenções, mas é mais forte que eu, e a questão demasiado pesada para ignorar. O meu melhor amigo, a fazer-se à minha mulher? Não está… Mas… se estiver. Não percebo o quanto me sinto incomodado com isto… Talvez o facto de ter aprendido recentemente quem sou, esteja a relembrar-me, naturalmente, que foi… recentemente, e por isso há sentimentos que não conheço tão bem, ou sentimentos antigos que ainda sobrevivem, como este sentimento de posse que julgava esquecido, e que me faz estar incomodado e… ameaçado… Penso na conversa que tivemos no outro dia, e penso se lhe terá feito tanto sentido que tenha decido embarcar nesta aventura de se fazer o que realmente se quer.

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“Ele tinha razão… O meu casamento é uma farsa, e porquê ignorar perante mim mesmo que sempre me senti atraído pela sua mulher? E agora vejo-o com outra que me diz ser do outro mundo, que o faz sentir todos esses sentimentos que tanta inveja me quiseram… e separaram-se… não é mais a mulher do meu amigo… porque não ser verdadeiro comigo mesmo e assumir esta vontade, ser quem sou, como diz, e ir ter com ela??” – tento construir na minha cabeça o seu pensamento, e isso ajuda-me a amenizar um pouco o desconforto que me inundava. Tento entrar dentro dos seus pensamentos, e adaptá-los à minha própria filosofia, que lhe expliquei…

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Mas… sinto-me um pouco envergonhado, com o tão longe que fui, inventando reflexões, numa tentativa artificial de me tranquilizar. Sirvo-me de um whiskey, que será o único do dia, senti-me no sofá, e rio-me perante os meus próprios pensamentos e o quão complicado posso ser.

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Ele não está a tentar nada.

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