sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Olívia

Bebel Gilberto – August Day Song

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Sou uma velha porreira. Ou melhor, aparento ser uma velha porreira. Mas não sou. Há uma certa amargura que não consigo explicar, porra! Quer dizer, consigo explicar, pois sei muito bem de onde vem, mas não consigo descrever. Quer dizer, não consigo explicar… Não faço ideia. Levanto-me da mesa onde acabara de almoçar, sozinha, sacudo a cabeça, tentando fazer os pensamentos escoar, e lavo a louça. Sou uma velha porreira. Se é isso que chega à percepção de toda a gente, porque será que não o sinto dentro de mim? Sei o que querem dizer, mais ou menos… pelo menos em parte. Sei que, por exemplo, para eles, uma “cota” normal não tem este tipo de pensamentos que tenho, não tem as conversas com eles que eu tenho. Mas pensar… toda a gente sabe, pensar dói, e não é pouco. Pensar dói quando a VIDA não correu bem, não apenas num momento, mas numa série deles que transformam um futuro completo. Quando se toma a decisão certa, pensar não custa. Quando se toma a decisão errada, pensar é lixado. Mas acho que o pior é quando se arrepende de se ter tomado a decisão certa. Aí pensar custa muito...

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As amigas que tenho…. Vejo-as, nos seus casaquitos de lã, com as suas dezenas de quilos que ganharam como prémio de casamento, as suas conversas pueris, o constante massacre que tenho de passar ao escutar o que toda a gente na Vila faz. Não têm má intenção, acho eu. Mas ainda assim…

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Sou uma velha porreira. Mas estou sozinha. Quis o destino que tivesse, em tantas ocasiões, uma mistura de… pelo na venta e azar na VIDA. Pelo na venta, porque nunca assentei com o primeiro homem que me apareceu. Sempre dei alguma luta, como num jogo de análise. As minhas amigas, em parte, também, mas quando escolhiam… escolhiam. Eu quando escolhia, o mais certo era vir a arrepender-me, quando percebesse a peça que tinha. Por isso agora não tenho um marido que me agride, não tenho um marido que se embebeda todos os dias, não tenho um marido que tem um sem número de amigas e goza comigo nas minhas costas. Mas… não tenho um marido.

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Daí o meu pensar. Sou uma velha porreira, mas que me interessa ser uma velha porreira? O gosto que sempre tive em ser diferente, em destacar-me das demais, em ser especial, foi-se diluindo paulatinamente com o passar dos anos. Nunca pensei pensar no que penso agora mesmo. Estarei a ficar doida? Isso também vem com a velhice… não, é mesmo verdade, estou a pensar que apenas quero ser como qualquer outra.

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Talvez o peso da solidão, ainda que sentida por uma cota porreira, seja demasiado massacrador, nos diga demasiadas coisas ao ouvido, e nos faça querer poder voltar atrás no tempo, e ter feito algumas coisas de maneira diferente.

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Sento-me no café. A Josefa diz que está cheia de sono porque o marido ressonou a noite toda. A Maria diz que o marido a vai levar a ver Lisboa pela primeira vez no próximo fim-de-semana. Olho para elas e penso. Na minha cabeça começa a tocar uma qualquer música de repente. Aquela… filha do João Gilberto… Bebel Gilberto, “Tanto Tempo”. Já não as ouço e já não estou nos meus olhos, estou num plano acima, vejo-me como se duma novela brasileira fizesse parte. Ai, a banda sonora é incrível. Um narrador, baixinho, e “falando brasileiro”, sussurra:

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[Bebel Gilberto – Tanto Tempo]

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"Olívia ouvia suas amigas falando. Seus olhos entravam em conluio com seus ouvidos, sorrindo sua mente por dentro. No fundo, todas as suas questões voavam janela fora. Sabia perfeitamente que o mundo precisava de pessoas como ela. Magnífica, uma juventude eterna, uma capacidade observadora como nunca ninguém conhecera, uma capacidade de espalhar o sorriso e aquecer as pessoas ao seu redor. Um ser que se sentia sozinho, mas que fazia com que todo o mundo se sentisse acompanhado. Um ser incrível, daqueles que os poetas descrevem.

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Nessa noite, Olívia chegou a sua casa, ligou sua música, não jantou. Preparou um chá de camomila, sentou-se no frio da sua varanda, olhou o que passava em seu redor. Escreveu algo no seu milésimo bloco de notas, pousou a caneta, e bebeu o seu último chá.”

1 comentário:

pedro disse...

gostei, bastante...posso é dizer que ler me fez logo pensar no futuro...nao quero ser um "velho porreiro"..quero ser mau e agreste por estar arrependido de nao ter aproveitado o passado :) diverte-te por terras proximas das do pai natal!!