sábado, 2 de fevereiro de 2008

Westland Story Seventeen

Salto no Tempo
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Ela descansa ao meu lado. A única iluminação que chega ao quarto é fornecida pela lua, que brilha alta e cheia. De onde estou vejo, à minha esquerda, ela, a minha perdição, o vício que não consigo largar, à minha direita a varanda, com as portadas entreabertas, permitindo as cortinas brancas dançarem ao sabor do Vento que não se apresenta nada tímido.
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Está um clima agradável. Gosto da instabilidade do clima em Hetwestenland. Parece estúpido, mas dá um tom mais humano ao próprio Vento, que de humano não tem nada. Considero que, neste momento, de humano, tenho tudo, pois as minhas emoções comandam os meus sentimentos. O que nos separa, na verdade, dos animais?... Dizem que é a inteligência, mas será assim tão inteligente viver tão longe do nosso interior, do que realmente queremos ser, ou fazer?

Ela está deitada ao meu lado. Vejo, pelo canto do olho, que não dorme. Permanece imóvel, qual estátua de tecido humano, com seus olhos em conversa com um qualquer ponto no ar que nos rodeia. Não percebo muito bem como ali fui parar. Sem querer, acabei na última situação que queria, em todas estas situações que tenho vivido com Godelieve. Sorrio ao pensar que ainda não sei o seu verdadeiro nome. Tampouco quero saber. Que me interessa como os outros lhe chamam? Não me seria difícil descobrir, mas não quero. Saberá ela o meu?

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- Sabes o meu nome?

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- Claro que sim… – diz, baixinho, sem desviar o olhar. Surpreende-me. Terá sucumbido à tentação e procurou saber? Descuidei-me em algum momento?...

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- Theodoor… – sussurra, como se eu não estivesse no quarto e falasse sozinha. Sorrio. Deveria ter adivinhado. Há certas alturas em que sabe bem ser estúpido. A estupidez caminha par a par com a surpresa. Esconde algumas antecipações, e por vezes dá um pouco de cor à VIDA.

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Está nua, completamente. Nenhum lençol esconde centímetro algum da sua pele, escondida momentos antes pelos meus lábios. A minha respiração estabilizou já há uns minutos, e sinto-me descansado.
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Ouço um barulho ao fundo, ao qual não dou importância.
O barulho repete-se, e parece, de certa forma, aproximar-se. Sinto o peito arder um pouco e, sabendo que é impossível ser o que eu penso que poderia ser, tento apreciar a sensação que a adrenalina me dá. Mas esta cresce um pouco, de forma a que se torna um tanto ao quanto desconfortável. Ela levanta-se de rompante, ficando sentada na cama. O barulho torna-se mecânico, e materializa-se em algo que é, indubitavelmente, o abrir de uma porta. Pela porta do quarto não consigo ver além da sala que fica entre este e a sala de estar. Olho para Godelieve, que me devolve o olhar, dizendo-me com o mesmo que está surpresa. A adrenalina dispara, e transforma-se, creio, em medo. Enquanto me levanto, pegando num pedaço de lençol para me proteger, penso, num milissegundo, que nem toda a surpresa é boa, e nem toda advém da estupidez. O que eu penso estar a acontecer era simplesmente impossível. Ela levanta-se rapidamente, ouvimos passos a ecoar nos tacos do apartamento. Olho ao redor, vejo um armário. Talvez aí cometa um dos maiores erros da minha VIDA, não sei, o futuro o dirá. Apesar de ela apontar com o olhar para o fazer, recuso-me a me esconder num armário. Sinto-o como demasiado humilhante. Ao invés, permaneço estático, numa espera que me faz sentir os músculos latejar. Quero que se quede na sala, para que assim me possa vestir, e fugir. Ela veste-se à pressa. Está a enfiar o vestido quando o vejo entrar. À minha frente, a uns escassos 2 metros vejo o secretário de estado de Hetwestenland. Permanece calado 3 segundos. O seu olhar é de algo difícil de exprimir. Mistura ódio, com raiva, choque… surpresa…
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- Que é esta merda?! –
diz, alto, ao olhar para mim. Desvia o olhar para Godelieve e, não sei porquê, o que mais quero naquele momento é que esta não diga que “isto não é o que parece”. Talvez achando, desta vez ela, que isso seria demasiado estúpido e humilhante, não o faz. A pressa com que vestia o vestido dilui-se, e para. Olha para o marido.
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- Diz-me tu, o que é isto?! –
não percebo o que quer dizer com aquilo. Ruud, o braço direito do presidente, responsável pela polícia política e suspeito por estar por detrás de todos os “desaparecimentos”, está ali, mesmo à minha frente. Vejo o meu futuro a desaparecer, mas a nascer a ideia de quem sabe, eu próprio desaparecer. Prefiro desaparecer dum sítio do que ver o meu futuro desaparecer de mim mesmo. Dando um par de passos em direcção a Godelieve, aproxima-se, agarrando-a, agitando-a, e atirando-a, com um seco soco na face, para a cama. Chama-a de puta, diz que a mata.
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- E tu, meu filho da puta! – diz, dirigindo-se a mim. Talvez duma perspectiva de fora, como é a sua, eu possa parecer a pessoa mais auto confiante daquele quarto, menos preocupada, tal é a minha postura. Permaneço imóvel, vendo tudo aquilo como se de um filme se tratasse. Em frágeis segundos penso se alguma vez me imaginaria, há uns tempos atrás, em tal cenário. – Eu sei quem tu és! – o indicador aponta ferozmente a minha cara, a uns escassos centímetros. Saem palavras da sua boca com uma cadência tal que apenas consigo perceber algumas – Tu estás completamente acabado! Tu e esta puta, estás a ouvir?! – grita, e a sua cara aproxima-se da minha, muito lentamente. Vejo-o irado, uma veia perto da têmpora direita prestes a explodir, os olhos injectados de sangue. Antevejo um ataque a qualquer momento. Cerro os punhos, mas estou disposto a ser esmurrado.
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Ouço um baque. Vejo-o tombar à minha frente. Lentamente, forma-se uma pequena poça de sangue vermelho escuro, saindo, imagino, da sua cabeça, acumulando-se no sumptuoso tapete da mesma cor. A adrenalina que sentia dentro de mim rebenta, de tal forma que me faz sentir tonto. Dou um passo para trás, numa tentativa de me equilibrar. Levanto os olhos e vejo Godelieve, com uma expressão assustada, a um metro de mim. Segura, na mão direita, um pequeno punhal ensanguentado. Os seus olhos, arregalados, mostram-me medo e pânico, mas vejo a sua mão, estática, não treme, tal como o meu próprio corpo, minutos antes. Não consigo processar de imediato a informação que chega aos meus sentidos. Dou outro passo para trás, e sento-me numa cadeira. Ela deixa cair o punhal, aproxima-se de mim. Os olhos estão molhados, não sei se chora. Senta-se no meu colo, afoga a sua cabeça no meu pescoço. Sinto lágrimas jorrar pelo meu peito.
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- Está morto? – pergunto. Ela não responde. – Está morto? – sem falar, diz que sim, abanando lentamente a cabeça. Penso no que fazer. É-me difícil. Vejo à minha frente um dos homens mais importantes do país morto… vejo Godelieve, semi-nua, sentada no meu colo, a chorar. Abraço-a, aperto-a fortemente, e digo que vai ficar tudo bem, sendo esta mensagem mais para mim próprio que para si.
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Assim permanecemos por uns minutos. Certamente por sentir o que sinto, sinto o quarto mais frio, como que se a alma a sair do seu corpo gelasse as pessoas ao seu redor. Ela pára de chorar. Abraça a minha face com os seus dedos delicados. A sua expressão anterior de choque foi então substituída por uma que me sugere controlo e inteligência.

- Theodoor, vai correr tudo bem. – correr tudo bem? Penso na diferença entre a frase que lhe disse minutos antes e a frase que me diz agora. – Tu vais-te embora, eu vou fazer desaparecer o punhal, vou sair, vou jantar, vou chegar a casa, deparar-me com o meu marido morto, e vou ligar para a polícia. Foi um acidente. Ele ia fazer-te mal, e tu sabes que eu não podia permitir isso. Não a ti. – a sua voz desce de tom e ouço-a apaixonada e quente. Aí sim, sinto-me como um animal. Tenho um cadáver ao meu lado, mas sinto-me excitado. Mas essa inteligência que nos distancia diz-me que devo ir embora o mais rápido possível. A sua voz desaparece, e damos um longo beijo. Sinto-a como duas pessoas. A pessoa que agora me beija apaixonadamente não é dona daquele olhar assustado que me mirava, em pânico, minutos antes. Esta pessoa, que agora sustenta seu peso no meu colo, acalma-me, e convenço-me que sim, vai correr tudo bem.

4 comentários:

Catarina M disse...

=)

Anónimo disse...

Um salto no tempo dei eu, ao ler a tua escrita que me "agarra" ao monitor do portátil. Dei um "salto" até ao ano 78... (já passou assim tanto tempo?). Esta VIDA é cheia de estórias, umas em vão...outras não.

Abraço

Sei que existes disse...

Que situação! O que se passará a seguir?
Beijocas grandes

Jacinta. disse...

soberbo :)