terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Olívia Sześć


Sześć

- Olá mãe! – cumprimento a minha amargurada progenitora, por quem nutro eterno afecto, mas de quem sentirei eterna pena. Quem sabe a combinação de um sentido observador, com o facto de ter tido muito que observar no meu próprio lar tenha resultado nesta minha decisão de viver sozinha. Corrijo-me. Na minha decisão de não viver obcecada com não viver sozinha.
- Olá filhinha, como estás? – pergunta, com aquele tom de tristeza que sempre me deixou um pouco irritada. Vejo na minha mãe as minhas amigas daqui a uns a anos, com a tristeza e as queixas como fonte eterna de conversa.
- Estou óptima! – sinto a nítida diferença entre o seu tom e o meu. Penso e volto a pensar, e não quero dizer porque me sinto particularmente… óptima.
- Ui filha, que alegria! Que se passa? – pergunta, curiosa. Se decidi não dizer a razão deste entusiasmo especial, sinto que foi um pouco tarde. Não lhe direi que estou interessada em alguém que vou ver esta noite. Usar na mesma frase palavras como “homem” e “noite” sempre deram a minha mãe, por um lado, falsas esperanças ao perspectivar um, finalmente, genro, e, por outro lado, repulsa com a maneira como certas pessoas – eu – se podem dar ao luxo de se divertirem sem pensarem duas vezes ou sem se irem confessar e purgar no dia seguinte.
- Nada, Piedade – nunca entendi porque trato a minha mãe pelo seu nome tantas vezes… – Que queres que te – nunca entendi porque trato a minha mãe por tu tantas vezes… – diga… Está bom tempo, sou jovem – quarenta e sete? – e a VIDA é bela! - nunca entendi porque o facto de ver o melhor em existir me afasta tanto da “normalidade”… Não sei se ajuda o facto de me ver como um mero personagem… Talvez a VIDA seja mais fácil e leve se imaginarmos que outras mãos as guiam que não as nossas. Não gosto de pensar em deus ou essas tretas, mas dum qualquer escritor carismático e charmoso, da minha idade, envelhecendo um pouco acima da minha existência, ao mesmo tempo que eu, enquanto fuma cachimbo e bebe Licor Beirão. Olívia!! Como é possível que te sintas excitada a pensar num escritor inexistente que escreve a tua inexistente existência?! Certo é que sei ser estranho, mas…

[certa ideia não me sai da cabeça…]

Quando termino a chamada, agradeço à Dona Manuela, que trabalha na secretaria do liceu onde trabalho, e vou dar a última aula, para depois ir para casa. Vejo a uma hora de distância um banho de imersão muito prazeiroso e os preparos dum jantar para o qual, sem querer, tenho algumas expectativas. Lanço para a cara dum estranho um sorriso tímido mas atrevido, ao sentir alguma vergonha do quão longe vou nos meus planos e ideias acerca do charmoso Eduardo, meu colega e professor de Português.

Fecho a porta atrás de mim e a primeira coisa que faço é espalhar o perfume do senhor Ray Charles pela minha casa. Reparo nas paredes beges, escuras quem sabe pelo fumo do tabaco, e penso em mudar isto e aquilo… Deixo a minha bolsa da mesma cor das paredes cair no sofá da mesma cor da música que ouço e dispo-me. Ao som de Walkin’ & Talkin’, entro na banheira, levando comigo um copo e uma garrafa de Rosé Sul-africano, o melhorzinho. Encontro-me sem fuga possível, e a ideia que não me saía da cabeça toma conta de mim. Enquanto a banheira vai enchendo, deixo as minhas mãos percorrerem o meu corpo já denunciador da idade… imagino o meu escritor… alto, mãos poderosas e calejadas, olhos verdes e cabelo grisalho. Faço dos meus dedos as suas próprias penas, e massajo-me com calma e cuidado, adiando com sabedoria o culminar do prazer, o orgasmo que, quem sabe, me deixa mais perto do meu próprio criador por uns instantes. Mergulho bem fundo, tanto o meu corpo na água quente, como os meus escaldantes dedos dentro do mesmo e, imergida em tudo o que sou, permito-me afogar-me um pouco em prazer. Não foi longo, mas maravilhoso. Sorrio e mais uma vez sinto-me lançar aquele sorriso tímido. Não por sentir vergonha alguma em me satisfazer, mas por imaginar, com prazer, as caras das minhas amigas se lhes contasse como conhecia os cantos e recantos de mim mesma.

X +2h30

Meu deus, Olívia, meu deus!! Como é possível que sejas tão tonta?

Felizmente nunca fui, ou se fui, desde há muito tempo que não sou, de me afundar em misérias e tristezas, preferindo levar, tanto quanto possa, as contrariedades com um sorriso. É por isso que, saindo de mim e vendo o que se está a passar, devo confessar que me desmancho a rir! Autor, meu querido autor, como me pudeste pregar uma partida destas?
Vejo-me sentada, bela. Não pareço mais nova, tampouco mais velha. Não pareço nada mais, nada menos, do que aquilo que sou. Madura, bela, sedutora e sabida. O meu vestido vermelho não chega a ser provocador, mas arrancaria uns olhares de escárnio por parte das mais puras das almas. Uso na cabeça, quase como bandolete, os meus largos óculos de sol que nunca abandono. O meu queixo repousa na palma da minha mão direita, cuja extremidade aguenta um cigarro beijando uma boquilha negra. O meu ar… sinceramente não sei bem como identificar, ou definir o meu ar, sendo que sei o que sinto e vejo isso como algo que me impossibilita o distanciamento necessário para um julgamento mais preciso… Pareço atenta, quem sabe, mas com um leve toque de surpresa. À minha frente vejo Eduardo, que fala animado sobre o clima político fervoroso que se vive na actualidade. Volto a entrar em mim, já vejo o que os meus olhos alcançam, e acima de tudo sinto o que a minha mente não conseguiu antecipar. Facto é que vejo em Eduardo alguém muito bonito, simpático, mas que é um paneleiro de todo o tamanho! Como é que é possível? Que seja paneleiro, não me interessa, sabe o autor as coisas que já fiz e me fizeram, noutros tempos, mas como é possível que me tenha escapado tal facto? Os seus pulsos ondulam como quem faz tricot, fala como se precisasse de dizer as letras todas e estivesse constipado, e de vez em quando solta uns agudos que me fazem sentir um júri numa escola de canto para meninas… Vislumbro, na minha imaginação, os seus agudos no vidro do meu pobre copo, à beira do cataclismo vocal…
Talvez para salvar o sagrado recipiente duma rachadela fatal, talvez para me ajudar, com um pouco mais de álcool, a esquecer esta surpresa, agarro o néctar, que bebo dum só gole. Ainda penso se lhe devo dizer, ou não, que estava interessada nele… pensando bem, ele pode até não ser p... homossexual, mas a verdade é que homens efeminados, por mais que possam gostar de mulheres, nunca me atraíram sobremaneira. E isso, naturalmente, faz com que a probabilidade de eu acabar na cama com ele seja parecida com a de ele começar agora a falar de futebol e gajas… Não vai acontecer! Sempre gostei de homens fortes e viris, que tentassem mandar em mim, mas sem realmente o fazer. Que se chateassem, praguejassem e berrassem, mas que passado meia hora estivessem dentro de mim a dizer que me amavam, ainda que não o fizessem. Infelizmente, este meu, quem sabe, estranho gosto por homens, fez com que não consiga arranjar ninguém, pois na altura em que vivo, no país onde vivo, a distância entre um berro e um par de estalos não é mais que uma nuvem e um aguaceiro. Quando um existe, ainda que a consequência nem sempre apareça, a ameaça está sempre presente. E sabe o autor o quanto eu estou disposta a me dar ao luxo de ser miserável…

- Bem, Eduardo, está a fazer-se tarde, sabes? – sugiro, pensando ao mesmo tempo que, uma vez ultrapassada a surpresa e a desilusão, seria bom sermos amigos. Sempre adorei amigos gays!
- Óóóó queeerida! – ai Eduardo, ai… - Já vai? – pá, desde o primeiro momento que te trato por tu e ainda não saíste dessa? Sinto-me começar a culpá-lo pela minha própria surpresa, quando ele não tem culpa nenhuma…
- Olha… antes de mais, trata-me por tu, por favor, porque eu já te conheço, e vendo que és uma pessoa muito simpática e porreira, tal como eu, – sorrio – acho que não faz sentido que assim não nos tratemos. Depois, eu tenho de ir, sabes, é que estou um bocado cansada. Mas olha que adorei – blá blá e isso tudo…

X + 3h30

- Um café, por favor – peço ao simpático empregado, que me responde com um aceno. Estou na Brasileira. Como me sentia ligeiramente tocada pelo champanhe, decidi não ir de imediato para casa. Nem me preocupei com o facto de me poder encontrar com Eduardo, arranjaria uma desculpa qualquer. Creio que, na verdade, talvez esteja a antecipar um certo sentimento… A surpresa algo piadética que senti, as risadas que dei dentro mim… vejo-as, de certa forma, como uma possível escapatória para a tristeza e a desilusão que receio começar a sentir, uma vez que acalme. A minha mente leva-me para quando o meu querido autor me decidiu presentear com uma alma gémea, e a maneira cruel como a retirou de mim, e como desde então me resignei perante a ideia de uma impossibilidade em arranjar alguém. Acho que é impossível resignar-nos verdadeiramente com alguma coisa. Lado a lado com a resignação, caminha o sentimento de estagnação e morte. Talvez eu tenha simplesmente confundido as minhas palavras, tenha falhado como me exprimir, ainda que de mim para mim. Talvez usemos com frequência o termo resignação, quando no fundo o que queremos dizer é que continuaremos a procurar, mas já não estamos propriamente aos saltos no sofá perante a mais leve ideia de que possa correr bem… Enfim.

X + 4h30

A cama vazia é algo com que poderei sempre contar. Tento controlar a tristeza que antecipei, e deixo um ameno sorriso espalhar-se no meu espelho. Olívia, tu és quem tu és! Toda a gente, no seu interior, gostaria de ter muito do que tens, de quem és! O facto de eu não ter, ainda que não o queira admitir, algo que outros têm no seu exterior, como uma companhia, talvez valha a pena para ter o que tenho, no meu interior, e que os outros querem ter, ainda que não o queiram admitir. Que estranho equilíbrio, autor…

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