terça-feira, 14 de abril de 2009

Tempos

um

As coisas tinham mais piada quando ainda brincávamos de noite. Jovens e ferozes abraçávamo-nos e rebolávamos entre os gigantes fetos que, altivamente, nos invejavam de alma cheia. O que havia para não invejar? A VIDA existia só para nós, as almas que tocávamos eram incandescentes, os segundos estendiam-se diante dos nossos olhos como oportunidades irrecusáveis. O ar, que cheirava a quente, entrava dentro de nós aos pontapés, adormecíamos ao relento e sorríamos com as reprimendas ferozes dos nossos pais.

Vivíamos cada dia com uma simplicidade que hoje em dia desconheço. O sol nascia, punha-se, e eu gostava da tua companhia. Pouco mais precisava de saber. Lembro-me do teu cabelo louro completamente descontrolado com os quase furacões por que passávamos, lembro-me de esfolarmos os joelhos e beijarmos as nossas feridas para sarar. Que bom que é ter-te tido assim, guardar em mim a memória indelével duma infância incrível. Ida, perdida, mas nunca esquecida.

Mas foi há tanto tempo… Sinto-me um pouco estranho, sabes… Sinto-me estranho por ver essas imagens tão longe. Éramos tão novos e felizes… Vivendo na ignorância e ingenuidade de pensar que todos os dias seriam os mesmos, para sempre, vimos o tempo passar, a voz mudar, a atracção nascer… A pureza da infantilidade foi desaparecendo lentamente, imagino que mais preguiçosa para comigo do que para contigo. Com o tempo, deixamos de nos rir a bandeiras despregadas, deixamos de ir abraçados para a escola, deixamos de dormir juntos. A minha estranheza inicial era cedo disfarçada pelas tuas razões inexplicáveis. Incrível como num segundo eras como que minha irmã, tudo aquilo que me deixava feliz, para quase repentinamente seres tudo aquilo que me deixava desesperado. Via a tua atracção pelos outros rapazes algo difícil de aceitar, via os teus segredos partilhados comigo como algo impossível de tolerar. Sorria, claro que sorria. Cada sorriso era tão difícil como o tempo voltar para trás… Sorria e ria para não te mostrar o quanto me doía eu não fazer parte das estórias que me contavas.

Quando me perguntavas de quem eu gostava, com quem eu queria namorar, nada conseguia fazer senão inventar nomes, datas e acontecimentos. Preocupava-me imenso com os detalhes para não perceberes as minhas mentiras ridículas, esforçando-me por acreditar que acreditavas. Pensava nas razões que te estavam a afastar de mim, e era-me difícil perceber se realmente o estavas a fazer. Porém, não tardei em perceber que não. Não te afastavas, eu simplesmente queria mais, e via o teu não-querer como um terrível afastamento, uma rejeição que levaria, a qualquer momento, à minha própria rejeição, numa estúpida tentativa de ser o primeiro a mostrar ao outro que a sua companhia era dispensável.

As minhas acções e pensamentos iam-se desenrolando mais ou menos conscientemente… Na verdade pouco domínio tinha da minha estupidez que acabaria por te afastar.

Comecei por esforçar-me ao máximo por organizar fosse o que fosse, fosse com quem fosse, menos contigo. Hoje custa-me escrever isto. Custa-me a constatação de tudo o que fiz, e de como, pouco mais tarde, te faria chorar, te faria triste, a ti, a pessoa de quem eu mais gostava, de quem eu ainda hoje mais gosto e gostei. Como podemos ser tão cruéis com as pessoas para quem apenas queremos bem? Seremos assim tão inseguros ao ponto de preferirmos evitar a rejeição repudiando as pessoas de quem mais gostamos? (Serei assim tão inseguro por falar no plural?) Tudo o que eu fazia vinha do meu interior, dum estúpido ego, preocupado em evitar a verdade… verdade essa que na minha cabeça se manifestava apenas num grande e redondo não, que nem tinha por que existir. Talvez seja mais fácil magoar quem gosta de nós. Todas as armas são-nos entregues, temos apenas a opção de como as usar.

Cobarde que era, quando me perguntavas se se passava algo, apenas dizia que não, que estava tudo bem, e cruelmente devolvia a questão, perguntando-te se não estarias a ver coisas que não existiam… O teu olhar, para mim, foi-se perdendo com o tempo, em dias que pareciam semanas, em semanas que pareciam anos, até que começávamos a fazer parte de grupos distintos. A tua beleza, por outro lado, não perdoou e continuou a esticar as cordas da minha imaginação a cada diz que passava. Não tendo sido tão generosamente brindado quanto tu, tinha de me esforçar mais para ser popular, e o meu sentido de humor, desobediência e talento para o desporto foram-me tornando numas das pessoas mais populares da escola, como parte dum grupo cada vez mais rival do teu. Já não éramos amigos, mas o passado que partilhávamos, de certa forma, mantinha-nos ligados, e quando me sorrias, do outro lado do corredor, algo estranho se passava de dentro de mim. Era atingido por uma tristeza súbita, fruto da constatação duma realidade onde não sabia como tinha chegado. Ainda caminhávamos juntos para casa um dia ou outro, quando por acaso nos encontrávamos pelo caminho. A conversa mostrava-se cada vez mais difícil de surgir, ainda que, uma vez que aparecesse não permanecesse com essa timidez que em nada ajudava.

- Engraçado… – disseste-me uma vez. Tínhamos acabado de chegar a tua casa, e depois de um seco “xau”, preparava-me para seguir. Ficaste parada no meio da estrada, a mochila apoiada num ombro apenas, o teu cabelo enrolado numa grande trança de trigo dourado – Antigamente tudo do que falávamos era do futuro… Agora, e quando falamos, é sempre do passado… – soltaste, tristemente. Nada mais te ofereci de volta, perante a tua pragmática afirmação, que um levantar de sobrancelhas e um encolher de ombros. Foi a última vez que fomos juntos para casa.

A verdade doía, e a estranheza perante o que sentia por ti em nada ajudava. Dava voltas e mais voltas à cabeça, e não conseguia perceber como uma amizade de infância se poderia ter transformado num amor tão insólito e mais ainda, como fazia, não só por se manter, mas por se adensar irremediavelmente com o passar dos anos…

Com o passar dos tempos os grupos de que fazíamos parte oficializaram as suas diferenças e ódios de estimação, com mensagens nos quartos-de-banho, brigas ocasionais e piadas a cada segundo. Eu começava a fumar e a vestir-me com casaco de cabedal e calças rotas, tu mantinhas a tua pureza, o teu estilo, fosse o que fosse que tanto te fazia bela e especial. Tínhamos quinze anos, se não me engano, quando te dei a conhecer, ainda que sem o querer, o adverso dos sentimentos que tinha por ti. Passavas no bufete, e ouviste-me gozar com as tuas camisas às flores e as tuas tranças, coisas que, no fundo, adorava em ti. Não quero repetir o que disse, e talvez tenha feito por esquecer, mas algo que trarei sempre comigo é a tua imagem, diante de mim, com lágrimas nos olhos, a olhar estupefacta, como se a tentar perceber se o que se estava a passar era mesmo real… Eu, claro, nada fiz senão soltar um “oops” molhado de sarcasmo, avolumando a chacota por parte de toda a gente.

Nessa noite, ainda que fizesse por matar qualquer sentimento, não conseguia apagar o buraco gigante e negro que tinha dentro de mim. Não o queria sentir, não o queria admitir, e creio que quase tinha sucesso na arte de a mim próprio ludibriar. Claro que quando tudo aquilo que via, fosse de olhos abertos ou fechados, era o teu rosto choroso, tornava-se demasiada evidente a pesada realidade da estúpida e triste pessoa em que me tornara.

Era criança, jovem, adolescente… Porém, ainda que por vezes tivesse tentado, nunca consegui realmente desculpar a minha atitude com a minha idade. Não aceitei os sentimentos que carregava dentro de mim, e isso apenas aumentou, de dia para dia, a sua pressão. Quem sabe um par de palavras tornaria tudo completamente diferente. Todavia, deixei-me levar por um estúpido medo, de uma rejeição apenas imaginada. E que fiz com isso? Magoei, antes de ser magoado. Magoei, como se fosse inevitável alguém o ser, e como se fosse muito mais importante ser a pessoa de quem eu mais gostava a sofrer, do que eu, com o meu ego de dois andares…

dois

Voltamo-nos a encontrar.
Nem sabia a última vez em que te tinha visto, mas ver-te quando vi, mais ou menos há um ano, depois de ter passado tantos tempo sem o teu olhar, foi sentido por mim como uma súbita brisa fresca, um instantâneo viajar aos tempos em que era mais feliz.

Foi em Lisboa, onde tinha ido ver um concerto com alguns amigos. Estava no Vasco da Gama, na fila do McDonalds e vi-te a passar ao fundo. Não percebi logo que eras tu, pois dada a improbabilidade de tal acontecer, pensei que fosse apenas alguém parecido contigo. Contudo, quando viraste um pouco a cara, o poderoso disparo de adrenalina que senti dentro de mim disse-me tudo o que precisava saber. Disse aos meus colegas que voltava dentro de momentos, e saí a correr na tua direcção. Estava nervoso, muito nervoso. Não tinha nenhuma imagem ou momento particularmente gravados na cabeça, nada de que me sentir orgulhoso ou envergonhado, nada senão a vontade de te abraçar durante alguns dias. Quando apenas um metro nos separava, abrandei subitamente. Admirava a tua esguia figura, sintia o teu cheiro. Toquei-te na mão direita e voltaste-te para trás. Os anos fizeram-se sentir, mas leve, levemente, pelo que, ainda que sabendo que tinhas trinta e quatro anos, poderias facilmente parecer meia dúzia de anos mais nova. Ainda usavas o cabelo longo, mas tinhas deixado as tranças algures na juventude. Os teus olhos ainda brilhavam, e os teus lábios finos pareciam destreinados em sorrir, quem sabe apenas porque não o fizeram de imediato como os meus, que se abriram largamente.

- Mi… Miguel? – perguntaste, ainda sem sorrir!

- Sim, Ana! Há tanto tempo!! – constatei, sorrindo por mim e por ti. O meu entusiasmo em te ver não era partilhado por ti, notoriamente. Porém, não me surpreendia, e pouco depois dos típicos “tudo bem? / que fazes por aqui? / etc”, atrevi-me. – Olha, eu sei que já não nos vemos há anos, e que fui um parvalhão contigo durante anos a fio, mas gostava muito de jantar contigo hoje, ou fazer qualquer coisa… – o teu olhar da mesma forma se atreveu, e lançou-me um “estás doido” sem querer – Anda lá, pelos bons tempos que passamos.

- Isso é um bocado à filme… “pelos bons tempos”… Mas não vai dar, Miguel, tenho uma reunião e depois tenho umas coisas para fazer… Se calhar para uma próxima vez, sabes

- Uma reunião? – interrompi – São sete da tarde! Anda lá Ana, eu prometo que te explico tudo, e a razão da minha imbecilidade

- Que imbecilidade? Eu nem sei do que – tentaste.

- E podes sair a qualquer momento – voltei a ganhar domínio da conversa – e nunca mais me falar na VIDA, mas anda comigo hoje, por favor! Pensa nas probabilidades de te encontrar aqui! – demorei um pouco mais que isto a convencer-te, mas finalmente acedeste. Sabia que não estavas a vir porque realmente te apetecia, via alguma relutância e uma espécie de última oportunidade. Mas não me importava. Sentia que tinha de explicar tudo o que se tinha passado, os caminhos que tomei e porquê.

Assim, para desagrado de Paulo e João, não fui ao concerto. Os U2 voltariam a Portugal, e não sei se te voltaria a encontrar assim, do nada, tão cedo. Apanhamos um táxi, e perguntei-te por um sítio bom para comer. Estavas diferente. A tua beleza agora manifestava-se forte e independente. Não eras já a ingénua Ana, com um sorriso despretensioso, tinhas-te tornado em outra Ana, segura e quem sabe desconfiada. É sempre difícil analisar alguém acerca de quem temos tantas ideias, com quem crescemos e julgamos, um dia, conhecer perfeitamente. Quando gostamos de nós fazemos tudo por não mudar, quando amamos outra pessoa, rezamos a quem seja preciso para que não tenha mudado. Não acalentava nenhuma esperança, a estrada entre nós era agora muito grande e longa, algo impossível de ultrapassar com um jantar, um café e um pedido de desculpas. Porém, ainda que nunca mais te visse, queria que continuasses a ser tu, queria acreditar que algumas pessoas, simplesmente, nasceram para se destacarem dos demais, existirem num outro nível, dando aos restantes humanos nada mais que uma leve esperança acerca da nossa mortal condição. Deus, como te idealizo…. Não me importo.

Levaste-nos para o Bairro Alto, a um restaurante de Tapas, de ambiente descontraído e agradável. Pelo caminho fiquei a saber que vivias em Lisboa quase há dez anos, eras jornalista e tinhas uma filha. O choque da última novidade foi pesado, ainda que aliviado um pouco quando disseste que o pai da menina fazia parte dum distante passado. Uma vez mais, o estúpido egoísmo… como poderia ficar feliz por estares sozinha?... Sei bem que se dependesse de mim, da minha racionalidade, queria apenas que fosses o mais feliz possível, não me interessava como. Contudo, o reverso da medalha que é a nossa irracionalidade ver-nos-á sempre como o centro do mundo, e admitiria apenas a tua felicidade se no meu lado.

- Disseste que me ias explicar as razões da tua imbecilidade, Miguel. Nem percebi bem do que estavas a falar de início, sabes?... E é estúpido, pois realmente a nossa relação ardeu duma maneira impressionante… – disseste, mordendo um pimento – Mas nunca mais pensei nisso… e por isso hoje quando te vi estranhei a maneira como me senti… – admitiste, fugindo com o olhar.

- Como te sentiste?

- Espera. Diz lá tu o que tens a dizer. – ordenaste. A tarefa de expor a minha estupidez, subitamente, mostrou-se dez vezes mais complicada do que alguma vez pensara. Dei um gole no Muralhas quase exageradamente fresco que pedíramos, respirei fundo. Antes de entrarmos de cabeça no assunto, tinha tentado trazer para a mesa algumas estórias engraçadas da nossa infância, talvez tentando suavizar-te um pouco, relembrar-te daquilo que já fomos. “Não éramos nós, se calhar… Éramos pessoas diferentes, que morreram para dar lugar a estes adultos estranhos que somos. Falamos de coisas que se passaram há 25 anos… eu adorava aquelas crianças, mas que temos hoje delas?” – mataste, de imediato, as minhas tentativas, surpreendendo-me com o teu pessimismo e cinismo, mas deixando-me, ao mesmo tempo, a questionar a genuinidade do que dizias. Serias mesmo essa pessoa, ou rejeitavas agora tudo de bom que tivemos um dia, como eu próprio, no passado, fiz contigo, quando tudo era ainda muito mais fresco?

Assim, um pouco às cegas, e adiando o meu comentário acerca da tua aparente ideia acerca da nossa infância, expliquei-te que a razão pela qual tinha sido tão estúpido contigo era nada mais nada menos que o medo por aquilo que sentia.

- Hã? ‘Tás a falar de quê? – perguntaste, com um olhar crítico. Estava a custar-me a tua atitude, e não tinhas ainda baixado as tuas defesas. Fá-lo-ias de todo?

- Nós em crianças éramos como irmãos, Ana. Só que depois começamos a crescer e, basicamente, o que sentia por ti transformou-se de uma maneira assustadora. Como dizer… eu morria de amores por ti! – disse, com um olhar infantil e um sorriso sem resposta – E tu falavas-me dos rapazes e não sei quê, e que gostavas deste e daquele, e que tinhas trocado um beijo com alguém… e sei lá, p’ra mim era impossível ouvir isso – ias interromper mas antecipei-me – E eu sei que isso não, de maneira nenhuma, desculpa, mas por isso mesmo te digo que foi uma estupidez, sem sentido, e sei que te magoei muito, e não sabes como estou arrependido! – o teu marítimo olhar estagnou, apontando numa direcção que não a minha. Parecia-me que estavas a… ceder. Ceder na medida em que sentia que, paulatinamente, deixavas-me de ver como um intruso, ou um inimigo.

- Ai, Miguel, que és mesmo um parvalhão… – disseste, com um sorriso já não sarcástico, mas, arrisco-me a pensar, simpático.

- Vá lá, sabes que não. Fui um parvalhão várias vezes, com quem não merecia, mas pá… foi o que foi, e não há como o mudar. A verdade é que nunca te esqueci… A VIDA continua, sei-o bem, mas não fazes ideia de como fiquei feliz de te ver hoje, e poder, nem que seja apenas tentar, explicar-te o que se passou, e ter alguma paz de espírito.

- Ai, Miguel, que és mesmo um parvalhão pá. E burro! E cego! – hum? – Como é que é possível que não tenhas nunca percebido que eu sentia o mesmo ou até mais por ti do que aquilo que ti sentias por mim? - ? – Está claro que de vez em quando sentia uma ou outra atracção, mas a maioria do que te dizia era para ver se fazias alguma coisa, se dizias alguma coisa, para te fazer ciumento e, sei lá, estimular-te. Que estupidez… – disseste, incrédula. Já eu, não sei se posso dizer se me sentia incrédulo, pois a surpresa era demasiado forte, misturando estupefacção com incredulidade e todos os sinónimos possíveis.

- Não gozes Ana… ou estás a falar a sério?

- Claro que estou, burro! Acreditas que sempre me questionei e massacrei, perguntando-me milhões de vezes o que era que me faltava, porque não gostavas de mim e, claro, mais tarde, porque te tinhas tornado tão frio e estúpido comigo… – quando te ouvi dizer isto senti uma tristeza indescritível. É mau quando não temos o que queremos, mas como é tão pior sabermos que, afinal de contas, o podíamos ter tido…

- Nem fazes ideia como é estranho ouvir isso…

- Faço sim, acredita… se calhar fomos ambos muito estúpidos, tu apenas o manifestaste duma maneira pior…

O resto do jantar desenrolou-se de uma forma que me fez acreditar que tínhamos voltado atrás. Talvez seja mesmo possível viajar no tempo. Talvez o facto de não sermos já os jovens que fomos, não termos o que tivemos, não queira dizer que não os possamos revisitar e ressuscitar dentro de nós. Demorávamos a comer, demorávamos a beber, tudo para termos o máximo que podíamos ter de nós próprios, como se fosse possível, num par de horas, recuperarmos tudo aquilo que tínhamos perdido por medos de arriscar e erros de julgamento.

- E agora? – perguntei, após o cansado camareiro ter, subtilmente, expulsado os seus últimos clientes. Era meia-noite e meia, e a noite deitava-se sob Lisboa, num agitado descanso.

- Agora caminhamos. Levas-me a casa? – sugeriste.

- Só se for longe… – sorri. Caminhámos lentamente, agarrando o tempo e colando-as às palavras e memórias, conscientes de que aquilo que fazíamos nesse preciso instante seria, em si, uma bela e inesquecível recordação. Já não tinhas tranças, eu já não tinha as minhas calças rotas. Já não tinhas a pureza de que tanto gostava, eu já não tinha a irreverência que tanto te desafiava. Porém, terá de ser a mudança algo assim tão terrível? O quanto gostei de estar contigo diz-me que não. Quem sabe a mudança seja algo terrível de presenciar se o bom do passado que tivemos nos cegar com falsas promessas.

Quando chegamos a tua casa, as certezas que tinha acerca de não ter nenhumas esperanças contigo começaram a dissipar-se sem eu me dar conta. Era o momento. Não sabia bem de quê, mas sabia que era o momento. Era, outra vez, o menino nervoso sem saber se teria um beijo nos lábios, se um amigável abraço.

- Que fazemos agora? Estou mais uma vez às cegas… – admiti – Mas estou a escolher partilhar isso contigo, acho que é um progresso… – sorri. Desta feita, não sorriste de volta.

- Eu também estou um pouco às cegas… Como te disse foi estranho ver-te hoje. Não estava à espera e esta noite foi como que se me tivessem dado um abanão… Mas a verdade é que… Ai Miguel porque é que tinhas de aparecer hoje, assim? Quando uma pessoa pensa que finalmente tem tudo sob controlo aparece o passado a bater à porta, que coisa… – sentia que falavas mais contigo do que comigo, e esforçava-me por perceber. – Miguel, eu tenho um namorado! – soltaste, finalmente, sem dó nem piedade. Senti que sentias o mesmo que eu, ou não necessitarias, de todo, de marcar o momento com tal revelação. A desilusão que senti foi algo simpático. Como que um par de palmadas nas costas e um sussurro ao ouvido dizendo “paciência Miguel… no fundo já sabias que nada aconteceria…”. Assim, limitei-me a encolher os ombros.

- Claro… Paciência. Quando te vi pensei em tudo menos em voltar a ter alguma esperança em relação a nós… Só que depois, à medida que o jantar foi acontecendo, tenho de confessar que, mesmo sem querer, acreditei um bocadinho em alguma coisa… Há coisas que não mudam, não é?

- Não fazes ideia…

três

Foste para casa depois de um longo abraço e promessas de reatar o contacto. Eu fui a pé para a estação de comboio, de mãos nos bolsos e um sorriso nos lábios. Não era um sorriso triste, mas um sorriso pacífico. Seria pedir de mais, ter-te nessa noite como tive, com a oportunidade de pedir perdão por tudo o que fiz, e ter um futuro diante de nós. Quem sabe um desenrolar demasiado sonhado para ser real. Quem sabe um passado mais em paz fosse tudo o que eu pudesse ter. E, na verdade, devo confessar que me deixa bastante feliz. De certa forma sempre me perturbou, como que uma pedra no sapato, a maneira como (não) resolvemos as coisas. Era algo que queria que mudasse, e mudei. Quanto a voltar a sentir este tipo de paixão, senti-la respirar um pouco mais forte, e vê-la ser correspondida por ti… era algo que desde há muito se me tinha varrido. Assim, acho que numa noite tive o que desde sempre quisera ter, e perdi apenas o que por alguns minutos voltei a almejar alcançar.

5 comentários:

Anónimo disse...

Tuas palavras tão altas para serem ignoradas...Me deixou de joelhos...Ter que lembrar toda a perda se inicia com o afastamento primeiro...Tudo isso dói muito qdo voltamos e temos que constatar a verdade...Quando o passado se torna uma esquina preferida da rua longa da vida,e é lá que todos os dias vc quer passar,voltar,lamber praticamente o ar daquele lugar...
Fica-me tb a tua mesma pergunta:

"Como podemos ser tão cruéis com as pessoas para quem apenas queremos bem?"


Deixo-te um abraço de bem-querer por poder ter me lido em tuas palavras...

Anónimo disse...

Tempo(s) de recordações, balanços...desejos.

Tempo também para te (re)ler com satisfação.

Grande abraço

Jacinta. disse...

já tinha saudades destes textos...
=) e de aqui vir dar um saltinho!

GiraFlor disse...

Já há muito o aflores me disse para passar por aqui e tinha razão: 5 estrelas (:

sofia disse...

Não é nada em vão esta história de amor...