sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Entrega - VII

Cry Me a River

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Tivesse vindo de quem tivesse vindo a proposta, teria de ser aceite, obviamente. Partilhar um café e ficar por aí era do mais do mais penoso possível. Ela levantou-se, deixou-me sozinho sentado na mesa, e dirigiu-se ao bengaleiro. Antecipou o gesto que eu teria de pagar a sua conta, e saiu, esperando-me na rua. Levanto-me, mando uma mensagem a minha mulher, dizendo que não poderia jantar, pago, e após deixar uma simpática gorjeta, visto o meu casaco, ponho o meu chapéu, e saio. Parara de chover, mas o Vento mostrava-se agitado, como que adivinhando a agitação que ia dentro de mim. Apenas dentro de mim. Fora de mim, a pessoa mais calma e autoconfiante possível. Não tinha antecipado isto. Aliás, não tinha antecipado nada.

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Ela está à minha direita, com seu casaco longo, quase a tocar no chão. O seu cabelo esvoaça um pouco. Ela não o tenta domar. Acendo um cigarro, aproximo-me de si, com meu braço direito abraço sua cinta subtilmente, como que pedindo para seguirmos. Caminhamos um pouco, ainda sem falar, e levanto o braço, chamando um táxi. Entramos, deixo o cigarro ainda quase inteiro, na rua molhada, e sentamo-nos. Ambos na parte de trás, ela encosta-se e dobra a perna, olhando para a rua. Tiro o chapéu. O taxista, uma pessoa nitidamente local, pergunta para onde queremos ir. Enquanto penso em qual restaurante seria adequado, ela solta, em baixa voz: “Leve-nos a um restaurante que ache que gostamos. Não somos de cá”. Fico um pouco surpreso com esta súbita confiança no gosto de um taxista desconhecido. Vejo, pelo espelho retrovisor, que o taxista levanta as sobrancelhas, encolhe um pouco os ombros, e segue caminho. A noite aproxima-se a largos passos, os carros começam a ligar as luzes, e as ruas a ficar menos populadas. O taxista vai cantarolando algo, vejo pela janela os sem-abrigo a puxarem um pouco para cima os cobertores, algumas lojas a fechar.

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Eis que paramos. Não sei em que terá pensado o taxista, mas talvez tenha estabelecido uma relação entre o café de onde vínhamos e o restaurante que desejaríamos, pois o estilo é parecido. As paredes revestidas a madeira, e alguém a cantar, num canto, apesar de num palco não tão improvisado como no Vrijheid. É uma senhora, não muito nova, mas elegante, que canta envergando um vestido negro, com uma longa fenda, deixando ver a perna quase até à cinta. É fácil identificar o que canta. “Cry Me a River”, esse clássico já por tantas pessoas interpretado. As mesas estão revestidas com uma toalha branca, as cadeiras são pretas, da mesma cor de um par de velas que ardem lentamente perto dos pratos.

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- Porque temos de ter estes largos momentos de silêncio? – pergunto, após nos sentarmos. Olha-me nos olhos, fixamente. Eu faço o gelo do meu Martini rodar, lentamente.

- Pois eu acho que são os momentos em que nos entendemos melhor…

- Engraçado… isso soa-me a cliché… – atiro.

- E quem disse que os clichés são estúpidos? Por alguma coisa são clichés… quem sabe baseiam-se em verdades evidentes…

- Verdade. Mas acha que não nos entendemos tão bem… simplesmente falando?

- Se quer saber… eu acho que há momentos para tudo. E quando estamos em silêncio, estamos bem. Quando conversamos, estamos bem. Porquê arriscar a decidir qual desses momentos o melhor? – é fantástica.

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O jantar passou-se num ápice. As músicas não fugiram muito ao estilo que estava a ser tocado ao entrarmos. Mais uma coisa que não antecipara, o facto de ter bebido 3 Martinis, uma garrafa de vinho tinto e um whiskey, para rematar com estilo uma refeição repleta dele. Ela não tinha bebido muito menos, e eu notava isto, apenas no seu sorriso. Era um pouco mais longo, mais rasgado, e fazia-se acompanhar, vez por vez, por umas não muito sonoras gargalhadas. O ambiente aligeirara um pouco e estabelecia-se uma espécie de vínculo. Na verdade, o jantar demorou quase 3h, e fomos das últimas pessoas a abandonar o restaurante.

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Estamos para sair, falamos baixinho, debruçados na mesa, com nossos lábios nada longe, os dedos entrelaçados, e surge a grande questão… a questão que eu evitara desde o primeiro momento, surge dos seus lábios, cravando-se na minha expressão.

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- E agora?...

3 comentários:

S. disse...

Epá, Pedro... E AGORA?!? Sei que tens pelo menos mais um episódio escrito; disseste-o na caixinha! Quero-lo em breve. Não podes deixar uma pessoa assim. dassse!

Muito bem escrito, argumento que prende, bem conseguido, uma pequena repetição logo no início do texto que deves apagar...

Bom fim de semana e não demores muito com a continuação, tá?

Anónimo disse...

Pois...e agora? Agora pergunto eu...

Cati disse...

Agora... espero ansiosamente pelo que se segue!
Boa semana, um beijinho! Espero que tenhas tido um bom S. Martinho! (inspirador, com certeza!)