quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Justiça

Mind’s Eye - Wolfmother

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“Se quase toda a gente pode ter os que quiser, porque é nós não podemos ter só um? Só um…” – penso. Era o que tínhamos vindo a dizer um ao outro. De início acho que funcionava como uma espécie de desculpa, um tentar convencer-nos a nós próprios que não era algo assim tão errado. Mas, à medida que o tempo foi passando, e o plano evoluindo, comecei mesmo a acreditar, ou melhor, a compreender, e perceber que faz perfeito sentido.

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Quantas vezes tínhamos tentado, quantas frustrações… Parece que foi Deus, o meu Deus sagrado, que tantas vezes me castigou, mas que de repente me deu uma oportunidade. Por coincidência, soubemos que uma pessoa ia ter um. Mal soubemos da gravidez, e após interiorizarmos vezes sem conta a realidade, isto é, que também merecíamos um, começamos a planear tudo. O primeiro passo foi contar aos pais e aos amigos.

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- Pai, consegui, estou grávida! – A alegria de todos parece que foi quase maior do que a nossa até seria, pelo que mais me convenci que estava a fazer o que era certo. A partir daí começamos a disfarçar a barriga, com muito cuidado e progressivamente. Com um pouco de cuidado e esperteza, escapávamo-nos de eventos como idas à praia, piscina, enfim, tudo o que pudesse pôr a descoberto o nosso segredo. Para nosso azar, ou a pessoa que ia ter não tinha querido saber o sexo do bebé, ou nós não o tínhamos conseguido descobrir, pelo que dissemos a toda a gente que preferíamos descobrir na hora. O meu marido, dedicado como sempre foi, por volta do quinto mês, quando já tínhamos quase toda a roupa do bebé, oferecida um por todos os familiares e amigos, em tons de amarelo, já tinha descortinado todos os hábitos daquela numerosa família, bem como as fragilidades e faltas de cuidado na sua casa. Claro que tivemos o cuidado de arriscar o plano com alguém que não conhecêssemos.

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- Estou grávida! – Ouvi-a dizer às amigas no café. Não consegui descrever a profunda inveja que senti e sentido de injustiça ao saber que aquela mulher, que já tinha 4 filhos, ia ter mais um! Mais um! Remoía constantemente nisso, não conseguia deixar de me sentir como o ser mais negligenciado por Deus! Tinha de partilhar a raiva e ódio desmesurados e sem sentido que sentia, e fi-lo, naturalmente, com o meu marido. A surpresa foi enorme, mas deu lugar à esperança.

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- Não percebes esta oportunidade!! – diz-me. Tinha acabado de lançar uma ideia que me parecia absurda. - Tu não percebes? É perfeito meu amor! Eles têm quatro filhos! Eles se quiserem deitam-se e têm outro passado menos de um ano! E nós? Temos de aceitar esta merda de VIDA, envelhecer sem ter alguém de quem tomar conta? – As ideias começaram a bailar na minha cabeça, mas rapidamente pararam, e começaram a assentar realmente, começando a perceber que realmente até fazia sentido, e o que o meu marido dizia não estava tão errado assim. Era simples, fácil, e acima de tudo, era justo.

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- Querida… – diz-me ele um dia, estava eu sentada a tomar um chá, enquanto fazia festas na minha barriga de borracha. – Já nasceu! – senti-me tonta. Tive de me segurar para não cair. Já não tinha tal injecção de adrenalina há muito, muito tempo.

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- E agora?

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- Agora esperamos. Terça-Feira entro! – diz-me, com uma convicção tão forte que quase estranhei. Terça seria passado 4 dias. Escusado será dizer que esses 4 dias passaram como se fossem 4 anos. Estranho foi que, nesses 4 dias, fizemos amor mais de 10 vezes. A excitação do que íamos fazer, do que íamos ter, misturava-se com a excitação que o outro nos proporcionava, e vivíamos um para o outro, imersos em cada um. Aproximava-se o dia.

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Terça-Feira.

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- Tu ficas aqui! Vai correr tudo bem.

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XY

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Vai correr tudo bem, tenho a certeza. Só pode correr bem. São 4 da manhã, estou na rua desde as 2. Mando-lhe um toque para o telemóvel, avisando que estava tudo bem e ia avançar. Chego à casa, dou a volta e aproximo-me da porta das traseiras. Sem fazer nenhum barulho, consigo dar a volta àquela fechadura do século passado. Sabia que não tinham nenhum alarme. Passo pela cozinha, estou no hall, vejo as escadas e alegro-me ao ouvir o sonoro roncar do marido. Subo, viro à direita, vejo a porta do quarto. Escrito na porta está “Inês e Beatriz”. Agora o mais difícil e arriscado, entrar sem a mais velha perceber, e sem fazer o bebé chorar. Estou nervoso, muito nervoso. Respiro fundo, rodo a maçaneta. Vejo o berço. Aproximo-me e, com todo o cuidado, pego na menina. Tenho-a no meu colo. Rodo e caminho em direcção à porta. A bebé abre os olhos. Peço a Deus para que não comece a chorar. Ao invés, olha para mim. Os seus olhos miram profundamente os meus, na minha loucura imagino que me chama pai com aquele olhar, e solto uma lágrima. Continuo-o a caminhar, estou no hall, olho a criança. Levanto os olhos, surpresa. Vejo a mãe da bebé, mesmo à minha frente, olha para mim, não diz nada.

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- Que fazes aqui? Não era isso que tínhamos combinado! – digo, num sussurro quase inaudível. Ela aproxima-se.

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- Desculpa, mas desde que me mandaste o toque para te abrir a porta não consegui mais dormir. Queria despedir-me de ti pela última vez. – as lágrimas escorrem pela sua cara. Compreendo-a, mas quero ir embora o mais rápido possível. Adriana tinha sido a minha primeira namorada, nos tempos de universidade. Quis o destino que seguíssemos caminhos diferentes. A minha paixão morreu, e encontrei Isabel, a quem amo profundamente. Todavia, sabia que para Adriana, eu tinha sido o seu verdadeiro amor. Então, num gesto inumano, pedi-lhe, certa vez, o que não se pede a ninguém. Manipulei o seu amor, fiz com ela mais uma vez amor, e pedi-lhe, aí sim, o que não se pede a ninguém. Como me recordo. Deitada na cama, as lágrimas a molharem o lençol, disse que sim com a cabeça. Aproximo-me. Adriana aproxima os seus lábios dos meus, e dá-me o nosso último beijo. A criança, no meu colo consegue ver, pela primeira e última vez, os seus verdadeiros pais beijarem-se.

6 comentários:

Sendyourlove disse...

Brutal...adorei

S. disse...

Excelente texto, "as usual"! ;)
Parabéns pelo prémio que alcançaste e Feliz Natal!

Silvia Madureira disse...

Que complexidade aqui está descrita!

Vejo aqui dois amores fora do comum:
- o que a namorada da universidade sente pelo personagem;
- e o que a personagem sente pela esposa;

Ambos fizeram por esses amores coisas impensáveis para mim e que revelam um amor fora do vulgar...o amor tem razões que a própria razão desconhece?

Quem os pode condenar? Eu não consigo.

Hands of Time disse...

Olé! Já arranjei a minha lista lá no meu blog! Ossos do Oficio lololololol

Sei que existes disse...

Lindo, como sempre...
Desejo que neste Natal recebas tudo o que precisares e que te faça verdadeiramente feliz!
Beijo grande

Cati disse...

Só para te parabenizar por mais um fabuloso texto... e para te desejar BOAS FESTAS!

Um beijo!