segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Não Posso Mudar

Boa Sorte - Vanessa da Mata e Ben Harper

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A música toca num rádio qualquer. Não podia estar mais em consonância com o meu interior. “Acabou… boa sorte!” – nem tenho tanta a certeza acerca de desejar boa sorte. Mas que acabou, isso podes ter a certeza. Vou ao quarto de banho, lavo a cara, olho para o espelho. “There are so many special people in the world…” – e eu tenho de ficar contigo? Olho melhor. A nódoa negra no sobrolho está a desaparecer lentamente. As pisaduras que me dás são recordações que passam. Por isso mesmo, por passarem, tento fazer com que passem também dentro de mim. Quando vens e me pedes desculpa, o mundo muda. Não consigo negar perante o teu olhar de homem arrependido. O mundo muda, mas… contrariamente ao que penso, ao que quero pensar, as pisaduras que tenho dentro de mim não passam, essas são perenes, e massacram-me o dia-a-dia. Ser a mulher perfeita, fazer tudo perfeito, não falhar, sorrir, ser inteligente, sociável, não beber… nada! Tudo em busca de uma perfeição que sei não existir. Sei… porque mo lembras. Quando chegas a casa nos Sábados à noite, 4, 5, 6 da manhã, encontras-me a dormir, queres-me, eu não quero, estou a dormir… Tive de afastar um pouco a mesinha de cabeceira, fruto das quantas vezes que já lhe dei com a cabeça quando me empurras da cama, pleno em raiva perante a minha recusa.

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Estás no trabalho. É a altura ideal para sair, não encontro o teu olhar que pede perdão e que, não sei porquê, faz-me sempre voltar atrás. A música já não toca, mas fui ao computador e deixei-a a tocar vezes sem conta. Sorrio com ironia quando a Vanessa diz que tudo o que me queres dar é demais, é pesado… não dá mais. Espalho na cama as minhas roupas, coloca-as, uma por uma, na minha mala. Tento não pensar em nada. As lágrimas querem sair, a coragem quer desabar, mas não posso fraquejar. Faço a mala.

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Não me dou ao trabalho de desligar o computador. Vou à cozinha, escrevo um bilhete. “Desculpa, mas desta vez não há desculpa possível” – arregaço um pouco as mangas da camisola ao escrever, e paro meu olhar nas nódoas negras dos meus braços, que me recordam mais uma vez que sair é a única coisa que posso fazer. Sinto-me tonta, preciso de me sentar. Tiro um copo de água, que bebo lentamente, sentada com a mala aos meus joelhos. Ganho coragem. Posso voltar a trabalhar sem problemas, posso não posso? Não sou velha como ele diz sempre… pois não? Não!

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Levanto-me. Cada passo é marcado e sentido, sinto-me como os que fazem a última caminhada, em direcção à cadeira eléctrica. É isso que quero, matar esta VIDA, para começar outra de novo, completamente de novo. Nem preciso de encontrar esse alguém especial que há reservado para mim, pelo menos para já.

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Abro a porta. Quedo-me à saída. Passam dois vizinhos, que me cumprimentam e olham de soslaio para a mala que aguento na minha mão direita, e estranham a minha posição estática, frente a um futuro diferente. Não vejo os teus olhos, mas sinto-os em mim. Não te vejo à minha frente, mas sinto as tuas correntes. Mais uma vez não, por favor. Quero dar o passo, quero sair… mas não consigo. Choro compulsivamente, fecho a porta, sento-me no chão. Estou sentada com os joelhos dobrados, abraço as pernas. Vou para onde, vou para quem? Não tenho nada nem ninguém além desta prisão de portas abertas. A única forma que me permite sair é fazê-lo sabendo que voltarei. Não consigo. Não consigo nada.

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Não é a primeira vez que faço isto…

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Levanto-me, desfaço a mala, desligo a música. Rasgo o bilhete, começo a fazer o jantar.

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Chegas passado uma hora.

- Olá meu querido!

5 comentários:

S. disse...

Que dizer?! Que retrato tão fiel do que muitas e muitos sofrem diariamente. Claro que escrito por ti, muito mais belo do que situação o é! Excelente! Extraordinário! Apaixonante!

Beijinho

Cati disse...

Eu sei que é o desfecho mais real... mas gostava tanto que tivesse sido outro! Muito bom, adorei... hás-de re-escrevê-lo com o final que muita gente especial no mundo deseja...

Beijoca!

Sendyourlove disse...

um dia decido...enfrento o futuro e descubro que afinal lá fora á gente a quem voltar, uma casa nova a montar...
faço as malas com rapidez e saiu sem nunca mais olhar para trás...
o teu nome esqueci, teu rosto não mais vi...

Silvia Madureira disse...

Convido à visita do meu post intitulado "Carolina".

beijo

Anónimo disse...

Bem... se fosse apenas uma estória, diria que é uma das melhores... mas o certo é que é mais do que uma estória, bonita ou feia, melhor ou pior descrita... o certo é que esta é a realidade de muita gente,velhos e novos, com mentalidades retrogradas ou modernas, de estratos sociais baixos ou altos!... Não sei se por cobardia, se por amor (?), se por... não "ter mais nada nem ninguém"... mas o que é certo é que esta submissão, esta dependência, este vício... continuam a existir e persistir!

gst mt

Um beijo *