quarta-feira, 2 de abril de 2008

Godelieve - 38

Sexta-Feira acontece. Helga liga-me mais uma vez, pergunta se está tudo bem.

- Queres a verdade mesmo?... – pergunto, não conseguindo, para meu desprazer, disfarçar alguma irritabilidade. Não consegui controlar, pensando que o bem ou mal que me sentia, não sabia de onde vinha… se de não estar com Godelieve, se por tudo o que se passava com Helga e Arie, se por tudo junto… Penso nisto… Não sei se poderei dizer que me sinto mal por não estar com Godelieve, apenas porque quando estou consigo me sinto bem… O foco da questão aqui está no estar, não no não estar. Se ela não existisse e eu estivesse na mesma situação (o que seria impossível), sentir-me-ia da mesma maneira… São muitos pensamentos apenas para o intervalo de segundos entre uma conversa, eu sei, mas o que é certo é que viajam em mim…

- Se calhar não quero… Adeus… – responde. Sinto-me contente ao, à medida em que se despede, ver traços da antiga Helga, essa que toda a VIDA conheci, e que já não me atrevo de nomear como a “verdadeira” Helga… A sua atitude é, notoriamente, a da nova versão que me quer mostrar, mas há aspectos mais importantes, ou evidentes, do que o que se faz. Tantas vez a maneira como algo se faz revela tão mais…

Penso que falta apenas um dia para ver Godelieve, e penso, estupidamente, que Segunda-Feira estarei, novamente, a duas, três, não sei quantas semanas de a ver. Não quero pensar nisto… Sem querer estou a sabotar todo o prazer da antecipação, e a preparar-me para minar cada segundo em que esteja consigo. Quando tiver o seu aroma perto de mim, quero senti-lo, quero beijá-lo, agarrá-lo como se comigo ficasse para sempre. Não quero pensar em quando não o vou ter, mas simplesmente tê-lo. Falta um dia. Se aparecer. Se não aparecer vou a sua casa. Seria capaz disso? Não tenho dúvidas. Se não aparecesse iria a sua casa e, com toda a calma, exigiria a sua presença. Ou isso ou atirar-me da varanda do meu prédio…

Estes pensamentos entram e saem do meu espírito de maneiras que não os consigo agarrar e analisar, pensar. Todavia, fico a pensar no que tinha acabado de pensar. Penso na impossibilidade que havia de isso acontecer, mas ao mesmo tempo penso até que ponto me pode deixar de desesperado. E até onde isso pode levar… Até onde pode levar?

Decido arriscar, não me importar, e ligo a Arie. Faz tempo que não o vejo, e apesar de tudo, sei que é um bom amigo… Está confuso e é um cobarde, é certo. Mas não podemos ser todos perfeitos… Ouço o telefone tocar, e penso se o que acabo de pensar (mais uma vez a pensar nos meus próprios pensamentos) não será uma mera desculpa que o peso da solidão me obriga a inventar… permitindo-me assim ter companhia de um amigo por uma noite sem achar que estou a trair os meus princípios… Tenho a certeza que não é isso. Mas há muito tempo que deixei de confiar nas minhas certezas…

- Então amigo! Ao tempo que não te vejo! – diz, mal atende.

- Olá rapaz, tudo bem?

- Por cá tudo óptimo! Mas ouve… é mesmo verdade, já não estamos juntos há muito tempo! Andas meio estranho! – repete, com um tom, arrisco a dizer, preocupado.

- Como assim?

- Então… por isso mesmo que te digo! Cá para mim andas é sempre lá com a outra e já nem tens tempo para os amigos! – liberta, tentando ser engraçado, mas sem o conseguir.

- Não, não é isso… Tenho andado ocupado com outras coisas. Mas… Estou a ligar-te para perguntar se não queres ir jantar fora logo. Pôr a conversa em dia! – sugiro.

- Heia pá… Olha tenho umas coisas combinadas, mas não te preocupes, cancelo tudo. Afinal de contas se faltar hoje só me voltas a ligar daqui a dois meses, por isso… – tenta novamente ser engraçado mas desta vez, ainda que contra a minha vontade, os meus lábios organizam um sorriso e as minhas sobracelhas levantam-se um pouco. Não penso se abordarei o assunto ou não, e chego, para minha estupidez, a pensar numa estatégia para que o jantar corra da melhor maneira…

Marcamos no Sun, um restaurante que frequentávamos poucas vezes, mas com muito bom aspecto. Pensando bem, talvez fosse essa a razão por detrás das nossas poucas presenças no estabelecimento. Tendíamos a procurar locais mais calmos, rústicos. Começou, ainda que Arie não o saiba (e eu apenas recentemente tenha descoberto), por ser assim numa tentativa minha de não me encontrar com colegas de trabalho, que enchem estes lugares como formigas num pacote de açúcar. E não era raro convidarem-me/nos para as suas mesas, oferecerem bebidas, entrarem em conversas que não queria ter, entre muitos outros assuntos que preferia evitar. Penso no porquê de, desta vez, me ter lembrado deste restaurante. A primeira coisa que salta à minha mente é o simples facto de ser tão raro aqui aparecer, que vejo a mudança como bem-vinda. Mas continuo a pensar… e penso se será um desafio que me coloco… de, caso aconteçam, rejeitar convites de pessoas bem colocados, simplesmente porque me apetece estar com o meu amigo…

- O Sun? Muito bem… – comenta Arie, ao chegar. Eu esperava por si, bebendo um Porto como aperitivo, no bar do restaurante. O tema deste segue o do anterior. Tudo muito branco, numa tentativa quase bem conseguida de sugerir classe, muita classe. Apenas quase bem conseguida pois, na minha opinião, chega a ser demasiado. Olho à minha volta, e sinto as pessoas, eu e Arie incluídos, como intrusos neste espaço, sendo que tudo é, como disse, branco, apenas retirando a monotonia a esta cor linhas elegantes negras que atravessam, aleatoriamente o chã, o tecto, e as peças de mobília. O balcão parece de marfim e faz-nos sentir que cometemos um pecado terrível ao não pousar o copo numa base. Arie traz consigo um sorriso genuíno, que me revela estar feliz de me ver. O meu é mais cínico, apesar de nem por isso ser menos verdade que estou, igualmente, feliz de o ver. Vem vestido com um casaco braço, calças da mesma cor, sapatos, gravata e cinto pretos. Obviamente fê-lo de propósito.

- Para variar… Foda-se estás com uma elegância… – digo, sem mentir, rodando no banco e apreciando melhor. Ele roda sobre si mesmo, em jeito de brincadeira e sorri. – Antes de mais nada, uma coisa! – digo, elevando a voz, com o dedo no ar – Nada de conversa de gajas hoje! Combinado? – peço, revelando assim a minha estratégia para ter uma noite perfeita, sem ver em mim constantemente a vontade de lhe partir um joelho.

- Por mim tudo bem. Mas suspeito que assim não vais ter nada de que falar… – diz, baixinho e desafiador, ao se sentar. Devolvo a piada com um sorriso sarcástico. Arie pergunta o que bebo, pede o mesmo para si. Frustra-me não perceber o que está a tocar. Blues, mas não sei o quê. O melhor que esta cidade em que em cada canto se encontra um vício e merda, são os bares, os restaurantes, os imensos sítios onde se ouve tão boa música…

- Vamos para a parte o restaurante? – sugere, ao acabarmos, sincronicamente, o nosso segundo Porto. Assim o fazemos. Apenas temos de nos levantar, caminhar uns 6 passos, virar à esquerda, e temos uma vista sob o amplo salão. Essa vista mostra-me o que quero ver, mas o que não espero ver. Uns metros à nossa frente, de costas para nós, está Godelieve. Penso se será ilusão ou coincidência, mas vejo o largo sorriso de Ruud a fazer-me festas, e a sua mão elevar-se no ar, chamando-me.

- Então, que foi? – pergunta-me Arie, uns metros à frente, surpreendido ao ver-me estático.

Sem comentários: